
The Waltz (Allioli), about 1900. © Camille Claudel. Private collection. Photo courtesy of Musée Yves Brayer .
NÃO VIVAS DE FOTOGRAFIAS AMARELADAS
Camille Claudel
É possível enlouquecer por amor? Toda vez que se conta a história de Camille Claudel (1864-1943), essa pergunta fica em suspenso. À sombra do relato de paixão, desprezo e internação perpétua, ficam suas esculturas – sempre colocadas como pano de fundo de sua relação amorosa e profissional com o mestre François-Auguste-René Rodin (1840-1917). Sua volúpia, abandono e loucura chegam primeiro. É inegável que a história da arte tenha sido movida por grandes casos de amor, entre eles, a misteriosa relação entre Édouard Manet e Berthe Morisot; as aventuras de Pablo Picasso e suas musas e, ainda, o vínculo tóxico de Frida Kahlo e Diego Rivera. Porém, ver Claudel pelas lentes de Rodin foi uma das violências mais naturalizadas da história da arte.
A originalidade das esculturas de Camille Claudel sempre ocupou lugar delicado: elo frágil entre a figura de Rodin e a de seu irmão, Paul Claudel, famoso poeta de sua geração. Apesar de restarem somente 90 obras, sua produção ganhou reconhecimento quase três décadas após sua morte.
A exposição Camille Claudel, que acontece até 19 de fevereiro de 2024, no Art Institute of the Chicago, tem o desejo de mudar essa leitura: ver, de fato, sua produção escultórica, sem os subterfúgios da crítica patriarcal – sem ofuscar suas obras com a evocação do deprimente abuso. Algo que não aconteceu, por exemplo, em 2005, quando o trabalho da escultora foi exibido pela última vez nos EUA, na mostra Camille Claudel e Rodin: Fateful Encounter, no Detroit Institute of Arts.

The Waltz (Allioli), about 1900. © Camille Claudel. Private collection. Photo courtesy of Musée Yves Brayer .
A exposição que ocorre em Chicago tem, então, um enorme desafio: reposicionar as 55 esculturas de Claudel, coletadas em mais de 30 instituições e colecionadores, a partir de seus “próprios termos”. E, talvez, o tempo da “revanche” de Claudel seja agora, quando há um forte movimento de revisão sobre as narrativas de artistas-mulheres, colocadas em um segundo plano pela escrita da História.
Evidentemente, o curador da mostra Camille Claudel, em Chicago, admite que “Rodin é inescapável”, mas ele registra o exercício sincero de não eclipsar o trabalho da escultora com os relatos lascivos que cercam a aluna e o mestre. Permitam-me aqui a referência a Brancusi, outro aluno: “recusei [estudar com Rodin] porque nada cresce sob a sombra de grandes árvores”. Para Claudel, o vulto de Rodin permaneceu por longo tempo.
A nova exposição explora as potencialidades de Claudel a partir de suas obras, consideradas, simultaneamente, realistas e expressionistas, assim como são trabalhos no estilo art nouveau – um movimento internacional que valorizava, sobretudo, a arte produzida a partir de processos manuais e criativos, colocando-se como a tentativa de trazer a beleza às estruturas industriais, opondo-se aos padrões acadêmicos e, ao mesmo tempo, correspondendo à nova dinâmica da sociedade.
As curvas incomuns empregadas por Claudel, em suas grandes e pequenas peças, buscam referências no mundo natural; são assimétricas e orgânicas; preocupam-se com as linhas dos corpos, mas ainda mostram que as formas nasceram da pedra, sendo traduzidas ao mármore ou ao bronze.

Crouching Woman, about 1884–85. © Musée Camille Claudel, Nogent-sur-Seine. Photo by Marco Illuminati.

