Fata Morgana nº1, 2022. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

DASARTES 133 /

ANTONIO OBÁ

A OBRA DO ARTISTA BRASILIENSE ANTONIO OBÁ É CONSTITUÍDA POR TRÊS PILARES: A REMEMORAÇÃO DE ACONTECIMENTOS HISTÓRICOS – EM GERAL MARCOS DE VIOLÊNCIA E LUTA POR DIREITOS DE PESSOAS NEGRAS –, A ATRIBUIÇÃO DE NOVOS SIGNIFICADOS A ESSES EPISÓDIOS E O PROCESSO EDUCATIVO

O MENINO REI

Variação sobre Sankofa – Quem toma as rédeas abre caminhos, 2021. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

Há algum tempo, cresce a discussão que envolve autorias, temas e representações na cena artística contemporânea nacional e internacional. Artistas, pesquisadores e instituições repensam sobre sua existência, sobre a condição de seu grupo e seu público; eles reexaminam narrativas históricas, despertam ativismos e reafirmam experiências humanas. Alguns artistas mostram que a narrativa de mulheres e homens negros (não apenas como representados, mas como protagonistas) abrem perspectivas e contam novas histórias – esse é o caso de Antônio Obá (Ceilândia, 1983).

Artista visual, arte-educador e professor, Obá tem apresentado proposições em meios e suportes diversos, tais como o desenho, a pintura, a fotografia, o objeto, a performance, o vídeo e a instalação. O nome escolhido, Obá, significa “rei” (chefe governante do povo edo – Nigéria), mas também é o nome da yabá que representa as águas revoltas – e, assim, sua produção artística tem sido pulsante. São memoráveis as primeiras performances que relacionam arte, corpo e religião, entre elas, as famosas: Atos da Transfiguração – receita para fazer um santo (2016), Malungo: rio para uma missa preta (2016) e Votivos (2017). De modo denso, Obá tem interesse em repensar a identidade dos corpos negros e/ou miscigenados e criar outras histórias.

Crianças suspensas, 2022. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão

Nos trabalhos de Obá, surgem a “escrita de si” e as “imagens ficcionais”. A raiz afro adentra, primeiro, por suas memórias e registros familiares e, depois, pelos ensinamentos vindos da capoeira de Angola. Suas reflexões se direcionam aos corpos históricos; às relações religiosas, em especial àquelas de caráter místico dentro da tradição católica, e ao questionamento daquelas circunstâncias que envolvem preconceito e resistência.

Sua exposição individual Revoada, na Pina Contemporânea, a primeira mostra de um artista brasileiro na Galeria da Praça, recebe o legado da história das exposições de autoria negra. São referências: Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca (2015), Rosana Paulino: a costura da memória (2018) e, mais tarde, Enciclopédia negra (2021), mostra coletiva na qual Antônio Obá apresenta o retrato de Chico Rei. Todas foram exposições que, sobretudo, legitimaram autorias negras no grande circuito das artes visuais – o negro deixou de ser objeto da arte para ser produtor dela. Ocupar as galerias da Pinacoteca com o corpo negro é conquista histórica.

Strange Fruit III, 2018. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão

Revoada, 2023.
© Antonio Obá.
Foto: Isabella Matheus.

A ousadia de Antônio Obá está um grau acima: ele colocou crianças negras naquele espaço. São cerca de 20 pinturas, datadas entre 2018 e 2022, e uma instalação inédita, chamada Revoada – e que dá nome à exposição, com curadoria de Yuri Quevedo e Ana Maria Maia. A instalação é formada por 200 pares de mãos de crianças moldadas em resina que sobrevoam a Galeria da Praça. Assim, as relações entre o espaço e a obra se entrelaçam: inicialmente, porque a Pina Contemporânea integra um complexo formado pelo edifício construído em 1900, no Jardim da Luz, projetado por Ramos de Azevedo e Domiziano Rossi para ser a sede do Liceu de Artes e Ofícios, e pela construção da antiga Escola Estadual Prudente de Morais. Depois, porque, nos últimos meses, Obá organizou oficinas sobre técnicas de fundição no museu, na Ocupação 9 de Julho (Movimento Sem Teto do Centro) e no Colégio Vera Cruz – assim, essas “mãozinhas” têm estrita relação com o lugar e, acima de tudo, com a função daquele espaço: acolher e educar.

