Cape Cod Morning, 1950. © Heirs of Josephine Hopper / 2019, ProLitteris, Zürich. Foto: Smithsonian American Art Museum, Gene Young.

DASARTES 93 /

Edward Hopper

Exposição na Fundação Beyeler se concentra nas representações icônicas de EDWARD HOPPER, da extensão infinita de paisagens a cenas urbanas americanas. Com aquarelas e pinturas a óleo que datam de 1910 a 1960, a mostra fornece uma visão abrangente e emocionante da natureza multifacetada de um dos mais importantes pintores americanos do século 20.

Como explicar que as imagens de Edward Hopper (1882-1967), suas cenas cotidianas e motivos aparentemente triviais tenham se imposto de forma tão preponderante no imaginário artístico de nosso tempo? Ao longo de cinco décadas, o artista produziu imagens belas, intrigantes, hipnóticas. Algumas delas estranhamente perturbadoras. Como conjunto, compartilham a qualidade singular de permanecer reverberando em nossa memória mesmo quando não estamos mais diante delas. Caracterizam-se pela sutileza, objetividade, consistência e por uma integridade. São imagens livres de afetações. Avessas ao adorno, ao espetáculo, ao barulho. Em especial, ao barulho. Em seus melhores quadros, o silêncio é investido de uma tensão quase palpável.

Frame do filme Two or three things I know about Edward Hopper de Wim Wenders, 2020. © Road Movies.

Associado ao Realismo pela familiaridade de seus temas – fachadas de prédios, vitrines de lojas, cafés, estradas, postos de gasolina –, Hopper se destacou sobretudo pela capacidade incomum de expressar não o seu universo visível, mas, justamente, o invisível, o intangível, certa atmosfera muito difícil de ser fixada no instante de uma imagem. Falando sobre o próprio trabalho (o que não gostava de fazer), insistia que o elemento mais importante de uma pintura não poderia ser definido ou explicado.

Western Motel, 1957. Foto: © 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.

O tédio da vida cotidiana em comunidade, o vazio e a solidão pintados por Hopper representam uma espécie de avesso da euforia e do otimismo dos anúncios publicitários que marcaram o pós-guerra nos Estados Unidos. O sonho americano despido de todo seu heroísmo. Rejeitou, no entanto, essas e outras análises, afirmando que a única coisa que tentou fazer foi pintar a luz do sol na superfície dos prédios. Hopper não era avesso apenas a falar sobre seu trabalho, mas a falar de forma geral. Preferia o silêncio. O romancista Jonh dos Passos conta que ele parecia estar sempre na iminência de dizer algo, mas nunca dizia. Desde o início de sua carreira como ilustrador em uma agência de publicidade de Nova Iorque, até o final da vida, quando já havia alcançado o status de monumento vivo da pintura norte-americana, Hopper conservou um temperamento taciturno e certa inclinação à melancolia, aspectos que foram de maneira recorrente usados como lentes de interpretação de seu trabalho. O crítico de arte Brian O’Doherty chegou até mesmo a afirmar que, a despeito da aparente objetividade, toda a sua obra seria um vasto autorretrato. Graças aos diários que sua mulher, a artista Jo Hopper, escreveu por muitos anos, sabe-se que Hopper alternava meses de produtividade com longos períodos de uma inércia incontrolável, nos quais passava dias sentado em uma poltrona sem falar com pessoa alguma. Guy Pène du Bois, que conhecera Hopper na New York School of Art and Design, em 1900, e de quem o pintor permaneceu próximo por toda a vida, escreveu que, embora Hopper fosse o melhor aluno da escola, não era na época um artista – “não é livre o suficiente para isso, tem muita austeridade anglo-saxã”.

Morning in a City, 1944. Foto: © 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.

