Puerto Rican woman with a beauty mark, N.Y.C., 1965. © Estate of Diane Arbus

DASARTES 121 /

Diane Arbus

EMBORA SUA CARREIRA TENHA DURADO APENAS 15 ANOS, O ESTILO DISTINTO DA FOTÓGRAFA AMERICANA DIANE ARBUS GARANTIU A ELA UM LUGAR ENTRE OS ARTISTAS MAIS SIGNIFICATIVOS DO SÉCULO 20. OS OLHARES DIRETOS E DESAFIADORES QUE NOS ENCONTRAM EM SEUS RETRATOS CONTINUAM A INCENDIAR COM SUA FORTE PRESENÇA – E DESPERTAM RESSONÂNCIA, EMPATIA E DESCONFORTO

Albino sword swallower at a carnival, Md. 1970. © Estate of Diane Arbus

Praticantes de sadomasoquismo; pessoas com o corpo completamente tatuado; um homem com o rosto furado por enormes alfinetes; trapezistas; nudistas; uma albina que engole espadas; um hermafrodita com um cão; pessoas com paralisia cerebral e outras deformidades congênitas; um gigante que sonha em ser comediante; vários anões – estes são alguns dos muitos tipos que habitam as fotografias de Diane Arbus. Tipos que, segundo ela, poderiam ser personagens em um conto de fadas para adultos. Arbus foi buscar seus objetos às margens da sociedade e da moral puritana e os trouxe para o centro de seus icônicos retratos em preto e branco. Ofereceu-os em poses frontais como espécimes exóticas ao olhar contrariado do espectador e também como uma coleção de troféus conquistada por sua coragem de enfrentar o real. “Eu realmente acredito que há coisas que ninguém veria a menos que eu as fotografasse”, diz. Selecionou deliberadamente pessoas de aparência desviante, indivíduos com alguma estranheza aparente, alguns monstruosos, que, em vez de constrangidos pela própria condição, devolvem com franqueza o olhar para a câmera e, mais tarde, para nós, espectadores. Não as pegava desprevenidas, como muitos fotógrafos da época, mas, ao contrário, fazia questão de conhecê-las; ir até as suas casas, de ouvir suas histórias; confraternizar com elas. Defendia que era preciso chegar perto, física e emocionalmente, e gozava da euforia de ganhar sua confiança e de vencer a aversão que sentia por aquelas figuras diante das quais a maioria das pessoas preferia desviar o olhar. Com a chancela de outros tempos e sem qualquer constrangimento, chamava-os de freaks, aberrações. “Eu simplesmente os adorava”, declarou. Interessava-se pelos efeitos que as deformidades físicas tinham nos sujeitos acometidos por elas: “A maioria das pessoas passa a vida aterrorizada com a possibilidades de viver experiências traumáticas. Freaks já nasceram com seu trauma. Já passaram pelo seu teste na vida. São aristocratas”, comenta.

A Jewish Giant at Home with his Parents in the
Bronx, New York, 1970. © Estate of Diane Arbus.

Seu fascínio pelo excêntrico, pelo que foge à normatividade dos modelos, e a forma serena e objetiva com que tratou temas dilacerantes a tornaram uma das artistas mais influentes e, também, mais controversas de sua época. Suas imagens são especialmente despidas de sentimentalismo e parecem se beneficiar de um foco nas “vítimas”, “nos desgraçados”, sem, no entanto, despertar qualquer sentimento de compaixão. Essa característica a distanciaria de alguns de seus contemporâneos, como Bruce Davidson, Danny Lyon e Larry Clark, fotógrafos que também documentaram sujeitos e comunidades marginalizadas, mas cujo trabalho era norteado por uma dimensão social e por um caráter de denúncia que parece ausente na obra de Arbus. Essa ausência lhe rendeu acusações de frieza; voyeurismo; de explorar de forma cruel e obscena indivíduos fragilizados, figuras inconscientes de seus próprios infortúnios, que, lisonjeados pelo interesse de Arbus, se ofereciam ingênua e docilmente à câmera. A essas críticas, corresponderam também autocríticas: “Eu não estou sendo macabra, estou?” – escreveu a uma amiga – “teria sido melhor apenas desviar o olhar?”

