Resurrection Story with Patrons, 2017 (Detalhe). © Kara Walker

DASARTES 107 /

Kara Walker

NO ATUAL MOMENTO DE VALORIZAÇÃO DE ARTISTAS NEGROS, A OBRA DA NORTE-AMERICANA KARA WALKER SE DESTACA POR CRITICAR A ACEITAÇÃO DE QUALQUER MEIO-TERMO SOBRE O RACISMO Desde a silhueta negra ancestral recortada até aos desenhos mais íntimos, Kara Walker denuncia representações do racismo e da xenofobia. Ao revelar 28 anos de arquivos que permaneceram secretos, […]

NO ATUAL MOMENTO DE VALORIZAÇÃO DE ARTISTAS NEGROS, A OBRA DA NORTE-AMERICANA KARA WALKER SE DESTACA POR CRITICAR A ACEITAÇÃO DE QUALQUER MEIO-TERMO SOBRE O RACISMO

À direita e pág. anteriores: Resurrection Story with Patrons, 2017 (Detalhe). © Kara Walker

Desde a silhueta negra ancestral recortada até aos desenhos mais íntimos, Kara Walker denuncia representações do racismo e da xenofobia. Ao revelar 28 anos de arquivos que permaneceram secretos, a exposição retrospectiva Um buraco negro é tudo o que uma estrela deseja ser, no Kunstmuseum de Basel, expõe uma abordagem artística e ao mesmo tempo rebelde, radical e sem filtros.

Katastwóf Karavan, 2018 | © Kara Walker.

CULTURA AFRO-AMERICANA

O sorriso de Kara Walker em um ligeiro tom de timidez, os gestos precisos, pensados e controlados respondem a uma obra que se propõe a denunciar “catástrofes”. Palavra que ela ostensivamente exibe em uma camiseta durante uma entrevista concedida sobre Katastwóf Karavan (2018, título em crioulo haitiano); um calíope a vapor (instrumento musical vindo de locomotiva com som estridente) montado em uma carroça, que serve de cavalete para o compositor Jason Moran (1975). O músico de jazz retoma canções associadas aos protestos e celebrações da cultura afro-americana que sublinham o trauma histórico da escravidão.

REVIVER A HISTÓRIA

Recortes sutis, desenhos e aquarelas frequentemente combinados em grandes instalações de parede, filmes de 16 mm e projeções de sombras, cenários de ópera, esculturas monumentais… Kara Walker depende de qualquer meio para denunciar, implacável, a violência da história: “Assim que começamos a contar a história do racismo, a revivê-la, criamos um monstro que nos devora”, denuncia a artista, que recusa qualquer submissão ao American way of life engrandecido pelo cinema e pela literatura. “Enquanto as pessoas disserem ‘Ei, você não pertence a este lugar’, parecerá relevante continuar a explorar o terreno do racismo”.

Detalhe de instalação no Renaissance Society, Chicago, 1997 | © Kara Walker.

A REJEIÇÃO DE TODA ESCRAVIDÃO PATRIARCAL

A partir desse soft power alimentado por melodramas históricos e romances populares, ela redefine a violência latente para sublinhar a assimetria das representações entre negros e brancos, entre mulheres e homens, entre escravos e senhores de toda espécie. Ela não poupa mais o mundo da arte, que assume “uma rejeição da subjugação cega às demandas patriarcais de que a arte e os artistas respondam ao mercado, ao homem, à história da arte, à escala ou a qualquer coisa que não seja de sua própria fabricação”.

Gone, 1994 | © Kara Walker.

ENFRENTANDO O RACISMO

Impulsionada desde muito jovem no cenário artístico internacional, Kara Walker, nascida em Stockton (Califórnia) em 1969, vive e trabalha hoje em Nova York. Inseparável de seu status de artista negra, seu trabalho empurra, em todos os sentidos da palavra, sem tabus ou falsa modéstia, as formas mais indizíveis de racismo e sexismo da história americana. Estupro, excisão, assassinato, tortura, expropriações… Kara Walker denuncia a história passada, mas também, mesmo antes do atual movimento Black Lifes Matter, reúne o imaginário de E o Vento Levou e as imagens veiculadas na Internet sobre a tortura de prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib. Compreendemos melhor quando sabemos que a expressão racista dos EUA para designar os árabes é “negrinho da areia”.

SILHUETAS NEGRAS

Suas silhuetas recortadas em papel preto, exibidas em sua primeira mostra no Drawing Center, em 1994, distinguem-se por seus tamanhos, mas também pela ambientação em cena diretamente nas paredes ou na forma de esculturas. Abordando paródias de cenas populares ou livros infantis, Kara Walker traz à tona um sul mítico, antes da Guerra Civil, para um mundo desenfreado onde fantasias e cenas de gênero se misturam. A artista investe a história como um observador severo e agudo, explora o imaginário de questões desestabilizadoras.

A Subtlety or The Marvelous Sugar Baby, 2014 | © Kara Walker.