Mas o jovem introspectivo converteu o puritanismo em pureza das formas e o severo código moral em rigor estilístico e, nesse sentido, é possível afirmar que seu trabalho estabeleceu um diálogo indireto com um movimento artístico com o qual ele não parecia se corresponder, o Abstracionismo. Suas cenas urbanas são esvaziadas de detalhes arquitetônicos. As janelas não têm vidros, são como buracos, e as calçadas se resumem a formas geométricas. As paredes internas, em geral, aparecem nuas. As paredes externas, também com poucas exceções, são lisas e monocromáticas, não exibindo marcas ou vestígios de deterioração. Nesse processo de abstração das formas há também uma qualidade que as aproxima das memórias distantes, aquelas que vão sendo decantadas com o passar dos anos, livrando-se de suas minúcias e de seus contornos e das quais conservamos apenas fragmentos condensados. Há muito pouco distraindo o espectador do que realmente importa nas imagens de Hopper. E quanto menos há para ser visto, mais afiamos o olhar e mais encontramos o que ver.

Cape Ann Granite, 1928.
© Heirs of Josephine Hopper / 2019, ProLitteris, Zürich. Foto: Christie’s

Com o passar dos anos, a economia dos meios e a sintetização das formas de suas composições se intensificam e, no fim da vida, Hopper declarou que gostaria de pintar apenas “a luz do sol em si”, mas lamentou que ela precisasse “estar sempre em alguma forma natural”. A luz, que já foi apontada como o grande tema de sua obra, é utilizada por ele com maestria para segmentar áreas do espaço pictórico, escurecer ou iluminar determinados objetos. Em visita ao museu do Louvre, em Paris, viu-se profundamente impactado pela “luz espiritual” das pinturas holandesas do século 17, em especial nos quadros de Vermeer e Rembrandt, destacando a forma como essa luz se opunha à “luz sensual e profana” das pinturas impressionistas. O fascínio pelos efeitos estéticos do reflexo da luz sobre as formas levou Hopper a explorar com destreza as possibilidades expressivas do pigmento branco na construção de efeitos de luminosidade. Experimentou pintar a luz do sol com uma tinta branca fria, translúcida, quase sem pigmento amarelo, “para conseguir um branco mais brilhante e menos quente, eu uso o branco de zinco”, escreveu em 1959. As belíssimas variações de branco das roupas, das fachadas, das paredes, das nuvens, dos lençóis, em contraste com os tons escuros, de marrons, verdes musgo e vermelhos terrosos produzem os efeitos de claro e escuro que caracterizam várias de suas pinturas. Hopper declarou seu interesse pelas sombras alongadas que despontam diagonalmente no início da manhã e no fim da tarde. Em muitas de suas composições, podemos experimentar essa incerteza da hora – não sabemos se a luz que entra pela janela está avançando para dentro do quarto, varrendo do chão as sombras da noite, ou se está se recolhendo para dar lugar à escuridão.

Hotel Room, 1931.
© 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.

Mas nem toda a luz que invade esses espaços é suficiente para dar nitidez aos rostos das pessoas que os ocupam. As figuras que habitam as cenas de Hopper costumam ter suas feições embaçadas, ou escurecidas pela sombra, como a mulher de Hotel Room (1931), que encarna tão bem a noção de isolamento comumente atribuída às imagens de Hopper. Sentada sobre a cama ainda feita, ela lê de cabeça baixa um papel com a grade de horários da estação trem. Suas roupas estão espalhadas – o chapéu foi deixado em cima do móvel de madeira que aparece no canto direito do quadro, os sapatos estão no chão em frente ao móvel e as malas ainda fechadas repousam no carpete escuro em frente à poltrona verde em cujo braço o vestido da mulher foi apoiado com cuidado. A luz que vem de cima ilumina suavemente o topo da sua cabeça, sua coxa direita e o lençol branco da cama, mas seu rosto está no escuro. O branco das paredes nuas contrasta com o breu da noite lá fora que vemos por trás da persiana semiaberta. A figura da moça parcialmente despida em um quarto de hotel à noite é quase erótica. Mas não exatamente. Há alguma coisa na imagem que adia a ideia de sensualidade.

