O corpo de trabalho de Lygia Pape (1927-2004), que ela desenvolveu com uma alegria irreprimível de experimentação ao longo de cinco décadas, é caracterizado por uma ampla variedade de mídias e uma abordagem interdisciplinar. Além de pinturas geométricas, desenhos, relevos e xilogravuras abstratas, sua obra inclui composições de balé, poemas, instalações imersivas e performances coletivas em espaços públicos.
Lygia Pape foi uma das figuras-chave do Movimento Neoconcreto no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960. Sua compreensão única da abstração geométrica resultou em uma reconceituação radical da arte construtivista concreta, centrada na ideia da obra aberta. Além das questões éticas e sociopolíticas, Pape incluiu todos os sentidos em suas obras e transformou os espectadores passivos em participantes ativos.
O título da exposição A pele de todos cita um texto de Pape sobre sua obra Divisor (1968), cuja ideia de uma membrana ou pele que tudo conecta no espaço também pode ser aplicada a muitos de seus outros trabalhos.
A mostra apresenta o trabalho multifacetado dessa extraordinária artista e a homenageia como uma voz enriquecedora dentro de um desenvolvimento global da arte.
PINTURA, 1953
O quadro é uma das quatro únicas pinturas a óleo da obra de Lygia Pape. Marca seu início artístico, durante o qual explorou uma linguagem visual abstrata e a cor como meio de expressão sensual. O arranjo construído é inspirado na Arte Concreta, que prima por formas puras e abstratas que não têm qualquer referência ao mundo sensual, mas são criadas puramente mentalmente de acordo com princípios geométrico-matemáticos. Esse movimento artístico exerceu grande influência no cenário artístico brasileiro após o fim da ditadura autoritária de Vargas, em 1945.
A pintura era executada tradicionalmente em óleo sobre tela – técnica que Pape abandonou pouco tempo depois por ser alérgica à tinta a óleo. Logo depois, deu as costas à divisão clássica das categorias de gênero de pintura, escultura e desenho. A pintura a óleo inicial apresenta aspectos que se repetem em seus trabalhos posteriores: o rigor geométrico é quebrado com o uso da cor e das formas vivas.
RELEVOS E PINTURAS, 1954-1956
O Grupo Frente, do qual Pape fazia parte ao lado de Lygia Clark e Hélio Oiticica, aprofundou a abstração geométrica e a arte concreta, encarnada por artistas como Kazimir Malevich, Piet Mondrian e Max Bill. Linhas, retângulos e quadrados em ricas cores primárias, assim como preto e cinza, surgem do fundo branco das pinturas de Pape. O esquema de cores remete ao movimento holandês De Stijl, enquanto as linhas paralelas e cruzadas lembram Malevich.
A jovem cena artística brasileira estava bem informada sobre o modernismo europeu, mas, conscientemente, lidou com isso com bastante liberdade e formulou uma resposta independente. Relevos e pinturas saem do pictórico bidimensional e se projetam no espaço. O movimento por parte do observador é necessário para apreender completamente a forma dos relevos.
TECELARES, 1953-1960
Tecelares é um dos mais importantes conjuntos de obras de Pape. As xilogravuras marcaram a transição entre suas fases concreta e neoconcreta. Para estes, Pape trabalhou painéis de madeira com ferramentas e lixa. Ela então os coloriu com tinta preta e os imprimiu, geralmente apenas uma vez, em papel de arroz levemente transparente. Na imagem, as linhas de granulação e outras endentações aparecem em branco.
Nas composições complexas dos Tecelares, as formas geométricas estritas contrastam fortemente com a estrutura viva da madeira. A irregularidade do material confere às linhas um gesto gráfico. Com os Tecelares, Pape começou a contrariar os rígidos princípios do concretismo e já trabalhava em uma direção mais aberta, neoconcreta.