Identical twins, 1967.
© Estate of Diane Arbus

Nascida em 1923, em Nova Iorque, em uma família rica e culta, Arbus atravessou a década de 1930 protegida dos efeitos devastadores da Grande Depressão americana: “uma das coisas que me fez sofrer quando criança foi que eu nunca experimentei a adversidade”. Nos relatos de sua infância há menções a passeios com a governanta francesa ao Central Park e visitas à sofisticada loja de departamento dos seus pais na Quinta Avenida, onde Arbus recorda que se sentia “uma princesa num filme horrível”. O irmão mais velho, Howard Nemerov, foi um poeta premiado e é até os dias de hoje uma figura celebrada na cena literária norte-americana. Aos 18 anos, casou-se com o fotógrafo Allan Arbus, com quem teve duas filhas. Como muitas mulheres de sua geração, começou a carreira à sombra do marido, ajudando a produzir as fotos que ele tirava para editoriais de revistas e catálogos de moda. Arbus era encarregada de arrumar pequenos cenários que serviam de pano de fundo para as mercadorias fotografadas. Foi apenas em 1956 que deixou o universo da propaganda para se dedicar ao trabalho mais autoral que a tornou conhecida no meio da arte. De forma sintomática, anos depois Arbus diria: “Eu trabalho a partir do estranhamento. O que quero dizer é que eu não gosto de arrumar as coisas. Quando estou diante de alguma coisa, em vez de arrumá-la, sou eu que me arrumo.” O compromisso a partir daí será o de evidenciar as coisas como elas de fato são, e não como deveriam ser.

Untittled, 1995.
© Estate of Diane Arbus.

Munida de uma câmera 35 mm, Arbus começava a fotografar assiduamente pessoas que encontrava nas ruas, nos parques, nas feiras e nos transportes públicos dos arredores de Manhattan. Sua experiência com propaganda a ajudava a criar imagens diretas e impactantes, mas, na contramão de uma cultura visual que enfatizava padrões estéticos uniformes e idealizados, Arbus passou a eleger seus objetos com base na singularidade. Em 1962, em busca de mais clareza e objetividade em suas fotos, Arbus teve aulas com a fotógrafa Lisette Model, experiência considerada um “divisor de águas” em seu percurso. É a partir desse momento que seus retratos passaram a ser tirados no característico formato quadrado e as imagens foram esvaziadas de digressões e ambiguidades formais. “Para mim, o sujeito fotografado é sempre mais importante do que a fotografia. E mais complexo.” E é na brecha entre o que esse sujeito gostaria de parecer e o que ele não pode evitar mostrar que Arbus encontrou seu terreno mais fértil. A isso ela deu o nome de o intervalo entre a intenção e o efeito. E talvez esteja aí o motivo das poucas fotos que tirou de celebridades serem menos interessantes do que suas fotografias de pessoas anônimas, pois, nelas, os sujeitos, acostumados que estão com as câmeras, mostram-se capazes de controlar melhor essa distância.

Retired man and his wife at home in a nudist camp one morning, N.J., 1963.
© Estate of Diane Arbus

Untittled (1), 1970-1971.
© Estate of Diane Arbus

Untitled (4), 1970-1971.
© Estate of Diane Arbus

Quando se suicidou, em 1971, aos 48 anos, já era uma fotógrafa consagrada, mas os ecos de sua morte, entre os quais se destacam um crescente interesse em sua vida privada e a subsequente publicação de algumas biografias, contribuíram para torná-la uma espécie de lenda da fotografia norte-americana. Prova disso é que, em 1972, ano seguinte ao seu falecimento, Arbus foi a primeira fotógrafa a ter o trabalho incluído na Bienal de Veneza. Ainda nesse ano, uma retrospectiva póstuma do seu trabalho no MOMA atraiu multidões inéditas para as salas do museu, batendo, na época, o recorde de público da instituição. Não faltaram tentativas de explicar seu suicídio por meio de sua arte e interpretar sua arte a partir de seu suicídio. Susan Sontag, a mais célebre e persuasiva entre os críticos de Arbus, afirmou que, a exemplo do que havia acontecido com Sylvia Plath, a atenção que sua obra atraiu depois da sua morte havia sido de outra ordem, “uma espécie de apoteose – o fato de ela ter se suicidado, parece assegurar que sua obra é sincera e não voyeurística, que é compassiva e não fria”, escreveu. Em Sobre Fotografia (1977), Sontag caracterizou a América de Arbus como um “show de horrores” ou uma “vila de idiotas povoada por pessoas patéticas, lamentáveis, repulsivas”. Chamou a atenção ainda para o fato de suas imagens se basearem na distância e gozarem do privilégio de se saber que aquilo que está se vendo é de fato outro. Mas, para encontrar este outro, Arbus não precisou ir muito longe. Ao contrário, achou-o sempre perto de casa, guiada por sua premissa de que a realidade, se olhada de perto e com muita atenção, tornava-se fantástica. Não foi preciso viajar para nenhum país considerado “exótico” em busca de aberrações, uma vez que o “quintal de casa” lhe fornecia um estoque interminável de tipos estranhos e Arbus sabia como ninguém aonde ir para encontrá-los. Fotografou manifestações em favor da guerra do Vietnã, carnavais de rua em Maryland, halloweens em instituições de deficientes mentais, camarins de bailes de travestis nos arredores de Nova Iorque, campos de nudismo em Nova Jersey. Fotografou a Disneylândia, um cenário de Hollywood e um hospital psiquiátrico, onde tirou algumas de suas últimas e mais incômodas fotografias.

