Le rêve, 1980. © Chagall, Marc/AUTVIS, Brasil, 2022

DASARTES 127 /

MARC CHAGALL

CONHECIDO POR SEU REPERTÓRIO CHEIO DE CORES E CRIATURAS FABULOSAS, MARC CHAGALL TRANSFORMOU SUAS VIVÊNCIAS COM IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE. SUAS OBRAS APRESENTAM A BELEZA DO COTIDIANO, CONTAM HISTÓRIAS COM POESIA E UNEM REALIDADE E FANTASIA

CHAGALL: EXÍLIO E GUERRA

Krieg, 1943. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021, Foto: bpk / CNAC-MNAM / Jacqueline Hyde.

Os motivos que foram tão caros para o artista russo-francês Marc Chagall (1889-1985) – a vida no campo, os animais, a mulher, a religião, as festas, os espetáculos, a música e o amor – o tornaram único e, principalmente, reconhecido do grande público. Porém, houve um tempo de sombras: cerca de dez anos difíceis para o pintor, nos quais sua paleta escureceu e suas imagens ficaram perturbadoras.

Esse período inquieto, vivido entre os anos 1930 e 1940, agora está sendo exibido, a partir de 100 obras, fotografias e documentos presentes em Chagall: o mundo em turbulência, com curadoria de Ilka Voermann, no SCHIRN KUNSTHALLE FRANKFURT (Alemanha) em cooperação com Henie Onstad Kunstsenter (Noruega). Nessa exposição, temas, tais como, a guerra, o exílio e a identidade surgem em suas obras. Chagall é, sobretudo, um homem atingido pelas políticas nacionais-socialistas, pela guerra e pela perseguição nazista.

De família judaica, Chagall nunca abandonou Vitebsk (Belarus); ele não cravou raízes na terra natal; foi forçado a partir, mas sempre levou na alma e nas pinturas a pequena aldeia onde nasceu. Estudou na Academia de São Petersburgo (1906-1910), alguns anos em Paris (1910-1914) e, com o início da I Guerra Mundial, Chagall foi convocado para servir nas trincheiras, mas permaneceu em São Petersburgo. Após a Revolução de 1917, ressurgiu como professor associado à Escola de Arte do Povo de Vitebsk.

Ele se entusiasmou com o movimento bolchevista; era uma alegria ver a população pobre, jovem e de origem operária interessada em artes. Mas lutas internas (revolucionárias e estéticas) minaram suas forças. Kasimir Malevich, por exemplo, criou o suprematismo, acreditando que este seria a “arte bolchevista” – ideia oposta à de Chagall e motivo de sua saída de Vitebsk. Nesse ponto, nem Chagall e nem Malevich tiveram êxito. Pouco a pouco, os suprematistas também perderam espaço para o realismo social, ou seja, para uma linguagem figurativa destinada à propaganda do governo socialista.

Premiere Maskerade. Foto: © Tetyana Luxa. © VG Bild-Kunst, Bonn 2022

Foto: © Martin P. Bühler. © VG Bild-Kunst, Bonn 2022.

De fato, Chagall se tornava mais um expatriado em Paris, tal como dois dos seus amigos próximos Amedeo Modigliani e Pablo Picasso – com esse último, nutriu uma relação de amor e ódio. Há depoimentos célebres que mostram essa amizade: “Quando Henri Matisse morrer, Chagall será o único pintor que entende o que realmente é a cor. Eu não sou louco por seus galos, jumentos e violinistas voadores, e todo o folclore, mas suas telas são realmente pintadas”, dizia Picasso. Em resposta, Chagall declarou: “Que gênio, aquele Picasso. É uma pena que ele não pinte”. Enfim, eram rusgas entre dois grandes das vanguardas artísticas.

De qualquer modo, Chagall, nesse período, já era bastante respeitado nos círculos da arte moderna. Ele iniciou seu percurso estético pelo impressionismo, fauvismo e pelo cubismo, porém, suas últimas telas têm caráter inegavelmente surrealista – e essa é sua fase mais conhecida. “Eu sou o surrealismo” é frase atribuída ao nosso pintor. Seus temas giravam em torno de suas memórias: eram cenas pastorais de vilas, casamentos, violinistas brincando nos telhados e figuras que flutuavam nos céus – lembranças líricas e melancólicas de sua casa distante.

Die Lichter der Hochzeit, 1945. Foto: © VG Bild-Kunst, Bonn 2022

Die Lichter der Hochzeit, 1945.
Foto: © VG Bild-Kunst, Bonn 2022

No decênio de 1930, suas cenas religiosas do Antigo Testamento, inspiradas pela Bíblia cristã e com intensa mística russo-judaica se multiplicaram no trabalho diário. Foram anos intensos: em 1931, por exemplo, ele visitou a Palestina, a Síria e publicou Ma vie (Minha vida), autobiografia ilustrada por gravuras – algumas feitas em Berlim, em 1923. Em 1933, fez uma grande retrospectiva no Kunstmuseum, de Basileia.