Torso of a Crouching Woman, 1913. © The J. Paul Getty Museum, Los Angeles.
Como na cena de Camille Claudel, filme de 1988, protagonizado por Isabelle Adjani e dirigido por Bruno Nuytten, uma criança perguntou à escultora: “Como você sabia que dentro da pedra havia um homem?” De verdade, ela parece libertar as formas humanas de dentro dos cubos rochosos; ela nos mostra o rastro de seu trabalho na base da escultura; vemos a rugosidade da matéria-prima e o polimento ditando as formas.
Para a compreensão de sua obra, voltemos as atenções aos aspectos biográficos. Filha de uma família burguesa francesa – aliás, o pai, Louis-Prosper Claudel, era seu principal incentivador –, Camille estudou na Académie Colarossi. Ela não pôde cursar a École des Beaux-Arts, a escola mais importante da França, porque a instituição não aceitava mulheres em seu corpo discente, em grande parte devido ao preconceito de gênero e à crença de que mulheres não eram aptas a produzir arte de qualidade.
Consideradas intelectualmente inferiores, as mulheres não eram capazes de “aprender a boa arte”, bem como era um escândalo as aulas de modelos vivos para essas moças, em função do estigma do “corpo nu” nos estudos de qualquer um dedicado a ser “um artista”. Sendo assim, a formação em escultura era inusual – a escultura, a terceira das artes clássicas, demanda observação do corpo humano, força física e, sobretudo, recursos materiais e financeiros. Nada era menos amigável às mulheres do século 19.
Em 1883, a jovem Camille Claudel era um talento junto ao ateliê de Alfred Boucher que, após ganhar uma bolsa de estudos para Florença, recomendou-a para Auguste Rodin, iniciando um relacionamento que se estendeu até 1889. Nesse ínterim, o trabalho conjunto rendeu um período criativo, surgindo esculturas, assinadas por Rodin, reconhecidas pela história da arte, entre elas, Danaide (A fonte, s.d) e O beijo (1888-1889), ambas ligada à produção dos Portões do Inferno (1880-1917) – obra inspirada na Divina Comédia, de Dante Alighieri e encomenda que Rodin recebeu para as portas de bronze do Museu de Artes Decorativas de Paris.
Em Danaide, a modelo é Camille Claudel. Nesse trabalho, Claudel representa uma das filhas do rei Dânaos de Argos, condenada pela morte de seu marido à infinita pena de encher com água os vasos sem fundo. Já O beijo, motivada por sua relação amorosa com Claudel, conta sobre o infortúnio de Francesca e Paolo, personagens da Divina Comédia, que chegaram ao Inferno depois de serem mortos pelo irmão de Paolo (no caso, o marido de Francesca – mais um caso de traição). Em 1886, Rodin decidiu que a escultura não se encaixava no tema dos Portões do Inferno. Ele só concordou em exibi-la em 1898.
Percebe-se, então, que a proximidade de Claudel gerou reflexos na obra do mestre Rodin e, não tão somente o contrário, como se perpetuou na escrita da história da arte. Por algum tempo, ela foi aluna, musa, amante, parceira e confidente. Mas não se pode ignorar a dinâmica de poder existente entre os dois: Claudel tinha 19 anos, Rodin 42; por mais de uma década, a jovem esteve em um relacionamento com um homem casado e o julgamento social pesou em seus ombros; e, acima de tudo, ele era um dos artistas mais famosos da França e, ela, para os padrões da época, era “apenas uma mulher”.
A transgressão de Camille Claudel provocou críticas, como, “Claudel era uma gênia, apesar de ser mulher”, ou, ainda, dizia-se que “ela tinha o talento artístico tal qual o de um homem”. Não bastasse tudo isso, o reconhecimento público não acontecia. Claudel era acusada de imitar seu mestre. Igualmente, ela o acusava de não creditar suas obras feitas no período em que produziram juntos e, ainda denunciava, nas suas palavras, “Rodin e sua quadrilha” de roubo de ideias e de prejudicá-la no mercado de artes.

Auguste Rodin, Le Baiser (O Beijo, 1888 – 1889. © Museu Rodin, Paris.

