DASARTES 142 /

CECILIA VICUÑA

PINACOTECA DE SÃO PAULO DEDICA UMA MONUMENTAL EXPOSIÇÃO À CECILIA VICUÑA, ARTISTA PIONEIRA, POETISA, ATIVISTA E CINEASTA QUE EXPLORA TEMAS DE MEMÓRIA, LINGUAGEM, CIÊNCIA E ESPIRITUALIDADE E CONHECIMENTO INDÍGENA

endigame Mamita, 1977. © Cecilia Vicuña

Cecilia Vicuña, que nasceu em Santiago, Chile, em 1948, vive e trabalha em Nova York há quarenta anos. Recebeu em abril deste ano o prêmio Leão de Ouro na Bienal de Veneza 2022, uma homenagem ao trabalho desenvolvido sobre temas como direitos humanos e preservação do meio ambiente. Tem em sua prática multidisciplinar, e que é explorada nesta nova mostra, pinturas, trabalhos em papel, têxteis, filmes e instalação site-specific.

Suas primeiras pinturas figurativas foram concebidas como um ato decolonizador para subverter a tradição do óleo imposta à cultura indígena. Essas obras entrelaçam sua biografia com a história da ascensão do socialismo. Após o golpe militar de Pinochet, Vicuña se exilou em Londres e o ativismo político de sua arte se intensificou.

Ao longo de uma carreira de mais de cinco décadas, Cecilia Vicuña envolveu arte, poesia, cinema e ativismo em suas atividades criativas e intelectuais.

QUIPU

Na década de 1960, Vicuña iniciou suas esculturas de fios de lã. O quipu – na ortografia quíchua, khipu, que significa “nó” – é um dispositivo de gravação indígena andino no qual o nó em fios coloridos era usado para transmitir informações numéricas e narrativas complexas. Esse sistema foi abolido pelos colonizadores europeus em 1600, um século após sua chegada ao continente americano. Vicuña traz vida de volta ao quipu, reativando seu poder em uma resposta artística contra as disparidades culturais, ecológicas, econômicas e de gênero. Ela criou seu Quipus – esculturas suspensas feitas de fios suspensos de lã atada e não fiada, e às vezes incluindo tecidos ou objetos encontrados – desde meados da década de 1960. Apesar de diversas e em diferentes formas e tamanhos, essas obras são todos poemas no espaço que, para a artista, funcionam como cordões umbilicais ao cosmos e testemunhos de saberes e resistências indígenas.

A instalação Quipu del extermínio é composta por três quipus individuais, cada um pendurado em um anel de diâmetro diferente, e usando uma cor específica para representar diferentes estágios de existência: vermelho, sendo a cor do sangue e da vida; preto, morte; e branco, luto e ressurreição. Cada um dos quipus é formado a partir de vários objetos encontrados, incluindo, entre muitas outras coisas, galhos e fios, lã e fibras, conchas e pedras, redes tecidas, amuletos e objetos amorfos que se assemelham a cordões umbilicais ou intestinos vestidos com bandagens de pano.

ALEGRIA E DOR

Pantera negra y yo (II), 1978.

Vicuña retrata duas fases diferentes de sua vida: antes e depois do golpe chileno de 1973, em que o governo socialista, democraticamente eleito do país, foi substituído pelo regime militar. Nessas duas pinturas, expressa a alegria antes da ditadura, quando foi possível sentir a sensação de libertação, e a tristeza depois, no exílio. Em Pantera negra y yo, Vicuña se apresenta no que parece ser um jardim metafísico; nele, seu corpo nu é multiplicado três vezes e uma pantera negra (referente ao Partido dos Panteras Negras) se agacha por perto, pronta para atacá-la, algo que ela explica que está disposta a aceitar com alegria para se tornar uma lutadora pela justiça e contra o racismo.

La Vicuña, 1977. Foto: © Cecilia Vicuña.