Com a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, as obras de Chagall foram consideradas uma afronta à estética nazista. Para eles, o modernismo era mais uma das conspirações dos judeus e comunistas – aliados no plano de destruição do corpo e dos espíritos dos alemães.  Consideradas aberrações, as obras modernas sofreram um processo de perseguição e difamação, assim como seus expoentes perderam seus cargos em museus e universidades e foram proibidos de exibir ou vender sua arte.

Em 1937, um acréscimo de crueldade nesse processo: o confisco de pinturas modernistas de coleções públicas e privadas – entre elas, obras mestras. Foram cerca de cinco mil obras e, parte delas, foram exibidas na Die Ausstellung Entartete Kunst – Exposição da Arte Degenerada, de julho a novembro de 1937. Nessa mostra, as obras de Chagall, Paul Klee, Lasar Segall, entre outros modernos, foram comparadas às obras de doentes mentais e crianças.

Le rêve, 1980. Coleção Particular. © Chagall, Marc/AUTVIS, Brasil, 2022.

Einsamkeit, 1933. Foto: © Tel Aviv Museum of Art.

Entende-se, então, o mundo turbulento de Chagall. Ele era desprezado pelos socialistas e odiado pelos nazistas. O fiel compromisso com a sua visão de mundo e com a sua identidade está presente nos trabalhos desta fase. Distante de sua aldeia natal, perseguido e sob o estigma do “judeu errante”, ele reagiu às circunstâncias em sua pintura. Foi uma reação brutal contra a discriminação dos judeus e, posteriormente, ao Holocausto. Suas cores refletem o escuro daqueles dias.

E surgiram imagens novas, tais como, Solidão (1933) – uma óbvia oposição à alegria de tempos anteriores. Nessa pintura, um judeu, vestido com seu escuro hábito de orações, coberto por um manto branco, sentado no gramado, ao lado de um boi, com os olhos voltados para o chão. O homem parece ser a metáfora de Asvero, o judeu errante, que vaga pelo mundo com destino incerto. À esquerda, uma vaca branca deitada no chão, trazendo também um olhar tristonho.  Ao fundo, o anjo vestido de branco, perseguido por tempestades e o cenário das casas e sinagogas. Nessa tela, tudo remete à perseguição e àquele tempo de dor – essa pintura é o ponto inicial da exposição em Frankfurt.

Un sie herum, 1945.Centre Pompidou. © VG Bild-Kunst, Bonn 2022. © BPK/CNAC-MNAM/Philippe Migeat.

Na sequência da mostra, estão os desenhos e as pinturas que Chagall fez, quando da viagem à Palestina. Nesse material, o tema central são os locais sagrados judaicos, tais como, o Muro das Lamentações e os interiores de sinagogas – junte-se ainda os desenhos das sinagogas de Vilnius, quando da visita àquela aldeia. Contando assim, os percursos trilhados em sua vida-obra parecem uma constante fuga.

Vivendo na França, o artista não terminou suas gravuras sobre temas bíblicos – nas quais apareciam culpa e expiação, vingança e maldição. Ele teve que fugir, definitivamente, dos nazistas em 1944 e notícias dos campos de extermínio chegaram aos seus ouvidos. Nesse mesmo ano, sua esposa Bella Rosenfeld, morreu de uma infecção, não tratada devido à falta de remédios durante a guerra. Foi um episódio de grande depressão. O destino, desta vez, era os EUA – onde muitos artistas, escritores e intelectuais buscaram refúgio.

No exílio, Chagall realmente mergulhou em um mundo de evocações e terminou a tela Autour d’elle (Em torno dela), que se tornou a síntese de sua temática. Por fim, os anos entre 1930 e 1940, mostram-nos um Chagall melancólico e atingido pelas dores do mundo. Ele só concluiu a série de suas gravuras religiosas (interrompida pela fuga), nos anos de 1950, quando do seu retorno dos Estados Unidos.

Alecsandra Matias de Oliveira é pós-doutorado em Artes Visuais
(Unesp). Doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Mestrado em
Comunicação (ECA-USP). Professora do CELACC (ECA-USP).
Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação
e Pesquisa em Artes (ECA-USP). Membro da Associação
Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Curadora independente
e colaboradora da revista Dasartes, Jornal da USP e Revista USP

MARC CHAGALL: SONHO DE AMOR •
CCBB SÃO PAULO • 1/2/2023 A 10/4/2023

MARC CHAGALL: WORLD IN TURMOIL • SCHIRN
KUNSTHALLE FRANKFURT • 4/11/2022 A 19/2/2023

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