A natureza expande suas formas nas percepções dos que se aproximam dela. O artista Jarbas Lopes, com seu semblante de contemplação, admira-se com as interações das pessoas com seus trabalhos. Um misto de riso, espanto e curiosidade. Durante a abertura de sua mais nova exposição na Estação Pinacoteca, em São Paulo, os que passavam pela entrada do prédio, a partir da saída da estação de trem da Luz, em um vasto estacionamento que conecta também os visitantes à Sala São Paulo, a mais importante casa de concertos clássicos da cidade, depararam-se primeiro com dois fuscas atados um ao outro pelos chassis, sendo o primeiro virado de ponta cabeça e o segundo precisamente sobre o outro veículo, em cima deste. Um na cor preta e o outro na cor branca. A obra O bem e o mal entendido (2006) propõe esse embate entre duas condições estabelecidas e contraditórias, tal qual um Yin e Yang, o símbolo chinês. A mostra é dividida em quatro eixos, e essa obra representa o primeiro destes, nomeado Desejos. O jogo com as cores representa a dualidade que há na relação própria dos seres, o confronto que resulta em um conflito incessante sobre tempo e espaço, provocando inseparáveis aproximações.
Eixos é uma exposição retrospectiva da longeva carreira do carioca Jarbas Lopes, com a presença de mais de cem obras do artista. O projeto curatorial é assinado pelo curador da Pinacoteca Renato Menezes. O quarto andar do prédio da Estação Pinacoteca e a parte de fora, no já mencionado estacionamento, são ocupados pela sua ousadia de se apropriar de elementos da natureza e criações humanas sob a ótica social das interações entre os sujeitos, para além de uma simples redução de espaços urbanos e rurais. Com trabalhos que vem realizando desde os anos 1990, sua métrica busca se aproximar dos artistas neoconcretos dos anos 1960 e 1970, sobretudo da geração disruptora de Hélio Oiticica e Lygia Clark. As experiências dos penetráveis e dos bichos foram a realização máxima de criação para se aproximarem até o limite do contato com as pessoas fora do cubo branco. No eixo denominado Ambiente, temos as obras Shock Pintura e I am experience, de Lopes, onde podemos perceber esse contato com a quebra dos limites impostas pela arte até o surgimento do neoconcretismo durante aqueles anos: sob cordas elásticas estreitamente conectadas a uma grande tela de ferro que vaza, apoiadas sob uma parede, surge o convite para se lançar sobre a obra e saltar para trás com o impulso que ela dará. O mesmo contato acontece com as obras Um quarto para José Pedreiro (1997-2023) e Barraca Deegraça (2001), nas quais os penetráveis ganham formas mais viscerais do que das de Hélio: a arte aqui é feita para dialogar com as condições inerentes do ser humano, por melhores habitações, na imagem de barracos e construções inacabadas, cenários vistos pelos subúrbios das grandes cidades do país.
Sob uma enorme faixa onde se lê “NATUREZA É SABIÁ”, surge a obra que ocupa o centro da galeria, ainda no eixo Ambiente. Uma esteira de palha ao lado de um suporte de MDF com centenas de folhas aromáticas se estende paralela a uma extensa máquina de rolagem, como as de um aeroporto para checagem de bagagens. Passarela, obra inédita feita para a exposição, pede para que o visitante fique descalço e caminhe sobre as folhas enquanto deixa os sapatos na esteira. Os pés então saem do espaço higienizado e cheio de regras do museu e tocam as folhas que emanam um forte cheiro de vegetação. O artista insere o rigor do controle dos espaços sobre os cidadãos e propõe o inverso, a liberdade de sentir com os pés descalços as folhas da natureza onde os pássaros cantam e habitam um mundo sem regras.
A disrupção do ambiente para dialogar sobre as razões pelas quais os ambientes existem está no cerne dessa ousadia de se apropriar de elementos da natureza e criações humanas sob a ótica social das interações, mencionadas anteriormente. Jarbas ressignifica o mundo com os mesmos instrumentos que o todo nos impõe em seus significados. Na sala onde se insere o eixo Flutuação, é possível observar um gigantesco cubo branco. O visitante inicialmente percebe que o grande objeto parece flutuar sobre o espaço: a base do cubo inexiste e, assim, sua estrutura fica comprometida. Afinal como conceber tal realização? Não há portas para adentrar o cubo, dessa forma pouco se sabe o que ele esconde. Cubo flutuante, obra concebida em 2017, ganha uma escala muito maior do que a primeira. É um tratado sobre a própria concepção sobre o objeto escultórico e uma reflexão sobre a própria história da arte com seus espaços quadriculados medidos de forma encerrada para abrigar obras, em sua maioria pinturas. Na frente do cubo, na entrada do visitante, na sala, vemos seu trabalho Pintura Circular, diferentes das que realizou em 2021, no Museu de Arte do Rio, em sua individual por lá; essa foi feita especialmente para a exposição. Ao redor do cubo e da pintura circular, temos mais de sessenta desenhos feitos com caneta esferográfica da série Cicloviaérea (2002), grande parte deles do acervo do Instituto Inhotim. São referências ao próprio trajeto entre espaços no tempo, sempre de bicicleta, próximos de lugares oníricos, ora reais, ora tomados de crítica social, ora levantando bandeiras de causas urgentes, como as da emergência climática e o desmatamento da floresta Amazônica.
Imbuída de um choque causado por interações constantes com os ambientes dados e pela interferência sob nossos corpos e nossos sentidos, a exposição revela na última sala a mais monumental de suas obras. Dentro do eixo denominado Temperatura, vemos o trabalho Suspensa (2022-2023), composto por uma rede de fios de arame queimado, galhos de madeira e argila. Os fios de arame tramado sustentam o peso de um conjunto enorme de galhos secos e troncos. No centro do espaço, a grande imagem de uma fogueira tensionadas sob os fios. No canto da parede, a obra Aparadores de Luz, de 2022, surge como canoas cujo propósito é tampar qualquer iluminação. Inserida nos dois lados da grande fogueira, a obra manuseável, Desembolaembola, de 1996, convida o visitante a retirar das caixinhas um novelo de linhas coloridas, em meio a resíduos de folhas e gravetos. O foco é perceber as linhas como desenhos e os desenhos como linhas.
O artista, nascido em Nova Iguaçu e morador da cidade de Maricá, na região da Grande Niterói, no Rio de Janeiro, transpira liberdade e alegria em suas criações artísticas. No dia da abertura dessa exposição em São Paulo, Lopes era só felicidade, enquanto o grupo Pagode na Lata, abria com batuques sua grande retrospectiva. Nem as chuvas que caíam na cidade naquele dia foram capazes de tirar o ânimo dos visitantes e do próprio anfitrião em sambar. Suas obras, assim como o próprio gênero do samba, são convites para se usar da alegria como meio de se pensar a vida, mesmo em meio às agruras vividas pela nossa gente.
João Henrique Andrade é técnico em
museologia, curadoria e montagem de
exposições pela EAV Parque Lage.
JARBAS LOPES: EIXOS •
PINACOTECA ESTAÇÃO • SÃO PAULO •
25/11/2023 A 31/3/2024