Nude Crouching in the Tub, 1918 Foto: © Musée d'Orsay, Dist. RMN-Grand Palais/Patrice Schmidt

DASARTES 91 /

Pierre Bonnard

A primeira retrospectiva na Áustria dedicada ao enigmático pintor pós-impressionista PIERRE BONNARD (1867-1947) se concentra no seu trabalho mais maduro, que começa a tomar forma após sua primeira visita ao litoral do sul da frança, em 1909, e sua profunda experiência com a luz do mediterrâneo. Sua paleta muda e as cores incandescentes do sul começam a definir sua obra – e a caracterizam também até o fim de sua vida.

Pierre Bonnard, tímido em público, tinha uma boa vivência do mundo, mas teve que se afastar dele para lidar consigo mesmo artisticamente. A atitude de observação desse pintor intensificou a percepção de sua fuga para a esfera privada. Diz-se que ele recusou uma visita indesejada com um educado “Monsieur Bonnard não está em casa” à porta, onde seu casaco de trabalho lhe dava credibilidade. Mas não se deve confundir reclusão com esquecimento: o extraordinário da pintura de Bonnard é que ela nos mostra uma realidade familiar e estranha. É uma prova de que a aparência de simplicidade pode ocultar a maior complexidade da arte.

Pode-se argumentar que Bonnard teve duas carreiras: a primeira, seu sucesso inicial como membro da boêmia parisiense da década de 1890 e, a segunda, suas realizações como artista maduro, dolorosamente consciente dos problemas do século 20.

Dining Room in the Country, 1913. Foto: © Minneapolis Institute of Art Images.

Por volta de 1912, inspirado nas realizações artísticas de contemporâneos como Henri Matisse, mas também por artistas mais jovens, como Pablo Picasso e Georges Braque, ele mudou fundamentalmente a maneira como usava as cores. Um olhar mais atento às suas obras mostra os meios sutis com os quais Bonnard processou no estúdio suas impressões, transformando-as em composições inovadoras. Muitas vezes, os detalhes e até as figuras se misturam tão intimamente com o ambiente que não são reconhecíveis à primeira vista. Se olharmos para a obra de Bonnard em um contexto maior, momentos importantes se tornam reconhecíveis. A “primeira impressão”, como ele a chamava, pode vir de um evento particular ou de uma nova percepção do comum.

Bonnard encontrou seus temas típicos na vida cotidiana, como os retratos íntimos de sua parceira Marthe de Méligny no banheiro, os momentos de silêncio na rotina diária, os animais de estimação leais, as visões do mundo ou as impressões de seus passeios diários. Sabemos por evidências fotográficas que Bonnard trabalhou esses temas tão diferentes em paralelo.

1912: A COR ME VARREU

The Window (Le Fenêtre), 1925

Essa mudança, que ocorreu por volta de 1912, deveu-se a vários fatores. Em junho de 1909, pela primeira vez, Bonnard passou um longo período no sul da França. Lá, visitou Henri Manguin, envolvido nos experimentos de cores com os quais os Fauves haviam causado um rebuliço em Paris. Quatro anos mais tarde, ficaria impressionado com a forma como a luz radiante influenciou este grupo em sua percepção das cores das coisas, suas sombras e reflexos. Em 1912, ele adquiriu uma pintura em pequeno formato de Matisse, The Open Window, de 1911. Ao mesmo tempo, estava ciente do desenvolvimento de Robert Delaunay ou Sonia Delaunay-Terk, que levou as possibilidades pictóricas de cores complementares ao limite da “pintura pura”.

A abordagem analítica de Bonnard estava se desenvolvendo gradualmente. Passava longos períodos em pensamento antes de trabalhar rapidamente na tela. Lucie Cousturier definiu essa estratégia mais útil de “perda de tempo” da seguinte forma: “[…] quando ele, após uma olhar para a natureza, inicia um trabalho em seu estúdio, no dia seguinte, pela memória cria a mágica naquilo que ele tão lentamente observara.”

Window Open on the Seine (Vernon). 1911-12
(c) Ville de Nice Musée des Beaux- Arts Jules Chéret
Foto: Muriel ANSSENS

Bonnard se dedicou constantemente a seus temas e motivos preferidos: a localização imediata em relação à paisagem mais ampla, a natureza morta de objetos familiares, os interiores habitados e o nu feminino, que mostra principalmente sua parceira e (a partir de 1925) sua esposa Marthe de Méligny realizando rituais cotidianos. Bonnard nunca perdeu o fascínio pela cor (nem na teoria e nem na prática), e seus trabalhos mais recentes já sugeriram em que direção sua abordagem se desenvolveu. Quando combinados, todos esses incentivos liberam uma nova intensidade cromática que moldou os próximos 35 anos de seu trabalho.