People in the Sun, 1960. Foto: Smithsonian American Art Museum, Washington DC/ Art Resource, NY © 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.

As pessoas pintadas por Hopper ostentam um estranho alheamento, um olhar indiferente, o pensamento em algum lugar remoto. Sentam-se quietas em cafés, em lobbies de hotéis, em quartos limpos e arrumados olhando estáticas pela janela para alguma coisa que nós espectadores não podemos ver, mas podemos imaginar. Em geral, aparecem mudas e, mesmo quando não estão sozinhas, estão desengajadas. O fato de estas pessoas nas telas de Hopper não se suporem observadas confere às pinturas um tom voyeurístico, como se o pintor e nós, espectadores, espiássemos um momento privado. Em Room in New York (1932), o espectador observa um casal pela janela aberta de seu apartamento. É noite e as luzes da sala estão acesas. De fora, podemos ver a figura do homem que lê concentrado o jornal em sua poltrona. Sua mulher, sentada ao piano em um vestido de festa vermelho, parece estar na iminência de romper o silêncio que tensiona a cena, seu dedo indicador prestes a tocar uma das teclas do instrumento. Muitos anos depois de pintá-lo, Hopper mencionou esse quadro como a síntese visual de muitas impressões sensíveis, imagens de janelas acesas que observava de forma furtiva enquanto caminhava pela cidade à noite.

Room in New York, 1932. Foto © Sheldon Museum of Art © 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.

Apesar de mais conhecido por suas cenas urbanas, pela representação sensível de uma cidade silenciosa, de ruas desertas e pessoas solitárias, uma parte considerável de seu trabalho se refere não a Nova Iorque, mas à Nova Inglaterra – sua natureza, igrejas, estradas, postos de gasolina, faróis e casas à beira-mar. E se as pessoas nos quadros de Hopper costumam ser inertes e apáticas, seus prédios e objetos parecem estranhamente animados. Suas paisagens podem incorporar características subjetivas, tornarem-se eloquentes, misteriosas, sinistras ou ameaçadoras. Algumas são identificadas no título das obras de maneira antropomorfizada, como “a casa solitária” (The Lonely House, 1923) ou “dois puritanos” (Two Puritans, 1945). Desta última, costuma-se dizer que o par de casas brancas, uma mais baixa e compacta ao lado de outra esguia e alongada, faria alusão ao casal Jo e Edward Hopper. Não raro, janelas de prédios lembram olhos abertos e alguns cenários parecem falar no lugar de seus habitantes emudecidos. Essa qualidade insólita não passou despercebida pelo cineasta Alfred Hitchcock, que usou a antiga mansão pintada por Hopper, em House by the Railroad (1925), como modelo para a casa cenográfica de Norman Bates, assassino de seu thriller Psicose (1960). Faz parte da singularidade do realismo de Hopper uma sutil inclinação ao surreal, como se observa em People in the Sun (1960). Nesta tela, um grupo de pessoas de terno e gravata, vestido e salto alto, tomam banho de sol em cadeiras reclinadas na varanda de uma casa à beira da estrada. Com exceção do homem que lê um livro de cabeça baixa atrás do grupo, todos têm sua atenção sequestrada por algo que está para além dos limites da tela. O que estão esperando? Wim Wenders dirá que esperam a morte.

Second Story Sunlight, 1960. © Heirs of Josephine Hopper / 2019, ProLitteris, Zürich. Foto: © 2019.
Digital image Whitney Museum of American Art / Licensed by Scala.

