COR, RUÍNA E UTOPIA
O Staatliche Museen zu Berlin, gigantesca instituição cultural alemã, traria entre abril e outubro de 2020 a exposição It wasn’t us, de Katharina Grosse, com curadoria de Udo Kittelmann e Gabriele Knapstein. As imensas intervenções pictórico-esculturais da artista alemã mudaram a cara da entrada e das redondezas do Hamburger Bahnhof – Museum für Gegenwart (Berlim), um dos museus sob a guarda do Staatliche Museen. Mas, devido à pandemia global do Coronavírus, a exibição foi adiada. Mesmo com o adiamento, ou melhor, principalmente por ele, é preciso discutir a obra de Katharina Grosse: pois, nos espaços coloridos que cria, o trabalho parece desdobrar promessas de um mundo outro.
A artista apresentou várias exposições solo nos últimos anos, entre as instituições que as abrigaram, destacam-se: em 2015, o Museum Wiesbaden e, em 2018, a National Gallery de Praga, a Villa Medici (Roma), a Carriageworks (Sydney) e o Chi K11 Art Museum (Xangai). Também teve trabalhos exibidos em bienais e trienais: Sydney (1998), São Paulo (2002), Nova Orleans (2008), Curitiba (2013), Veneza (2015) e Aarhus (2017). Sem falar nas diversas intervenções em exteriores, encomendadas por instituições como o MoMA PS1, em Nova York (2016). Katharina Grosse se firma cada vez mais como artista de influência – e o faz principalmente através da cor.
Em um curta metragem feito pela Art21,[1] a artista aponta como, ao longo de uma história da arte escrita por homens, a cor tendeu a ser lida como um elemento obscuro e irracional da pintura, como seu lado menos inteligente quando confrontado com o da linha, da forma ou do conceito. Esse foi um dos problemas enfrentados por alguém como Monet, por exemplo, cuja força da cor e da pincelada se firmava no deslimite, no esfacelamento dos contornos. Grosse aponta que é justamente o caráter anárquico da cor que constitui sua inteligência: ao botar abaixo as linhas e, com elas, as fronteiras da visão, a cor nos faz (re)pensar.
E um pensamento leva a outro: “como a cor ou a tinta se colocam sobre a tela?”, pergunta Grosse, em entrevista.[2] Mais ainda: “por que pinturas seguem as paredes pré-estabelecidas? (…) Poderia a pintura se comportar diferentemente em determinados espaços?”. Se, desde a Renascença, a superfície bidimensional da tela é o espaço da pintura, fazendo desta uma tentativa de janela para o mundo (no regime representativo), Katharina Grosse inverte os termos: quer transformar o espaço, feito de lugares e coisas, na tela da pintura – precipitando o próprio mundo como janela (para si mesmo e para além de si). “Percebi que a pintura poderia estar em qualquer lugar. Poderia estar em um canto. Ela é fluida como o filme”, conta Grosse.
Interessante como a descoberta da artista traça um paralelo com os Relevos de canto (1915) do jovem Tatlin, que também enfrentava limitações espaciais, da pintura (parede) à escultura (chão). O “canto” dá nome a um entrelugar: ao vértice que resulta da interseção dos espaços. É o que vemos em Wunderbild (2018), onde Grosse projeta um corredor de telas gigantescas que superam as paredes e se espraiam pelo chão; ou em I think this is a Pine Tree (2013), onde ela monta e colore três grandes troncos de árvore apoiados em ângulo do chão à parede.
Contudo, se o construtivismo de Tatlin se concentrava em relevos, formas e materiais, Grosse, influenciada pelo expressionismo abstrato, acrescenta um foco também na cor (e no tamanho!). Palco de uma dança entre pigmentos, volumes, contravolumes e pontos de apoio, o “canto” é, ao mesmo tempo, a morada fixa das pinturas topográficas de Grosse e o vácuo dinâmico por onde elas se expandem. Ou seja, com precisão etimológica, o “canto”, aqui, é utopia: u (não) + topos (lugar), segundo a criação de Morus. É uma antitopologia móvel, por onde navegam as obras de Grosse, entre apoio e suspensão, material e fictício.
Outro dado primordial dessas obras é a escala. Vistas de longe, por foto, mostram-se impactantes: são imensidões de cor e relevo que tornam pequeninos os visitantes. No entanto, presencialmente, o tamanho das obras nos convida a adentrá-las. Em The horse trotted another couple of meters, then it stoped (2018), por exemplo, a tela, presa desde o teto, escorre pelas paredes e forma o próprio chão por onde deve pisar o visitante. Difícil não se lembrar dos Sonhos (1990), de Akira Kurosawa, que, em dado momento do filme, mostram um espectador literalmente entrando nos quadros de Van Gogh, perdendo-se por entre as pinceladas.