Em um segundo autorretrato, La Vicuña, a artista brinca com seu sobrenome, que também é o nome de um animal selvagem andino considerado sagrado pelos incas e cuja lã historicamente era usada exclusivamente para fazer tecidos para a classe dominante e como oferendas aos deuses. Na pintura, Vicuña se posiciona desafiadoramente sobre as rochas andinas, seu corpo e o do animal quase se tornando um, relacionando seu corpo migrante no exílio ao do animal. Ela está nua, exceto por um lenço, metade do qual retrata a ditadura militar no Chile em preto e branco, enquanto a outra metade ilustra em cores a resistência à sua opressão por meio de cenas de canto, escrita, ativismo, amor, alegria e sexo.

SONHOS

Janis Joe (Janis Joplin and Joe Cocker), 1971. Collection of Eduardo F. Costantini. Foto: © Cecilia Vicuña

Janis Joe, criado em 1971, celebra a influência dos cantores Janis Joplin e Joe Cocker. A pintura mistura imagens da realidade com outras originadas em sonhos; juntos, eles capturam o espírito revolucionário do início dos anos 1970 em uma linguagem pictórica que evoca quadrinhos e arte pop, ao mesmo tempo em que incorpora as preocupações da política esquerdista radical, ampla experimentação nas artes e um interesse pela metafísica não ocidental. Joplin, que havia morrido no ano anterior, ocupa o centro da tela, retratada três vezes como se fosse a Santíssima Trindade daquela época, enquanto Cocker canta nas proximidades. Ao redor deles estão várias representações de Vicuña, seu parceiro, e Tribu No, um grupo de amigos, poetas e artistas fundada pela artista. Outras cenas incluem a ativista e filósofa Angela Davis fugindo da prisão, Vicuña voando sobre um jardim, Vicuña e seu parceiro nus como Adão e Eva no paraíso, a primeira menstruação de Vicuña, um casal envolvido em uma descoberta sexual e um comício feminista que se autodenomina “Irmãs do sangue precioso”. Essas imagens giram juntas para se tornar um mantra por meio do qual a artista visualiza o acesso a estados mais elevados de consciência. É uma invocação baseada na crença no poder dos sonhos e da revolução, e nas convicções de que o amor pode mudar o mundo e o paraíso é possível na terra.

ALEGRIA

Biombo casita para pensar qué situación real me conviene, 1971. Courtesy the artist and Lehmann Maupin. Foto: © Cecilia Vicuña

Biombo é uma peça colonial que servia como divisor de ambientes e muitas vezes trazia pinturas sobre a conquista das Américas. O nome deriva das telas pintadas, conhecidas como byōbu (de byō, que significa proteção e bu, vento), produzidas no Japão no século 8.º e trazidas para as Américas pelos espanhóis no século 16.

Feito de seis painéis de dupla face, Casita para pensar qué situación real me conviene (Biombo) é uma apropriação decolonial do biombo tradicional. A obra imersiva foi instalada em forma hexagonal, na qual os visitantes podem entrar. Foi projetado para funcionar como uma casita (casa) ou abrigo, proporcionando espaço para a transformação subversiva e a descoberta da alegria potencial de uma revolução pacífica, democrática e não violenta. No interior, o espectador encontra seis figuras pintadas à altura de Vicuña, uma por painel, entre eles: uma poetisa, um ativista comunitário, uma guerrilheira norte-vietnamita e uma pessoa do futuro liberta do consumo capitalista. No lugar de cada rosto, Vicuña colocou um espelho, permitindo que os espectadores se vejam transformados, por meio do reflexo, nesses personagens.

PENSAMENTO

Karl Marx, 1972

O retrato de Karl Marx, filósofo alemão e ideólogo do comunismo, pertence à série Heróis da Revolução (1972), que inclui figuras políticas masculinas Vladimir Lenin e Fidel Castro, retratados dançando com Salvador Allende. Os retratos de Vicuña desses homens evocam imagens de ícones religiosos, mas, em vez de glorificá-los, ela subverte os sistemas patriarcais que eles defendem. Aqui, Marx é mostrado em um jardim de delícias eternas onde corpos homossexuais amorosos comungam com a natureza. Para Vicuña, gênero e diversidade sexual eram intrínsecos à revolução; ela disse, em 1974: “O socialismo tem que ser caloroso e erótico”. Ela também coloca as mãos de Marx na posição de um mudra budista, sinalizando a iluminação e o compromisso com a libertação.

LIBERTAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

Sueño (Los indios matan al papa), 1971. Collection MALBA. Foto: © Cecilia Vicuña

Vicuña usa a pintura como ferramenta de decolonização para imaginar outros mundos onde as populações indígenas, negras e femininas, historicamente oprimidas das Américas, possam se tornar agentes de liberdade, mudança e transformação de sociedade.

A cena mostrada em Sueño vem de um sonho da artista em que o tio dela, o poeta Miguel Vicuña, a alerta: “Cecilia: a Revolução começou! Todos os índios em todas as Américas estão se levantando em armas e mataram o Papa!”. Em um texto escrito para acompanhar a pintura, Vicuña acrescenta: “Há muito que esperava este dia. Os índios vão se organizar para defender suas terras e recuperar sua dignidade e mundo e no sonho, estava acontecendo. Eu pulo e danço de alegria.” A pintura apresenta um elenco de figuras de uma série de grupos indígenas do México, Guatemala, Chile, Peru, Bolívia e Brasil, todos apontando suas flechas para a imagem do Papa Paulo VI, que liderou a Igreja Católica de 1963 a 1978. Sueño é a resposta de Vicuña a cinco séculos de violência, colonização e tentativa de erradicação de culturas indígenas nas Américas por meio de conversão religiosa forçada e evangelização.

La mulata costeña de Colombia, ca. 1977. Courtesy the artist and Lehmann Maupin. Foto: © Cecilia Vicuñ

Já o título da obra La Mulata Costeña de Colômbia, descreve seu tema, a costeña (que significa alguém originário do litoral), como mulata, termo que hoje é considerado depreciativo, mas, na época, era usado na costa caribenha colombiana como conotação positiva para significar negros afro-latinos e pessoas de raça mista. Mais recentemente, algumas comunidades afro-latinas reivindicaram a palavra como um sinal de empoderamento. Produzida enquanto Vicuña morava na Colômbia, a pintura apresenta uma lutadora negra retratada como uma figura materna inaugurando uma transformação do mundo. A metade direita da pintura ilustra o mundo atual dominado pelos homens e a metade esquerda mostra uma realidade alternativa com um tipo diferente de insurreição, visualizando um mundo liderado por mulheres, onde elas são encarregadas de cultivar a terra e administrar a indústria, e onde revolucionárias e bailarinas coexistem em harmonia.

EXTINÇÃO E LUTA PELA VIDA

Liderezas (Indigenous Women Leaders), 2022. Courtesy the artist and Lehmann Maupin. Foto: © Cecilia Vicuña

Especialmente feita para essa exposição, Liderezas reconhece o papel vital das lideranças indígenas como ativistas ambientais e guardiãs dos recursos naturais e do conhecimento indígena. A pintura homenageia sua força e evidencia sua vulnerabilidade, retratando entre o grupo duas ativistas que foram assassinadas. No topo, aparece Berta Cáceres, líder lenape de Honduras que, em 2016, foi morta a tiros em casa por seu trabalho de resistência à construção de hidrelétricas no rio Gualcarque, que é sagrado para a população indígena local. À sua direita, está María Taant, uma líder e ativista Shuar do Equador, morta em um incidente de atropelamento devido às objeções dela à mineração na Amazônia. As outras três mulheres retratadas são ativas em causas ecopolíticas cruciais hoje como Nemonte Nenquimo, no centro, uma ativista indígena da Nação Waorani na Região Amazônica do Equador, que, em 2019, liderou uma campanha que conseguiu proteger 500 mil acres de floresta amazônica e território Waorani da extração de petróleo. A presença dessas cinco figuras é uma afirmação de sua força, mas também um lembrete das ameaças que enfrentam pela defesa de suas causas. Juntas, elas atuam como uma bússola, um Cruzeiro do Sul, uma constelação de luz que pode guiar a humanidade para um futuro de existência harmoniosa entre si e entre a natureza.

Pablo León de la Barra é curador
geral de Arte Latinoamericana no
Guggenheim Nova York.

Joan Young é diretora sênior de
assuntos curatoriais no Guggenheim
Nova York.

CECILIA VICUÑA: SONHAR A ÁGUA – UMA RETROSPETIVA DO FUTUROEDIFÍCIO PINA CONTEMPORÂNEA • SÃO PAULO • 18/5 A 15/9/2024

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