De costas, com um vestido de babados rosa, um grande brinco dourado e uma trança presa por um laço preto, Thix vira levemente o rosto para o lado, em um clima de mistério e solenidade. O autorretrato tem ares clássicos, não apenas por aspectos formais de sua pintura como também pela austeridade impressa em sua fisionomia. Seu título, Babado, propõe um sutil jogo de palavras. Ao mesmo tempo que pode se referir aos adornos da vestimenta, remete diretamente a uma gíria bastante comum ao universo LGBTQIAPN+. No vocabulário informal, “babado” pode significar fofoca e, mais do que isso, novidade.
Quando, em 2017, Thix foi estudar pintura na Itália e, de lá, seguiu para a Espanha, deparou-se com a grande presença da arte clássica. Entretanto, essa presença massiva revelava também uma ausência: corpos como o seu não estavam representados nas paredes do museu. Com gênero identificado como pessoa não binário, Thix optou por transferir suas (e de tantos outros) vivências para sua produção, tensionando exatamente aquela estética que parecia lhe excluir. Em sua produção, Thix insere os mais diversos corpos com recortes de gênero, raça e sexualidade, nas paredes dos museus, provocando no espectador uma sensação de estranheza, pois, ao mesmo tempo em que se depara com uma estética com a qual estamos bastante familiarizados, uma vez que, devido a tantos processos colonizadores, a pintura clássica europeia ainda é uma das principais referências no que diz respeito ao nosso contato com a História da Arte, a exclusão histórica de determinados corpos nesta representação é um dado bastante presente.
Corpos como o seu não estavam representados nas paredes do museu
Com sua obra, Thix provoca uma espécie de revisionismo histórico. Usando o clássico termo de Walter Benjamin, parece escovar a história a contrapelo, buscando em suas frestas quem ficou de fora. As diversas lutas e enfrentamentos travados nas últimas décadas contra esse status quo trouxeram à tona uma série de questões identitárias, expondo o quanto esse sistema é excludente. A partir desse processo histórico, as mais diversas identidades emergiram e questões como gênero e representatividade ganharam uma força jamais vista antes. Entretanto, isso não significa que esses corpos passaram a existir só agora. Nas próprias palavras de Thix, “pessoas trans e não binários existem desde os primórdios da humanidade. Ainda que por séculos, nossa presença tenha sido apenas percebida através de códigos ou insinuações – como escavadores, procuramos aqui e ali evidências da nossa existência, brechas onde nossa humanidade pudesse ser reconhecida”.
Assim, aliando representação e representatividade, a partir de sua obra, Thix não apenas insere as identidades não normativas em um sistema hegemônico que sempre as excluiu, como também usa sua arte para fazer referência (e reverência) a figuras fundamentais que têm sido pioneiras em um verdadeiro enfrentamento ao cis-tema vigente. Em suas telas estão nomes fundamentais das lutas políticas e da cultura LGBTQIAPN+ recente, como a pioneira drag queen Isabelita dos Patins, a ativista transgênero Indianara e Siqueira e o artista Rafael Bqueer, entre diversos – muito diversos – outros.
Ao expor esses retratos, por vezes, Thix ignora o modelo expositivo mais comum nas últimas décadas, em que cada tela tem que “respirar”, mantendo distância entre si para que o espectador as contemple isoladamente. Ao contrário, reforça, aqui também, o modelo clássico de séculos anteriores, com obras colocadas lado a lado preenchendo quase na totalidade as paredes do espaço expositivo. Assim, Thix causa um duplo processo: ao mesmo tempo em que desloca o espectador para outro tempo, remetendo a uma História da Arte que não foi, mas poderia e deveria ter sido (quem seriam as personalidades que estariam nessas paredes séculos atrás, caso não houvesse esse violento processo de apagamento histórico?), também apresenta essas personalidades juntas, em coletivo, quase em forma de protesto, como se bradassem: “Enfim, nossos corpos estão aqui, e estarão cada vez mais!”