
Corpos Sedimentares, 2021. (Detalhe). Foto: © Anna Menezes.
Um fotógrafo do cotidiano é, antes de tudo, um observador, que deve estar atento ao mundo que o cerca e apto a enxergar e retirar do prosaico, imagens únicas. No caso de Anna Menezes, vencedora do 14º Prêmio Garimpo Dasartes 2024 pela comissão julgadora, esse processo se dá em meio às várias caminhadas ela que faz em busca do que está nas frestas do mundo. Preocupada em não esgotar seu olhar para as paisagens cotidianas por onde circula, Anna constantemente se desafia a enxergar o mundo como estrangeira, buscando na paisagem já familiar algo que a movimente.
Em seu processo, a artista não se mantém atenta apenas com seus olhos e lentes da câmera. Mais do que isso, todo o corpo de Anna está implicado em seu trabalho, um corpo flâneur em constante procura. Nessa busca, Anna está particularmente atenta às pedras em seu caminho. E sem metáforas. Enquanto caminha olhando o horizonte, a artista olha constantemente para baixo, para o chão. E é a partir do solo em que pisa que surge o suporte para suas impressões: Anna alia seu ofício de artista a seu interesse pela geologia em um complexo e delicado trabalho de impressão fotográfica sobre pedras, garimpando na paisagem texturas e relevos ideais para cada uma de suas propostas artísticas. Um corpo de artista que às vezes se faz pedra, para fazer, das pedras que encontra, corpos, arte.

Corpos Sedimentares, 2021. Foto: © Anna Menezes.

Foto: © Anna Menezes.
É a partir da união desses dois suportes, tidos como rígidos, as pedras com sua materialidade bruta, e a fotografia, conhecida por capturar instantes, que a artista encontra fluidez para a produção de um jogo de ideias que se materializa diante do espectador. Graduada em Teoria, Crítica e História da Arte pela Universidade de Brasília, esta brasiliense de 27 anos também alia seu trabalho mais formal a uma busca conceitual em um delicado jogo entre imagem e suporte. Quando opta por imprimir as imagens de uma criança preta em pequenas pedras portuguesas, a artista traz à tona todo um histórico de colonização no Brasil. Na relação entre imagem e suporte, estão implícitas não apenas a origem das pedras provenientes do país que invadiu o Brasil há mais de quinhentos anos e todo seu passado escravocrata, mas também sua forma de colocação nas ruas e calçadas, aliada a um meticuloso trabalho manual, remontando a todo um histórico de trabalho e invisibilização de pessoas pretas no país. Estampado nas pedras portuguesas de Ana, aquele menino que se diverte nas águas do mar parece questionar o quanto as crianças de hoje estão gravadas nesse histórico de crueldade. Ao mesmo tempo, há alegria e esperança no gesto da criança que brinca livremente nas ondas do mar. Há beleza e poesia em uma pedra retirada de uma calçada qualquer para ser contemplada em uma galeria. Novos imaginários são possíveis de serem criados. E novos futuros.

Brasil é terra indígena, 2021.

Corpos Sedimentares, 2021.

Corpos Sedimentares, 2021. Foto: © Anna Menezes.

Corpos Sedimentares, 2021. Foto: © Anna Menezes.
A forma como a obra da artista é colocada no espaço expositivo também provoca no público uma sensação de deslocamento e intimidade. Muitas vezes, as pedras de Anna são apresentadas sem qualquer tipo de suporte, no chão, em fileiras ou de forma alternada, levando o espectador a olhar para baixo, a realizar na sala de exposição o mesmo movimento que a artista faz em suas caminhadas. Enquanto se abaixa quase ao nível do chão para se aproximar da obra, o espectador se aproxima também dos fotografados, observa de perto, cria uma relação de intimidade com aqueles anônimos fotografados em um dia qualquer.

Quitéria, Presente!, 2023

Rastros edificados, 2020. Foto: © Anna Menezes.
Talvez a ideia de movimento que a artista tanto buscava no início de seu processo e, a priori, parecia não se completar em sua obra (uma vez que, tanto a fotografia quanto as pedras, são reconhecidamente elementos tidos como estáticos), esteja exatamente nos corpos que Anna põe em contato uns com os outros. Há movimento entre o corpo do fotografado e o corpo do espectador. Há o movimento do fotografado no momento em que sua imagem é capturada. Há o movimento do espectador para ter um contato íntimo com a obra. E há, ainda, outro movimento, um pouco menos óbvio, aquele gerado pelo encontro entre esses dois corpos. Interno. Um movimento oculto que faz lembrar aqueles das placas tectônicas, que se deslocam silenciosamente, sem que a gente perceba, mas são capazes de gerar terremotos.
Leandro Fazolla é ator, historiador e
crítico de arte. Doutorando em Artes
Cênicas. Mestre em Arte e Cultura
Contemporânea, na linha de pesquisa
de História, Teoria e Crítica de Arte.
Diretor Geral do Instituto Cultural Cerne.
14º PRÊMIO GARIMPO DASARTES
PARA NOVOS ARTISTAS • REVISTA
DASARTES • 10/10/2023 A 15/2/2024