E se o escrutínio da realidade, como afirmou Arbus, tem o dom de lhe dar contornos fantásticos, a câmera fotográfica tem certamente o poder de intensificá-los. Não são apenas os sujeitos marginalizados que parecem estranhos em suas fotografias, mas todo o puritanismo norte-americano, quando olhado, através da lente de aumento, também se torna aberrante. O jovem patriota segurando a bandeira dos EUA, cujo entusiasmo febril pelo país configura uma espécie de idiotia, é exemplar nesse sentido. O adolescente de chapéu na marcha a favor da guerra do Vietnã, em cujo broche se lê “bombardeiem Hanói”, também.

Young boy with a button flag in pro-war parade,
1967. © Estate of Diane Arbus

Burlesque comedienne in her dressing room, Atlantic City, NJ, 1963. © Estate of Diane Arbus.

Arbus defendia que as cerimônias e os costumes eram ao mesmo tempo monumentos e sintomas da cultura norte-americana. E, de forma muito hábil, ela foi capaz de evidenciar esses ritos e tradições como verdadeiros freakshows, não menos bizarros do que as prósperas feiras de aberrações de Coney Island, que foram proibidas no início dos anos 1970. Encontrou um terreno fértil para isso nos bailes de idosos aposentados; nos concursos de beleza e de halterofilismo; nas competições de dança onde as crianças estão vestidas como adultos e os idosos como crianças; nos tradicionais bailes americanos que elegem reis e rainhas; nos parques de diversão. Conseguiu também dotar de uma qualidade insólita mesmo as fotografias de pessoas comuns, como os casais nos bancos dos parques, que nos parecem excêntricos, independentemente de terem 15 ou 70 anos, de serem negros ou brancos, homossexuais ou heterossexuais, de estarem nus ou vestidos. Em seus retratos, os bebês são sempre esquisitos, seus rostos enormes e cobertos de fluidos brilhantes. Os gêmeos e trigêmeos aparecem como o estranho por excelência e há, claro, o menino que segura uma granada de brinquedo no Central Park, as pernas finas, a mão enrijecida como uma garra, uma das alças do suspensório caída sobre o braço, a boca contorcida, os olhos arregalados.

Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C, 1962 © Estate of Diane Arbus.
Todas imagens: Cortesia Louisiana Museum of Modern Art

Há certo fatalismo no olhar que Arbus lança ao seu entorno e esse senso de desastre iminente foi capturado por ela em um belíssimo texto no qual ela descreveu um sonho e que bem poderia ser uma sequência de fotos: “estou em um enorme hotel, branco e luxuoso, que está pegando fogo, condenado. Mas o fogo está queimando tão lentamente que as pessoas ainda podem transitar livremente. Não consigo ver o fogo, mas há finos fios de fumaça saindo de todos os lugares, principalmente em volta das luzes. É terrivelmente belo. Estou com pressa, quero fotografar tudo. Vou para o meu quarto buscar alguma coisa que preciso salvar, mas não consigo encontrar. Não sei o que estou procurando, o que devo salvar, quanto tempo tenho até o prédio colapsar, o que devo fazer, quanto devo fotografar. Sou constantemente interrompida. Todos estão ocupados, andando de um lado para o outro, mas as coisas acontecem silenciosa e lentamente. Os elevadores são dourados, é como o naufrágio do Titanic. Estou encantada, mas ansiosa e confusa. Minha vida inteira está ali. Curiosamente, estou sozinha, apesar de haver pessoas ao redor. Elas vão desaparecendo. É como uma espécie de emergência em câmera lenta. Estou no olho do furacão.”

Headless Woman, Palisades
Park, N.J., 1961.
© Estate of Diane Arbus

Meses antes de morrer, Arbus escreveu: “uma fotografia é um segredo sobre um segredo e, quanto mais ela conta, menos você sabe”. Suas melhores fotografias, mesmo as mais diretas e objetivas, conservam o enigma e a força de um estranhamento que, meio século após sua morte, não se deixou empalidecer pelo tempo, tão pouco se deixou domesticar pelo discurso da crítica.

Elisa Maia é doutorando do
programa de Comunicação e
Cultura da ECO-UFRJ.

DIANE ARBUS: FOTOGRAFIER, 1956-
1971 • LOUISIANA MUSEUM OF
MODERN ART • DINAMARCA •
24/3 A 31/7/2022

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