O AÇÚCAR COMO SÍMBOLO DE CRITÉRIOS

Em 2014, A Subtlety or The Marvelous Sugar Baby, uma enorme esfinge de poliestireno coberta com 30 toneladas de açúcar branco de 11 metros de altura e 23 metros de comprimento, foi instalada na fábrica de açúcar Domino, uma das maiores e mais tradicionais marcas de açúcar dos EUA, detentora de um gigantesco complexo industrial localizado no Brooklyn, Nova York, onde funcionou a maior refinaria de açúcar do mundo no século 19. A obra de arte lembra que o açúcar refinado, um luxo antes usado na decoração de mesas, era colhido por escravos nas plantações de cana-de-açúcar do Caribe. É por isso que o subtítulo da obra especifica que se trata de “uma homenagem aos artesãos mal pagos e sobrecarregados que cultivaram o nosso gosto pela doçura, dos canaviais às cozinhas do Novo Mundo”.

A esfinge simbolizava a transformação de uma escrava negra em uma mulher dominada, parecendo saber as respostas para os enigmas do mundo. Mas foi exposta como uma fera de circo, como foi o caso de Saartjie Baartman (1789-1815), a sul-africana apelidada de Vênus Hotentote, cujas formas “incomuns” causaram sensação ao ser exibida como aberração no início do século 19 na Europa.

DENUNCIE QUALQUER RETRATO “ROMANTIZADO” DE RACISMO

Outra obra monumental, Fons Americanus, uma escultura de quase 13 metros de altura, recentemente exibida em 2019, no Turbine Hall da Tate Modern, em Londres, é descrita pela artista como “uma alegoria do Atlântico negro e de todas as águas do mundo, que desastrosamente liga a África à América, Europa e a prosperidade econômica”. O Atlântico negro é um termo usado pela primeira vez pelo historiador Paul Gilroy (1956) para reconhecer como o legado do comércio transatlântico de escravos moldou o desenvolvimento da identidade e da cultura negra na América e na Europa. A obra é inspirada na fonte do Victoria Memorial, na entrada do Palácio de Buckingham, mas sua narrativa é bem diferente. Ele questiona contos de poder e conta a violenta história do Império Britânico e o papel que os bens roubados da África desempenharam no financiamento do monumento oficial inaugurado em 1911, em homenagem às conquistas da rainha Victoria. Kara Walker está, portanto, juntando-se aos recentes protestos estudantis que visam destruir monumentos que celebram a história colonial nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Fons Americanus, 2019 | © Kara Walker.

28 ANOS DE ARQUIVOS DE LUTAS ÍNTIMAS E ARTÍSTICAS

Se Kara Walker ganhou as manchetes com suas esculturas monumentais, o desenho no papel continua sendo a base de sua prática artística. A abertura de seus arquivos privados, nunca exibidos até agora, permitirá aos visitantes da exposição no Kunstmuseum descobrir um conjunto de cerca de 600 obras criadas pela artista do início dos anos 1990 aos anos 2010.

Pequenos esboços, estudos, colagens, obras de grande formato meticulosamente acabadas vão conviver com notas, reflexões datilografadas… O conjunto será apresentado como uma grande instalação que a artista quer ‘desordenada’, mas mostrará sem filtro o pensamento e a processo de seu trabalho.

“Os desenhos claramente dominam, são feitos de forma espontânea e rápida, mas ilustram o virtuosismo de sua mão, a velocidade de seu pensamento e sua invenção”, adiciona a curadora Anita Haldemann. No catálogo, Kara Walker acrescenta: “Para mim, cada pedaço de papel é a fronteira entre o mundo ordenado e o caos.”

YES, KARA CAN

Os quatro retratos do presidente Obama chamarão a atenção de muitos visitantes. Na verdade, ela não idealiza o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, mas reflete sobre outros ângulos. O que ela mostra não é o heroísmo ou a comemoração espantada do primeiro presidente negro, mas a desilusão que veio com a próxima presidência. Kara Walker aproveita para mostrar uma fantasia: Obama segurando nas mãos a cabeça loira decepada de seu sucessor.

Barack Obama as Othello “The Moor” With the Severed Head of Iago in a New and Revised Ending by Kara E. Walker, 2019 | © Kara Walker

UMA ARTE CONFRONTADA COM A HISTÓRIA

Embora inicialmente permanecendo profundamente enraizada em uma busca estética e íntima, Kara Walker se junta às preocupações políticas que perguntam se a arte pode reparar a violência da história. Ao rastrear todas as encarnações do racismo, abre nossos olhos e expõe nossos conformismos sobre as representações de negros e estrangeiros. Não sem dor coletiva, nem violência íntima. Essa exposição retrospectiva oferece um mergulho excepcional para enfrentamentos.

KARA WALKER: A BLACK HOLE IS EVERYTHING
A STAR LONGS TO BE • KUNSTMUSEUM BASEL •
• SUIÇA • 5/6 A 26/9/2021

Marc Pottier é francês e curador de
arte baseado no Rio de Janeiro.

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