Em The horse trotted…, envolvido pelo que vê (e pisa), o espectador se põe no epicentro de um dilúvio pictórico. A tela se desfralda desde o teto em relevos sinuosos, cujos meandros enfatizam não só o dinamismo da cor, mas também sua fluidez sem forma. Assim, a transposição da fronteira do traço nos lança para dentro de ondas, correntezas e escorrimentos, ou para dentro de florestas, ecossistemas pictóricos. Em Grosse, a junção do pigmento com a escala nos evidencia a própria escala da cor: seus próprios ritmos, energias e intensidades, seus modos de ser e de pensar.
São questões abarcadas desde o processo da artista, que, ao pintar manualmente com aerossol industrial, garante movimentos ágeis, fluidos e sem contornos muito definidos. Grosse diz preferir a mobilidade do pensamento à fixidez de ideias categóricas. Influenciada, segundo ela mesma, pela arte conceitual e equipada com sua pistola de tinta, a artista colore como pensa: movendo-se. Ela fala de seu encanto pelas cores “cruas”, também garantidas pelo pigmento industrial, que é opaco e intenso. Por isso, aliás, seus emaranhados de cores não são exatamente misturas, mas composições: como na música, construída por intervalos melódicos ao longo do tempo, em Grosse, assistimos a intervalos pictóricos ao longo dos relevos.
Mas ainda é preciso citar outro elemento: a materialidade das coisas e dos lugares que servem de suporte. Já vimos as três árvores, e podemos acrescentar: Mumbling Mud – Underground (2018), onde terra e escombros formam o meio para a dispersão pictórica de Grosse; ou, mais dramaticamente, Asphalt air and hair (2017), Psycholustro – The Wharehouse (2014) e Rockaway (2016), três obras irmãs, realizadas em exteriores. Como escreve Julia Eckert para o catálogo da exposição It wasn’t us, ao transpassar fronteiras com a cor, Katharina Grosse estabelece novas correlações, contudo, “o que estava lá antes não desaparece, mas permanece visível como um vestígio de algo pretérito, agora despido de sentido”.[3]
Ou seja, os “cantos” de Grosse, tanto no sentido das quinas de apoio, quanto no da composição melódica das cores, florescem a partir de ruínas. São espaços e coisas que visivelmente estão aí, mas claramente já deixaram de ser. A artista diz que “é como se alguma coisa tivesse acontecido”, como se um evento dramático tivesse transformado a paisagem em um momento em que ninguém estava presente. Testemunhamos os restos de uma inflexão, de uma dobra do mundo sobre si mesmo que o fez explodir em cor. Como resultado, formam-se novos territórios, “cantos” que agora nem parede têm, são como raros oásis pictóricos.
Em Grosse, as ruínas viabilizam essas utopias da cor. Cruzamentos paradoxais de tempos e espaços fundados pelo derramamento da tela sobre o mundo. São pinturas topográficas, que não abandonam só a bidimensionalidade das paredes, mas também a noção fronteiriça de moldura e, como escreve Julia Eckert, põem abaixo os maniqueísmos dentro-fora, natural-artificial.
Em tempos de pandemia, repensar os espaços se torna vital. Hoje as ruas se esvaziam: parecem ruínas, projetadas à luz de um passado não pandêmico. Os lares, por sua vez, surgem como ilhas utópicas: os últimos lugares onde as máscaras ainda não são obrigatórias. Talvez as cores expansivas de Katharina Grosse, ao devassarem certas fronteiras, sussurrem-nos que repensar os espaços é também ressonhá-los.
Nicholas Andueza é doutorando bolsista em Comunicação e Cultura na UFRJ, é professor de
cinema em cursos em Nova Friburgo e trabalha como editor.
KATHARINA GROSSE: SHIFTING THE STARS
• CENTRE POMPIDOU METZ •
FRANÇA • 1/6/24 A 24/2/25
[1] Curta metragem Painting with color (2015). Disponível em: <https://art21.org/watch/extended-play/katharina-grosse-painting-with-color-short/>.
[2] Entrevista também publicada na Art21 (2018) e feita por Susan Sollins. Disponível em: <https://art21.org/read/katharina-grosse-contending-with-the-history-of-painting/>.
[3] Trecho disponível em: <https://www.smb.museum/en/exhibitions/detail/katharina-grosse/>.