Roda de Bicicleta, 1913. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

DASARTES 139 /

MARCEL DUCHAMP

É difícil explicar a Arte Moderna e Contemporânea sem passar pelas estripulias de Duchamp. E, a hora é agora de falarmos sobre essas traquinagens, isso porque está acontecendo, em Veneza, a exposição Marcel Duchamp and the lure of the copy (algo como Marcel Duchamp e a atração da cópia), com curadoria de Paul B. Franklin, […]

Caixa de alerta: Missivas lascivas. Exposição Internacional do Surrealismo, 1959-1960. Paris, Galeria Daniel Cordier, 1959.

É difícil explicar a Arte Moderna e Contemporânea sem passar pelas estripulias de Duchamp. E, a hora é agora de falarmos sobre essas traquinagens, isso porque está acontecendo, em Veneza, a exposição Marcel Duchamp and the lure of the copy (algo como Marcel Duchamp e a atração da cópia), com curadoria de Paul B. Franklin, na Peggy Guggenheim Collection – aliás, a mostra tem chamado a atenção porque é a primeira individual dedicada a Duchamp naquele lugar.

São 60 obras, entre 1911 e 1968, que contam sobre o relacionamento do artista com a colecionadora Peggy Guggenheim, mas, acima de tudo, no campo da arte, os trabalhos selecionados mostram como Duchamp lidou com questões que envolvem o original e a cópia; evidenciam as técnicas, os materiais e diferentes propostas do artista – quase todas as suas produções esgarçaram os parâmetros da obra de arte. São diabruras que alteraram a concepção do que é arte, do que seria o artista e qual sua conexão com o mundo.

Peggy Guggenheim conheceu Marcel Duchamp por volta de 1923, quando ela vivia em Paris com o primeiro marido, Laurence Vail. Aqui, vale dizer quem eram os Guggenheim, nesses dois primeiros decênios do século 20: eram judeus que trocaram a Suíça pelos EUA no século 19. Fizeram fortuna sobretudo em mineração. Solomon, sim, aquele mesmo do Solomon R. Guggenheim Museum de Nova York, era tio de Peggy. O pai dela, Benjamin, morreu com uma amante no naufrágio do Titanic. Florette, a mãe, vinha da ainda mais abastada família de banqueiros Seligman. Foi nessa família aristocrática nova-iorquina que Peggy nasceu Marguerite e decidiu se tornar mecenas e colecionadora de arte.

Marcel Duchamp or Rrose Sélavy, Box in a Valise, 1935–41. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

No seu livro de memórias, A vida de uma viciada em arte (1960), Peggy confessou: “Precisei de muita ajuda e conselhos, que recebi de um velho amigo, Marcel Duchamp… não sei o que teria feito sem ele… tenho que agradecê-lo por minha introdução ao mundo da arte moderna.” De fato, em 1937, Duchamp foi um dos seus conselheiros na escolha de obras para a formação da Guggenheim Jeune, galeria inaugurada em Londres, em 1938, e, logo depois, na constituição da coleção de arte moderna de Peggy. Em 1948, a coleção de arte moderna foi instalada no palácio no Grande Canal veneziano – sua sede atual.

Alguns cronistas da época contavam que Peggy Guggenheim teve um breve caso amoroso com Duchamp. Ela o descreveu como “meio Deus, meio camponês”. Na verdade, Duchamp foi casado duas vezes e teve uma amante de longa data (a escultora brasileira Maria Martins). Além disso, também tinha um alter ego feminino, Rrose Sélavy – de Maria e Rrose, podemos falar mais adiante. Mas, de fato, ele ensinou a Peggy as diferenças entre arte abstrata e surrealismo. Ela também foi uma de suas primeiras patrocinadoras, adquirindo o primeiro exemplar da edição de luxo de Box in a valise, em 1941 – obra selecionada pela curadoria para ser eixo de interpretação da mostra.