1925: O EPÍTOME DO LUXO

The Dining Room, Vernon c. 1925
Foto © Ny Carlsberg Glyptotek, Copenhagen

Nos anos entre guerras, a produtividade contínua e o sucesso artístico ocultavam uma violenta turbulência na vida privada de Bonnard, que deu ao seu trabalho uma profundidade emocional cada vez maior. A morte de sua mãe, em 1919 e, um pouco mais tarde, a de sua cunhada e cunhado, mudaram o relacionamento com a casa da família em Le Grand-Lemps. Outra fase crítica se seguiu em 1925: em agosto, Bonnard se casou discretamente com Marthe de Méligny em Paris, depois de mais de 30 anos morando juntos; em 9 de setembro, Renée Monchaty, sua modelo e amante, cometeu suicídio. Embora esse trágico incidente tenha afetado os Bonnards, em 27 de fevereiro de 1926, eles compraram outra casa pequena em Le Cannet, acima de Cannes, possivelmente para proteger seu relacionamento. O trabalho de renovação necessário e a estadia de Bonnard nos EUA (como jurado na Exposição Internacional Carnegie) atrasaram a mudança para “Le Bosquet” até janeiro de 1927.

Em 1925, Bonnard pintou a primeira de quatro pinturas mostrando Méligny deitada na banheira. Ela data de antes da mudança para “Le Bosquet” (onde os outras emergiram mais tarde), mas introduz o formato. Embora as referências a obras de arte mais antigas possam ser reconhecidas, o artista encontrou sua própria forma para essa topografia iconográfica. A reprodução distorcida das partes do corpo sob a água, particularmente onde o pescoço e a cabeça se projetam, e os reflexos da luz na sala são notáveis.

Nude in the Bath, 1936-38
Musée d’Art moderne de la Ville de Paris/
Roger-Viollet

Além desses efeitos ópticos, a imagem também tem algo assustador. O corpo nu, nivelado e mole de De Méligny, flutuando na água, foi descrito como uma “imagem perturbadora e erótica”, e em outros lugares é mencionado como o “isolamento em forma de sepultura na banheira”.

1944: SERVINDO A HUMANIDADE PINTANDO

Em setembro de 1939, após a mobilização geral francesa na segunda quinzena de agosto, os Bonnards se mudaram para “Le Bosquet”, para ali suportar a guerra. Sete meses depois, em abril de 1940, por sugestão do pintor Augustus John, Bonnard foi eleito como membro honorário da Royal Academy of Arts, em Londres.

Nessas circunstâncias, a mudança dos Bonnards para Le Cannet foi uma decisão sábia. A saúde de De Méligny piorou lentamente, mas constantemente, e ela ficou cada vez mais alienada do mundo exterior. Enquanto estava em casa, Bonnard andava pela cidade todas as manhãs fazendo esboços – trabalho preparatório para suas paisagens cada vez mais abstratas. A correspondência com Matisse mostra que refugiados de toda a França já chegaram à região e que agora era difícil obter materiais para pintura a óleo, carvão e desenho. Carne e ovos não estavam mais no cardápio dos Bonnards, os produtos de sua horta em Le Cannet haviam se tornado essenciais para a sobrevivência – um sentimento de privação que acrescentou importância ao surgimento sazonal de frutas nas naturezas-mortas da época. Durante a guerra, a preocupação do pintor com sua esposa durante o inverno rigoroso de 1941 – o sofrimento dela é descrito como “uma espécie de distúrbio cerebral que dura várias semanas” – o colocou em contato com os círculos do governo, resultando no retrato do chefe de estado em Vichy, Philippe Pétain.

Summer, 1917

Após uma doença grave nos pulmões e intestinos, de Méligny morreu de um ataque cardíaco em janeiro de 1942, com 73 anos. Relembrando meio século de convivência, Bonnard confidencia a Matisse seu desespero: “minha dor e solidão cheias de amargura e minha preocupação com a vida que ainda posso levar”. Pouco depois, ele também teve problemas de saúde e, no final de 1942, passou algum tempo em uma clínica em Cannes.

O que Bonnard estava experimentando no final de sua vida pode ser visto nas obras nas paredes de seu estúdio, que foram capturadas por vários fotógrafos. Os registros confirmam que ele seguiu seu próprio conselho “de trabalhar em várias pinturas no mesmo horário todos os dias”, ao mostrar que ele vagueava entre as telas fixadas na parede. Essa abordagem simultânea pode explicar em parte o longo processo de criação de obras individuais. Além de trabalhos comissionados, este método era aplicado a projetos em andamento, como a última das cenas no banheiro, que ele completou apenas alguns anos após a morte de Méligny, bem como O terraço à luz do sol (1939-1946). Devido ao amplo formato panorâmico e aos ricos tons de rosa e amarelo contra o fundo azul, a pintura parece convidativa e enigmática ao mesmo tempo. Parece que o pintor está nos pedindo para entrar na imagem, mas ele não determina um foco preciso, de modo que a ampla visão se abre para o irreconhecível. No contexto da época, O terraço à luz do sol poderia ser entendido como o exame do artista sobre seu lugar no mundo: tanto a incerteza quanto as novas possibilidades são traduzidas em cores, por assim dizer. Como em Paraíso terrestre, que Bonnard projetou no final da Primeira Guerra Mundial, o terraço se abre para um mundo que é visto com otimismo cuidadoso. Pode ser visto como a vontade de um artista que estava ciente de que esse futuro pertenceria a outros.

Nude in an Interior c. 1935
National Gallery of Art, Washington, USA

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