Thresholds. Pavilhão da Alemanha. Foto: © Matteo de Mayda. Cortesia: La Biennale di Venezia.

DASARTES 143 /

Bienal de Veneza

A CHANCE PERDIDA DA BIENAL DE VENEZA
DIRETORA DA DASARTES COMPARTILHA SUAS CONSIDERAÇÕES PESSOAIS E DESANIMADAS SOBRE UMA BIENNALE CARREGADA DE CLICHÊS

Super Superior Civilizations, Pavilhão da Suiça. Foto: Matteo de Mayda. Cortesia: La Biennale di Venezia

Quando o tema da Bienal de Veneza foi anunciado, confesso que fiquei desanimada: Estrangeiros em qualquer lugar (somos todos estrangeiros). Nestes mais de 15 anos à frente da Dasartes, percebi um padrão: a arte, com frequência, antecipa tendências do pensamento coletivo. Respeito queer, reconhecimento das mulheres, valorização da cultura negra, anticolonialismo e tantos outros fluxos da nossa atitude apareceram antes na produção da arte. Nos últimos anos, ela focou em destacar e valorizar a produção desses grupos fora do padrão. Sempre me pareceu um movimento necessário, o local onde o pêndulo deveria estar, depois de tantos anos apontando para a heteronormatividade branca, para chegarmos mais tarde a um equilíbrio social saudável.

Mas agora, sob a possibilidade de uma terceira guerra mundial, com tantas vozes pedindo paz, tendo separado, rotulado e olhado individualmente para cada um desses grupos, não seria a hora da arte trabalhar para unir? O tema me pareceu datado e gasto, impressão reforçada pelo discurso que acompanhou sua divulgação, no qual a arte perde destaque para sexualidade do curador. Talvez por isso eu tenha entrado na Biennale de má-vontade, mas comecei pelos pavilhões nacionais e percebi que ainda é possível tirar suco dessa fruta.

Due Qui/To Hear, Pavilhão da Itália.
Foto: Andrea Avezzù. Cortesia: La Biennale di Venezia

Jeffrey Gibson: the space in which to place me.
Pavilhão EUA. Foto: Liege Gonzalez Jung

As instalações monumentais de Massimo Bartolini, no Pavilhão da Itália foram um choque de contemplação em meio ao furor do evento. O título é Due qui, traduzido como Two here (dois aqui), que tem o mesmo som de “to hear”, escutar: aqui não se falou de estar sozinho, de ser estrangeiro, mas de colaborar, de olhar para o outro, de ouvi-lo. No da Alemanha, o mais comentado, a mistura de experiências aborda, sem muita esperança, nosso futuro incerto. O dos Estados Unidos foi muito criticado, mas eu achei que assumiram ali aquilo que muitos já fazem: exageraram os clichês da cultura nativa e da estética queer e transformaram em alegoria suas demandas. Não é inesquecível, mas é atual, é bonito e bem acabado, tem impacto. Parafraseando a artista Rosana Paulino, resolve-se no campo da arte, ao contrário de outras obras que, ao buscarem um discurso, se mostram pobres artisticamente. Funciona bem como ato desesperado para relembrar um tema que, de tão repetido, já perdeu a importância que merece. Não percebi qualquer uma dessas qualidades no Pavilhão do Brasil. Não é à toa que tenha sido ignorado pela mídia.

Vista da exposição Foreigners Everywhere – Stranieri Ovunque.
Foto: Liege Gonzalez Jung

Na exposição principal, também falta tudo isso. Nas décadas de 2000 e 2010, fervia a discussão sobre o papel das bienais, questionando se, de fato, elas cumpriam algum. Aos poucos, essa discussão morreu, à medida que elas passaram a ser percebidas não apenas como megaexposições, papel que deve ser dos museus, mas como uma via de criação de tendências, locais de ousadia, onde o compromisso da arte com a necessidade política do momento era reforçado. Para isso, precisamos de obras monumentais e de qualidade excepcional, antenadas com seu espírito do tempo. Na Biennale 2024, abundam obras de média qualidade e algumas até ruins. A presença brasileira é forte, com muitos nomes cujo vínculo com o tema não consigo reconhecer – Alfredo Volpi, Judith Lauand, Anita Malfatti, etc. A maioria com obras medianas, que não representam todo o esplendor de suas produções.

Vista da exposição Foreigners Everywhere – Stranieri Ovunque.
Foto: Liege Gonzalez Jung

Em uma das salas, os brasileiros logo reconhecem os cavaletes de cristal do Masp, primor do design de Lina Bo Bardi. Empolguei-me vendo-os pelo verso, mas desanimei com as obras expostas, bem como descrito anteriormente. Fiquei até encucada com algumas, cuja qualidade me lembrou as pinturas da vizinha da minha vó que fazia curso de artes no interior do Rio Grande do Sul e, sabendo que eu tinha uma revista de arte, sempre fazia questão de me mostrar. Eram pinturas com boa técnica, mas, como esperado, desprovidas de inovação e daquele “que” a mais, tão difícil de descrever, que distingue as obras de arte excepcionais. Lá em Santa Rosa, na sala da vizinha, elas faziam sentido. Na Biennale, a sensação era de estar vendo uma exposição de leilão em São Paulo.