Essa obra é uma construção ousada. Traz reproduções em miniatura de algumas criações de Duchamp. A edição de luxo de 20 malas de viagem – a primeira das quais está marcada como Louis Vuitton – apresenta uma inscrição dedicada a Peggy Guggenheim. Box in a valise é o resumo mais convincente de Duchamp de sua paixão pela réplica. Ele via a cópia como um modo de expressão criativa. Para o curador, essa obra mostra como a produção duchampiana era híbrida e como ela perturbava as classificações e as normas artísticas.

Marcel Duchamp, Par de aventais de lavadeira, 1959. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

Pente, réplica de 1964. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

Marcel Duchamp and the lure of the copy está dividida em núcleos: Origens, originais e semelhanças de famíliaPassado é prólogoA magia dos fac-símilesCópias autênticasDisciplinando e encorajando a mãoClonando o eu, vestindo o outroRepetição hipnótica e Temas e variações. A partir dessa organização, percebe-se o trabalho de Duchamp dinamizado pela pintura, escultura, colagens, arte corporal e peças encontradas – neste último item, ele empregou diversos materiais e objetos, às vezes colados, às vezes prontos (os famosos, ready-mades).

Para suas obras, Duchamp atribuiu nomes desafiadores ou banais. Ele transformou em arte objetos de outras esferas da vida. Usou materiais estranhos à arte até aquele momento. Retirou a função do objeto cotidiano para lhe dispor sentido estético. Questionou a obrigação da manufatura. Estava à procura de uma arte mais cerebral.

Além disso, Duchamp explorou a relação entre cópia e matriz. Suas obras não são tão somente cópias; para ele, eram matrizes conceituais. Ele questionou a ideia de autenticidade e repetição, afrontando os limites entre trabalho manual e industrial. Em uma época em que o fazer artesanal era visto como habilidade livre e criativa, Duchamp mostrou que até mesmo o que era industrial poderia ser inovador. Ao pensar sobre os sentidos de original e cópia, ele demonstrou que não apenas o gesto manual, mas também a escolha mental, é passível de repetição.

A Fonte, 1917. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

Assim, ele impactou a cena artística, em 1917, ao trazer um urinol ao Salão dos Artistas Independentes de Nova York, cunhando o conceito de ready-made. Sem poder recusar o objeto porque a exposição não era seletiva, o júri decidiu exibi-lo atrás de uma divisória, após longo debate sobre sua autoria – Duchamp assinou a obra como R. Mutt, o fabricante da peça industrial. Esse objeto em particular levava um nome feminino, A fonte, para algo estrito do mundo masculino, o urinol.

Nessa trilha de dualidade entre o “eu” e o “outro”, ou, ainda, entre o masculino e o feminino, surgiu sua personalidade alternativa, Rrose Sélavy, em 1920. Seu nome era um trocadilho do ditado francês “Eros, c’est la vie” (Eros, é a vida), uma metáfora para dizer que o sexo atravessa a existência humana ou, também, “Arrose, c’est la vie” (Água é vida), um eufemismo para dizer “úmido” – uma referência sexual.

‘O segundo “r” no nome só foi adicionado em 1921, quando ela assinou a colagem L’Oeil Cacodylate (O olho de crocodilo), de Francis Picabia. Em março de 1921, sofrendo de herpes oftálmico que inspirou diversas obras, Picabia pintou um único olho. Em torno desse olho, ele convidou seus amigos a escreverem uma frase de sua escolha. Man Ray, Jean Cocteau e Rrose Sélavy estavam entre os signatários dessa obra coletiva que colocava em dúvida a ideia de artista e de obra-prima.

Le Surréalisme en 1947. [Paris], Éditions Pierre à Feu, Galerie Maeght, 1947. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

Rrose inspirou tudo, desde coleções de poesia surrealista até um bar de ostras em Manhattan. Logo depois, ela começou a aparecer em fotografias de Man Ray, artista dadá e companheiro de Duchamp. Como personagem duchampiano, Rrose deu vida à ludicidade e à ironia do dadaísmo, além de ter um apelo erótico inegável.  Nas fotografias, ela se manifestava sob vários disfarces, às vezes com fortes traços masculinos; outras vezes, elegante e decididamente feminina.