LIVRO DO TEMPO, 1961-1963
Para este enorme trabalho de parede, Pape desenvolveu 365 variações da forma do quadrado, que se referem aos dias de um ano. Em cada caso, ela retirou partes da forma básica e as adicionou em outro lugar. Pape pintou os quadrados de madeira com tinta têmpera nas cores primárias (vermelho, amarelo e azul), além de laranja, preto e branco.
Assim como no Livro da criação, cada painel — ou seja, cada dia — conta uma nova história. Do mesmo ponto de partida, o tempo permite que surjam inúmeras variações únicas. As peças individuais podem ser lidas como imagens abstraídas da realidade, como símbolos, ou simplesmente como puros jogos geométricos. Embora Pape utilizasse uma linguagem formal abstrata, ela estabeleceu uma referência aberta ao mundo por meio do título.
LIVRO DA CRIAÇÃO, 1959
O Livro da criação é paradigmático da obra de arte neoconcreta que se liberta da forma estática. Pape abandonou o espaço plano da tela e criou um livro-objeto de livro tridimensional. Narra a criação do mundo em 16 episódios, como um poema visual sem palavras. A artista desenvolveu formas espaciais abstratas a partir do quadrado plano, que, juntamente com as cores simbólicas brilhantes, ilustram os episódios individuais.
O livro com suas páginas quadradas soltas só se ativa quando é segurado nas mãos e desdobrado. Como na teoria do não objeto de seu colega Ferreira Gullar, o efeito artístico é criado pela convergência da experiência mental e sensorial. Pape se esforçou para envolver todos os sentidos do espectador – ou melhor, do usuário, e permitir que cada um crie individualmente sua narrativa.
DIVISOR, 1968/1990
As obras de Pape mudaram radicalmente a partir de 1967, incorporando cada vez mais seu ambiente. Com a exposição Nova objetividade brasileira, ela voltou a trabalhar intensamente no campo da arte e se dedicou a novas mídias, como cinema e performance.
Originalmente, ela havia planejado o Divisor para um espaço interior no qual as pessoas enfiariam a cabeça por fendas uniformemente espaçadas em um grande pano branco. Mas como isso não pôde ser realizado, ela levou o pano para a comunidade Chácara de Cabeça, perto de seu ateliê, onde deu para as crianças brincarem e gravou essa primeira ativação em um filme.
As crianças pegaram o pano e intuitivamente descobriram para que foi feito. Eles formaram um novo ser coletivo que se move e é simultaneamente conectado e separado por uma pele comum. Mais tarde, Pape também teve a peça ativada com adultos em vários locais da cidade. Divisor tornou uma metáfora para as massas politizadas nas ruas, protestando contra a ditadura da época.
O OVO, 1967
O filme mostra um ovo quadrado na praia de onde sai uma pessoa: a própria Lygia Pape. A obra consiste em uma moldura de madeira em torno da qual foi esticado um filme plástico, que é rasgado por dentro. Ela concebeu a obra para que pudesse ser reproduzida em qualquer lugar e por qualquer pessoa, sem seu envolvimento direto, e a ativou em vários locais, mudando o participante.
Pape filmou a ação na praia para fins de documentação. Com esse cenário, são evocadas associações com a natureza utópica e intocada. No contexto da ditadura, O ovo explora os limites do que pode ser feito publicamente e concorda com uma expressão ambígua. Todos podem se tornar um novo sujeito participativo enquanto (re)nascimento. O ovo quadrado, no entanto, também simboliza o neoconcreto rompendo com a geometria e o “cubo branco”, o espaço expositivo de paredes brancas.
EAT ME: A GULA OU A LUXÚRIA? 1975
O vídeo mostra um close de duas bocas com batom, uma delas com bigode, ambas devorando e cuspindo pequenos objetos não identificáveis. Com essa obra, explorou a objetificação da mulher na sociedade de consumo. Ao editar o filme, ela aplicou uma regra estritamente conceitual e remontou as partes individuais de tal forma que a imagem pulsava cada vez mais. Ao lado dos gemidos, a pergunta “gula ou luxúria?” pode ser ouvido em vários idiomas.
