ALMA EM CHAMAS: ANA MENDIETA “ARDE” NO SESC POMPEIA

Untitled: Silueta Series, Mexico / From Silueta Works in Mexico, 1973-1977, 1976. MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta
Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.
Silhuetas em fogo é a sensacional exposição dedicada à Ana Mendieta, em cartaz no SESC Pompeia, até o próximo 21 de janeiro de 2024.
Os motivos para relatar esse acerto são vários: em primeiro lugar, não é frequente a possibilidade de contemplar simultaneamente um conjunto de 21 filme-performances da artista cubana, naturalizada estadunidense, que faleceu em 1985, em circunstâncias nunca completamente esclarecidas.
Segundo: porque as ações que Ana Mendieta realizou há mais de cinquenta anos não perderam nem um pouco da potência expressiva, poética e política que carregam nelas. Aliás, hoje em dia, parecem gritar mais alto que outrora.
Última nota, não menos importante, é sobre a expografia realizada pelo Estúdio GRU, valorizando de uma maneira exemplar todas as obras, quer vídeos quer fotografias, e, além disso, criando um diálogo aberto e perfeito com os elementos arquitetônicos da Área de Convivência ideada por Lina Bo Bardi. Eis que a penumbra, a iluminação refletindo nas bacias de água e nas pedras, utilização de telas de madeira compondo esse labirinto aberto – onde, ao nosso olhar, é permitido abranger cada esquina e cada “silhueta” – formalizam um ambiente que tudo tem a ver com os elementos recorrentes da prática artística de Ana Mendieta: a própria origem, o amplexo com a terra, o utilizo do seu corpo no espaço.

Ocean Bird (Washup), 1974. MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.
Nascida em Cuba, em 1948, o pai conseguiu embarcá-la a volta dos Estados Unidos com a irmã mais velha, “salvando-as do comunismo” como reporta Karina Bidaseca no livro La revolución será feminista o no será: la piel del arte feminista descolonial: Ana Mendieta, refugiada com 12 anos de idade, começou a sua nova existência em Iowa City, conseguindo rever a mãe somente cinco anos depois. Naquele canto da América do Norte, a artista se graduou em pintura e logo foi se matricular no Programa de Arte de Meios Múltiplos e Vídeo, na mesma Universidade do Iowa, descobrindo a potência das imagens em movimento: a sua primeira obra, de fato, foi uma película abstrata obtida arranhando um filme 35 mm.
O aprendizado da artista, porém, corria: de repente, foram as violências vivenciadas e sofridas devido à política e à necessidade de se adaptar em um país estrangeiro e colonialista a marcar sua poética singular.
Ana Mendieta, com a cerca 15 anos de carreira, formalizou um conjunto de duzentas obras, entre as quais mais de cem vídeos, relatando a condição de exílio pela própria identidade física, utilizando o próprio corpo e seus rastros como meio de expressão, escolhendo aparecer em seus trabalhos, mesmo atuando como puro molde.
“Eu tenho criado um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino (baseado em minha própria silhueta). Acredito que tenha sido resultado direto de atormentada pátria durante minha adolescência. Minha arte é a maneira que eu restabeleço os ossos que me unem ao universo. É o retorno à procura material”, escrevia a artista sobre seu mesmo trabalho, em 1981.

Untitled: Siluete Series (detail), 1978/2023. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.
Contudo, dir-se-ia que as paisagens encenadas por Ana Mendieta são ricas em elementos e pobres em detalhes: mais que um panorama sossegado, de reflexão, trata-se de uma jornada escavando na ancestralidade, na cova do primórdio, trabalhando em feridas nunca saradas.
São recorrentes, ao longo de toda a sua carreira, alguns materiais: a pólvora queimando os escassos retratos traçados no solo, na areia, na grama; as penas de aves que Ana vestiu em Ocean Bird Washup (1974), onde a artista se deixa levar do mar até à beira da praia polvilhada de plumas, assim como acontece no vídeo Blood + Feathers (1974), reconectando-se e homenageando também os ícones religiosos de matriz africana que em Cuba compõem a Santeria, prática cujos saberes e conhecimentos ficam bem longe da cultura ocidental do Norte, a que Ana abraçou por uma vontade externa, aquela que a tinha rasgada do útero materno.

Sandwoman, 1983. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC.
Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Foto: Pauline Rosen-Cros.
Entre as várias etapas da carreira de Mendieta, juntamente a viagens de volta a sua ilha natal, houve também uma profunda aproximação com o México, onde a artista encontrou mais uma vizinhança geográfica e cultural com a própria terra de origem, proporcionando o nascimento de vários trabalhos: a natureza ofereceu ao corpo de Mendieta a oportunidade de se transformar em instrumento total de vida infinita; em Burial Pyramid (gravado nos arredores de Oaxaca, em 1974), o respiro ganha a tamanha potência de derrubar as pedras do próprio enterro.

Ñañigo Burial, 1976. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.
Como fênices as silhuetas da artista se incineram, logo ressurgindo, continuando ressaltando a vida, mesmo que o universo esteja assombrado pela presencia constante da morte, da aniquilação.
Ana Mendieta oferece ao corpo e aos seus sentidos a chance de gritar a própria diferença, para mostrar a dificuldade em se encaixar e se conformar na normatividade do império americano, chegando também – logo no começo, em 1972 – a abraçar as formas da Body Art que estava explodindo na Europa com os violentos recursos, conectados também a uma feroz crítica social, do Acionismo vienense, e com as experiências de artistas como a francesa Gina Pane, tornada célebre com Ação sentimental (1973), performance na qual ficava com espinhos de rosa presos no braço direito, tentativa poética e desesperada de um pedido de amor, como escreveu a crítica italiana Lea Vergine.
Ana Mendieta, nesse caso, adiantando os tempos, trabalhou – como os colegas Urs Lüthi e Pierre Molinier – nas filas da troca de identidade: em Untitled (facial hair transplant), cuja série fotográfica está em mostra no Sesc, a artista colou no seu rosto o que sobrou da barba cortada de um amigo, problematizando com a identidade sexual e os cânones de beleza que a sociedade comprime na dualidade masculino/ feminino.

Anima, 1982. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.

Vista da exposição terra abrecaminhos no Sesc Pompeia. Foto: Renata Armelin.
Mais um motivo atual para não perder esse relâmpago que ainda arde e segue inspirando inteiras gerações de artistas, como se vê perfeitamente na coletiva Terra abrecaminhos – articulada a mostra de Ana Mendieta –, composta por centenas de obras herdeiras dos rumos percorridos pela artista cubana, molhados de sangue e água, queimando carne e espírito.
Matteo Bergamini é jornalista, crítico e
escritor especializado em Arte
Contemporânea. Colabora com a revista
italiana ArtsLife e com a portuguesa
Umbigo Magazine.
ANA MENDIETA: AUX
COMMENCEMENTS• MO.CO
MONTPELLIER CONTEMPORAIN •
FRANÇA • 23/6/2023 A 10/9/2023
ANA MENDIETA: SILHUETAS EM FOGO
E TERRA ABRECAMINHOS • SESC
POMPEIA • SÃO PAULO •
19/9/2023 A 21/1/2024