L.H.O.O.Q., 1964. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

Duchamp foi um mestre da subversão. “Eu não acredito em arte. Eu acredito em artistas”, é uma de suas frases mais célebres. Ele afirmou que o artista não é um fazedor de objetos, mas um pensador que se interroga sobre a arte. Com Rrose e outras propostas, questionou a tradição e flexão de gênero na arte; provocou a reflexão sobre identidade, representação e autorrepresentação. Antes de Rrose, Duchamp já tinha evocado a Mona Lisa, desenhando bigodes em um cartão-postal da pintura de Da Vinci e o nomeou de L.H.O.O.Q. – a sigla em francês parece dizer “Elle a chaud au cul”, que em português seria “Ela tem um rabo quente”.

Como adendo à temática da exposição Marcel Duchamp and the lure of the copy, não é possível deixar de mencionar a convivência entre Maria Martins, escultora brasileira, e Duchamp, no período entre 1944 e 1966. Eles se conheceram na primavera de 1943, em Nova York. Em 1946, o romance ficou mais intenso. Nesse mesmo ano, Duchamp fez Paysage fautif (feita de líquido seminal em cetim preto esticado sobre uma moldura de madeira. Hoje, o trabalho integra o Museu de Arte Moderna de Toyama. Na verdade, a obra se tornou uma tórrida declaração de desejo de um homem por uma mulher.

Do lado de Maria, a convivência com Duchamp parece ser o motivo da obra Não se esqueça nunca que eu venho dos trópicos (1942), que tem como título uma provocação – a lembrar de onde veio a escultora. Em Impossível (1944), duas figuras opostas (ou ainda o masculino e o feminino) estão frente a frente com seus tentáculos, uma sobre a outra – como se existisse um jogo de poder e submissão entre as formas orgânicas. Nessas duas esculturas, a paixão se tornou tema central e, ao seu redor, a sensualidade e as dores de natureza feminina fornecem intensidade às peças.

Maria Martins, Impossível, 1944. Acervo Banco Itaú,. Foto: Vicente de Mell.

Já do lado de Duchamp, alguns críticos apontam que Maria seria a mulher nua do seu último trabalho, a assemblage Étant donnés: 1. La chute d’eau, 2. Le gaz d’éclairage (1946-1966). Essa obra foi descrita pelo artista por Jasper Johns como “a obra de arte mais estranha vista em qualquer museu”. Instalada permanentemente no Museu de Arte da Filadélfia desde 1969, é um misto entre bidimensional e tridimensional, oferecendo uma experiência incrível a quem espia pelos dois pequenos orifícios da maciça porta de madeira. Foram 20 anos reconstruindo o corpo e as formas de Maria Martins em um cenário fantástico.

Marcel Duchamp, Dado: 1. A Cachoeira, 2. O Gás Iluminador, Francês: Dado: 1° a cachoeira / 2° o gás de iluminação. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.

Por último, deixo o comentário sobre as cartas trocadas entre os dois amantes. Em um poema, a escultora o instigou: “Mesmo depois da minha morte/ Muito depois da sua morte/Eu quero te torturar (…)”. E noutro trecho: “Para você quero longas noites de insônias”. De sua parte, Duchamp escreveu à amante durante anos, implorando que ela fugisse com ele – mas, essa é daquelas histórias submersas dentro do percurso da arte moderna e contemporânea – não está entre as estripulias exibidas na mostra em Veneza.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutorado em Artes Visuais (Unesp). Curadora independente. Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação Internacional de Crítica de Arte (AICA). Articulista do Jornal da USP e colaboradora da Revista da USP e Revista Dasartes. Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022).

MARCEL DUCHAMP AND THE LURE OF
THE COPY • PEGGY GUGGENHEIM
COLLECTION • NOVA YORK •
14/10/2023 A 18/3/2024

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