Banhistas nº 3 – Espreita, 2020. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão

Wade in the water (after Adriana Varejão), 2019. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão

Revoada se liga à experiência de Obá como professor e também ao seu fascínio pelos ex-votos (o presente dado pelo fiel ao seu santo de devoção) – coisa que o intriga desde menino, quando das romarias do Divino Pai Eterno, em Trindade (interior de Goiás). Ele vê nos objetos depositados, pelo agradecimento ou por promessa, a fé que move homens e mulheres. Ele coloca esse seu encanto como um flerte à espiritualidade católica. Nesse código de fé, as “mãozinhas” estão voando como borboletas – símbolo do recomeço, da mudança, da beleza e das boas energias.

Já nas pinturas, as crianças são negras e mestiças – corpos racializados mediados pelo sagrado, político e social. São personagens cheios de significados. E que diferença! Elas não são “exóticas”, “pitorescas”, “caricaturadas”; não são objetos representados (aqui se assemelham ao léxico de Kerry James Marshall e Lynette Yiadom-Boakye – pintores internacionais com personagens “inequivocamente negros”). Mas Obá se distingue: suas crianças negras estão imersas em um tempo mítico; o olhar de algumas delas é de verdade, de sagacidade, daquela “esperteza de quem está cansado de apanhar”; elas encaram o espectador; não baixam o olhar; outras estão de costas alheias ao nosso olhar; outras nem olhos têm; elas sempre são o pintor; às vezes, são personagens históricos, transformados em arquétipos, mas que têm suas trajetórias alteradas pela ficção e poesia do artista.

Banhistas 3 – espreita (2020) é um exemplo dessa subversão da narrativa: quando, em 1964, um grupo de manifestantes mergulhou na piscina do hotel Monson Motor Lodge, Saint Augustine, Flórida (EUA), em protesto porque, dias antes, Martin Luther King foi vítima de segregação, a reação do gerente do hotel foi jogar ácido muriático na água – a célebre fotografia de Horace Cort registrou a cena. Obá volta ao evento – e não há como não lembrar as piscinas de David Hockney e, ao mesmo tempo, a tradição dos banhistas na história da arte – porém, na imagem construída pelo pintor, o perigo que rodeia os banhistas é um crocodilo. À espreita estão todos: o crocodilo, os banhistas e o homem no canto, atrás do tronco da palmeira, que pisa na corrente rompida, dando acesso à piscina.

Algumas imagens, presentes no repertório do pintor, repetem-se nas telas, selecionadas para a mostra. Além de Banhistas 3 – espreita, as piscinas surgem, Wade in the water (after Adriana Varejão) (2019), Fata Morgana n.º 1 (2022), como é instigante essa referência à água, seu espelhamento e o reflexo da luz sobre a superfície. As crianças também aparecem em meio à paisagem campestre (uma natureza mítica com cores de sonho). Nessa paisagem onírica, destacam-se trabalhos como: Strange fruit III (2018), Strange fruit IV (2018) e Strange fruits – Goiabeira (2019). Pássaros simbólicos estão em: Tocaia (2019), Alvorada – Música incidental black bird (2020) e Variação sobre Sankofa – Quem toma as rédeas abre caminhos (2021). O vocabulário católico – daquele mais popular, evidencia-se com força expressiva em Angelus (2022) e em Crianças suspensas (2022).

Strange Fruits – Goiabeira, 2019. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

Alvorada – Música Incidental Black Bird, 2020. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

Strange Fruit IV, 2018. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão

É inegável que cada tela traz menções à história da arte e a eventos marcados pela resistência; alguns deles partem da experiência dos negros norte-americanos. Em Wade in the water (after Adriana Varejão), por exemplo, tem-se a alusão aos trabalhos da artista brasileira, mas também se refere à canção Wade in the water, com letra atribuída à Harriet Tubman, uma mulher-símbolo da luta pela abolição e, posteriormente, pelo voto feminino nos EUA.

Nas pinturas de Obá, então, as referências são chaves do entendimento, apesar de ele confessar, em algumas entrevistas, que suas telas passam por um processo criativo instintivo: começam com uma imagem mental que se altera, sendo o resultado de várias camadas de tintas e mudanças. No caso da exposição Revoada, as imagens finais integram uma nova iconografia para as crianças negras e mestiças, na qual elas são protagonistas. Acima de tudo, as telas guardam histórias contadas pelo “menino rei”.

Alecsandra Matias de Oliveira é pós-doutorado em Artes Visuais (Unesp).
Doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Mestrado em Comunicação (ECAUSP). Professora do CELACC (ECA-USP). Pesquisadora do Centro
Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA-USP).
Membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Curadora
independente e colaboradora da revista Dasartes, Jornal da USP e
Revista USP

ANTONIO OBÁ: REVOADA • PINACOTECA
CONTEMPORÂNEA • SÃO PAULO • 24/6/2023 A 18/2/2024

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