A atividade de devorar e expelir faz referência ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (1890-1954), que explorava a possibilidade de uma identidade pós-colonial. O termo “antropofagia” se refere a rituais do povo indígena Tupinambá, em que eles (simbolicamente) comiam seus inimigos para assimilar suas qualidades positivas. De Andrade transferiu essa ideia para a forma como se lida com a cultura colonial europeia. Para a produção cultural brasileira, tratava-se de devorá-la em vez de ser devorada por ela, e depois excretá-la, digerida, como algo próprio. Essa ideia continua a moldar a cultura brasileira até hoje.
CATITI-CATITI, NA TERRA DOS BRASIS, 1978
Os estudos de filosofia empreendidos pela artista a partir de 1972 resultaram em uma tese de pós-graduação que abordou a questão do que a arte brasileira poderia abranger em contraste com a arte norte-americana e europeia. O texto parte de um trabalho em vídeo sobre o movimento antropofágico na arte (nº 16). Na língua indígena tupi, catiti-catiti significa “lua nova, oh lua nova”.
O filme parodia imagens e ideias do que é ostensivamente o Brasil. A voz de um deputado acompanha imagens exóticas da praia de Ipanema, da mata atlântica, de uma serraria. A manchete de um jornal flutuando na água anuncia que o decreto do Ato Institucional nº 5, com o qual a junta militar legitimou a censura e a tortura em 1968, passaria a ser cumprido com ainda menos discrição. Ouvem-se textos de autores portugueses elogiando o país “descoberto”. O poeta Luis Otávio Pimentel encarna as três etnias do Brasil, encenando-se caricaturado como índio, branco e negro. Ao final do filme, o protagonista devora frutas exóticas no espírito dos rituais antropofágicos dos Tupinambá.
A fotografia conceitual Manto tupinambá (1996-1999) também se refere aos Tupinambá que, antes da colonização, viviam no local do atual Rio de Janeiro. A foto mostra uma nuvem vermelha sobre a cidade. O projeto, que deveria ser realizado por foguetes de sinalização, e foram classificados como material militar devido às regulamentações de importação, não era viável. A foto conceitual foi tudo o que restou. As tribos Tupinambá faziam capas protetoras vermelhas com penas do íbis-escarlate, que Pape via como um símbolo das culturas indígenas do Brasil. A cor escarlate também remete à história sangrenta da colonização.
TTÉIA 1 C, 2001/2002
Fiada em fio de prata, a gigantesca instalação se estende entre o piso e o teto. Os fios de linha no quarto escuro lembram cordas musicais, seda de aranha, cachoeiras ou raios de luz saindo de uma nuvem. Em 1978-1979, como parte de um seminário com alunos no parque Lage, Pape experimentou pela primeira vez fios que esticaram entre as árvores. Ela continuou a desenvolver essa ideia nas grandes instalações Ttéia, que existem tanto em fio de prata quanto em fio de ouro, até pouco antes de sua morte. Apenas a luz torna o fio visível e dá ao espaço um efeito quase sagrado. Com o mínimo uso de materiais, a obra dá origem a volumes consideráveis e desdobra um grande efeito espacial. O movimento do espectador é essencial para experimentar os efeitos de luz e a sobreposição dos raios.
O título é um jogo de palavras das palavras portuguesas teia (net) e teteia, que coloquialmente se refere a uma pessoa ou coisa graciosa. As Ttéias lembram o primeiro grupo de obras Tecelares, que também se refere à tecelagem do espaço.
Cécile Huber é curadora assistente no
Kunstsammlung. Seus interesses de
pesquisa acadêmica incluem
psicanálise feminista, teoria da arte
e filosofia política e jurídica feminista.
LYGIA PAPE: THE SKIN OF ALL
• KUNSTSAMMLUNG • DÜSSELDORF
• ALEMANHA • 19/3 A 17/7/2022