Study of Left Hand, 1889. © Art Institute of Chicago.
Todos os dilemas pessoais eram matéria-prima no seu “fazer arte”. Camille se inspirou em seus sentimentos, ressentimentos, relatos míticos e na observação cotidiana das pessoas ao seu redor. Enfatizou sutilezas e nuances; sublinhou drapeados e ondas. Suas obras são marcadas pelo movimento e pela expressividade corporal. Em A valsa (presente na mostra, em quatro versões), os corpos se encontram em movimento e, embora haja um eixo inclinado, a estabilidade é dada pelo contato dos corpos. Observa-se a marcação do centro espacial com a união das mãos.
Em Idade madura (também chamada de Destino, o caminho da vida ou fatalidade, c. 1894–1900), emprestada pelo Musée d´Orsay para a mostra norte-americana, uma figura feminina se encontra ajoelhada e pende a cabeça para um dos lados; ela alonga os braços em sinal de súplica retratando o abandono. São três figuras: um homem dividido entre duas mulheres. De um lado, ele se desprende da jovem que está em posição de súplica, do outro, é acolhido por Clotho, a mulher mais velha. O conjunto do braço da figura masculina e o posicionamento das três cabeças (Clotho, homem e jovem) formam uma diagonal, dando a sensação de níveis espaciais alto, médio e baixo. Na mitologia grega, Clotho é uma das filhas de Zeus, a mais jovem das três ceifadoras que regiam o destino humano. Por isso é interpretada como a personificação do destino.

The Mature Age (L’Âge mûr), 1913. © Musée Camille Claudel e Musée Rodin.
No fundo, a obra também é autobiográfica. Clotho é Rose Beuret, companheira de Rodin, ao passo que a jovem suplicante é Camille. A escultura foi encomendada pelo governo francês, em 1895, mas a incomoda dubiedade entre alegoria e vida real, talvez, tenha sido o motivo do cancelamento, em 1899, antes da fundição do bronze – será que aqui vemos o “dedinho de Rodin”? De qualquer modo, uma versão em gesso da escultura foi exibida em 1899 e, em seguida, fundida em bronze em 1902 – esta última é o exemplar do Musée d´Orsay. Uma segunda fundição foi feita em 1913 e se acredita que a versão em gesso tenha sido destruída naquela época.
O ano de 1913 foi dramático na vida de nossa escultora – 14 anos após o rompimento com Rodin –: seu pai, seu maior admirador, morreu. A cronologia dos eventos é rápida: três dias depois, seu irmão, o poeta Paul Claudel, obteve um certificado médico dentro das leis francesas da época que permitia que uma pessoa fosse internada contra sua própria vontade; passados cinco dias, o estúdio de Camille foi invadido por enfermeiros, que a levaram, em uma ambulância, para um asilo, onde ela permaneceu por 30 anos, até sua morte em 1943. Ela nunca mais esculpiu!
Camille viveu em um mundo misógino e conservador. Sua vida “desregrada” e seu temperamento raivoso foram vistos como histeria feminina e, assim, ela foi tratada. Seus restos repousam na vala comum do asilo Ville-Évrard. Outros alunos de Rodin, tais como Charles Despiau e Antoine Bourdelle, tiveram sua produção reconhecida, este último, então, foi professor de Henri Matisse e Giacometti. Camille foi apagada. Até os anos de 1970, seu nome não constava em nenhum livro de história da arte.

Young Roman, 1881–1886. © The Art Institute Chicago.
O jogo virou na década seguinte: envoltos pelo interesse na estatuária do século 19 e na presença de artistas mulheres, historiadores da arte redescobriram a obra de Claudel. Apesar de ser bem-vinda essa projeção, todas as leituras (quase sempre machistas) sobre a escultora recaíam sobre as vicissitudes biográficas, sua relação tumultuada com Rodin e o declínio de seu estado mental.

Giganti (Head of a Bandit), 1885.
© Art Institute of Chicago.
Na tentativa de mudar essa interpretação viciada sobre a artista, em 2017, foi aberto o museu Camille Claudel, em Nogent-sur-Seine, cerca de 100 km a sudeste de Paris. Parece irônico, mas o edifício foi inaugurado em meio às celebrações do centenário de morte de Rodin, que incluíram grandes exposições na capital francesa e o lançamento de uma cinebiografia. Agora, a exposição Camille Claudel deseja ver a escultora “e não mais as fotografias amareladas” que retratam sua vida e obra.
Alecsandra Matias de Oliveira é Doutora
em Artes Visuais (ECA-USP). Pós
doutorado em Artes Visuais (Unesp).
Curadora independente. Professora do
CELACC (ECA-USP). Pesquisadora do
Centro Mario Schenberg de Documentação
e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação
Internacional de Crítica de Arte (AICA). Autora dos livros
Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da
Resistência (MCSP, 2022)
CAMILLE CLAUDEL • THE ART
INSTITUTE OF CHICAGO • EUA •
7/10/2023 A 19/2/2024