A iconografia associada a Hopper é repleta de imagens de estradas, automóveis, trilhos e estações de trem. Nesse sentido, o movimento e a velocidade, a qualidade que Baudelaire chamou de o “fugidio”, aparecem também como o objeto de uma atenção especial na obra do artista. Mas o interessante no caso de Hopper é que o que se move não é tanto o objeto representado, mas o olhar que o observa. Embora pintasse paisagens e figuras que pareciam suspensas no tempo, Hopper o fazia a partir da perspectiva de um observador que se desloca no espaço. Em suas imagens, portanto, o movimento registrado não é tanto o da realidade efêmera que o pintor observava, mas o de uma forma nova e singular de observar, como se aquelas cenas tivessem sido apreendidas de relance, pelo canto dos olhos de alguém que as vê pela janela de um trem ou pelo para-brisa de um carro em movimento. Se Baudelaire observa e descreve uma passante, Hopper é ele próprio o passante cujo movimento do olhar se inscreve nas imagens. O enquadramento de Gas (1940), por exemplo, sugere a perspectiva do motorista que chega na hora do crepúsculo ao posto de gasolina deserto, como se o espectador da obra estivesse ele mesmo estacionando para abastecer seu carro. Por trás da estrada, a floresta densa. Ao contrário dos prédios, marcados pelos vãos das janelas abertas, diz-se de suas florestas que são sempre impenetráveis.

Hotel Lobby, 1943. Foto: © 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.

O amor de Hopper pelo cinema transparece em seus trabalhos e sabe-se que muito de suas técnicas de iluminação, enquadramento e perspectiva prestam homenagem às técnicas cinematográficas que o artista viu se desenvolverem ao longo da primeira metade do século 20. O cinema, por sua vez, ama Hopper em retorno e nas últimas décadas não parou de lhe prestar justas homenagens. A lista de cineastas que se declaram diretamente influenciados por sua estética é extensa e inclui nomes como Paul Schrader, Norman Jewison, Todd Haynes, Chantal Ackerman, David Lynch, Mike Figgis, Gustav Deutsch e Wim Wenders. Wenders, que acaba de produzir especialmente para a exposição do artista na Fundação Beyeler, em Basel, o filme Duas ou três coisas que sei sobre Edward Hopper, lembra-se do arrebatamento que experimentou quando viu, pela primeira vez, em 1972, uma tela do pintor no Whitney Museum, em Nova Iorque. O cineasta, que passou a adotar as imagens de Hopper como modelo para seu trabalho, percebe os quadros como frames de um filme, instantes de encruzilhadas existenciais em que algo revelador está na iminência de acontecer ou acabou de se passar. São instantes que encontram paralelos na literatura de Joyce e Proust, naqueles momentos de epifania em que, embora pareça não acontecer coisa alguma, tudo se transforma.

 

Railroad Sunset, 1929. © Heirs of Josephine Hopper / 2019, ProLitteris, Zürich. Foto: © 2019. Digital image Whitney Museum of American Art /Licensed by Scala.

Hopper suspendeu o tempo e pintou o silêncio, tornando-o eloquente e transfigurando-o em imagens consistentes e poderosas. E porque sustentar o silêncio e enfrentar o vazio não são tarefas fáceis, nós espectadores nos colocamos diante dessas imagens a criar narrativas, imaginar situações, fantasiar diálogos e conceber destinos para aqueles lugares e pessoas que observamos do outro lado da tela. Somos tomados pelo impulso de enxertar esses intervalos desabitados com nossa intuição, nossos devaneios e desejos. São, portanto, imagens que provocam nossa potência de ficcionalizar, de inventar devires. Discorrer sobre um trabalho como o de Hopper, que prima tanto pelos silêncios e é informado pela ideia de que o mais importante de uma obra não pode ser definido ou explicado, pode parecer uma descompostura. Ou uma empreitada fadada ao fracasso. Eis o paradoxo. Termino de escrever este texto com a sensação de que talvez a maior homenagem que possa ser prestada a Hopper seja mesmo a contemplação silenciosa e o deslumbramento estético diante das cenas sublimes que ele criou. Como disse outro mestre da luz, Mark Rothko, “o silêncio é tão preciso”.

Elisa Maia é doutorando do
programa de Comunicação e
Cultura da ECO-UFRJ.

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