Yinka Shonibare, Refugee Astronaut VIII, 2024. Foto: Marco Zorzanello. Cortesia: La Biennale di Venezia

Dizem nos bastidores que a Biennale não tem orçamento e os custos de transporte e comissionamento tiveram que ser bancados pelos colecionadores e galerias. Será que isso explica tudo? Não sei, porque é sabido que Adriano Pedrosa assumiu a curadoria do Masp junto com a posse de Heitor Feitosa como presidente, e esse time tirou o museu de uma profunda crise financeira e organizacional enquanto fez excelentes exposições. Ou seja, estamos falando de alguém com comprovada experiência e talento para brilhar em condições desfavoráveis. O aspecto comercial da exposição, no entanto, é indiscutível e tem sido assunto em conversas com muitos amigos do circuito de arte internacional. Pelo que entendo, a Biennale passada, aquela com Leonora Carrington e outras mulheres surrealistas, já trazia essa sensação de ter sido pensada para acomodar aquelas galerias de Nova York, então talvez a culpa seja do modelo e tenhamos que retomar a discussão.

Para mim, volta a sensação que tive ao visitar uma exposição de arte indígena no período da Bienal de São Paulo de 2021, a Bienal dos Indígenas. Para mim, o ato de dar tela e tintas fabricadas na Europa para os indígenas retratarem aquilo vai ficar bem em um museu me pareceu triste, de forma alguma um ato de valorização. Senti falta de ver ali obras que remetessem aos maravilhosos e singulares adornos e artefatos que conhecemos de algumas comunidades indígenas, talvez a incorporação de temas contemporâneos em seus métodos tradicionais de representação, como a arte popular brasileira faz tão bem e como já vi em muitos museus de arte nativa na América do Norte. No entanto, no final, o resultado de todo o alvoroço foi positivo: de fato, um movimento de valorização cultural de nossas etnias nativas. Nesse contexto, guardei minha opinião na gaveta de baixo e fiz força pra não abri-la nas muitas exposições de arte indígena que vi nos últimos anos. Mas, na minha visita à Biennale, não consegui.

Ione Saldanha, Untitled, Bamboo, 1960. Thresholds. Foto: Matteo de Mayda

Mataaho Collective, Takapau, 2022. Foto: Marco Zorzanello. Cortesia: La Biennale di Venezia.

A curadoria perdeu a oportunidade de elevar o status internacional da arte brasileira.

Pela minha experiência, tendo a acreditar que a curadoria foi influenciada por interesses de terceiros. Qual a minha experiência? Posso contar uma: há alguns anos apresentei um projeto de divulgação digital a um Instituto Cultural ligado a um banco. O projeto, depois de recusado, teve sua adaptação analógica veiculada nas páginas impressas de outra revista. Quando perguntei a uma amiga que trabalha na comunicação do Instituto, a resposta foi: ” Não sei, é algo entre eles.” Eles, no caso, o presidente do Instituto e a diretora da publicação, que compartilham amizade e afinidade política. Muitas das decisões que norteiam o que consumimos em arte são tomadas assim, com base em preferências pessoais e filosóficas de alguns indivíduos ou grupos, às vezes com prejuízo à qualidade. Que pena! Lamento profundamente com uma pontada no meu coração repleto de afetos por nossa arte. A curadoria perdeu a oportunidade de elevar o status internacional da arte brasileira.

Claire Fontaine, Foreigners Everywhere /Stranieri Ovunque, 2004/2024. Foto: Marco Zorzanello. Cortesia: La Biennale di Venezia

Daniel Otero Torres, Aguacero, 2024. Foto: Marco Zorzanello. Cortesia: La Biennale di Venezia

Não vamos deixar de laurear os pontos acertados. Os neons de Claire Fontaine, que fazem o tema da Biennale refletir nas águas de Veneza, são unanimidade. A instalação do coletivo nativo neozelandês Mataaho é um nocaute, um ambiente coberto de tramas, luzes e sombras que lembram que há formas muito bem sucedidas de traduzir tradição étnica para arte contemporânea. Yinka Shonibare, que não podia faltar em uma exposição desse tema, está lá, ainda que com uma única escultura em local de passagem. Aqui e ali, artistas que eu não conhecia com obras que capturam e provocam. Uma que ficou comigo dias depois da visita foi a espalhafatosa e favelística instalação de goteiras de Daniel Otero Torres, ao lado das pinturas de Dalton Paula. O som das goteiras reverbera, uma trilha sonora perfeita para aquele ambiente e uma ode à maravilhosa capacidade humana de adaptar e sobreviver. O visual da geringonça me trouxe à mente a estética do puxadinho, tema da tese de doutorado da querida curadora Fabiana Lopes. Caberiam ali ao lado algumas pinturas de Lucia Laguna, aquelas com imagens fragmentadas e cheias de cor que inferem comunidades dos subúrbios. Decerto, a galeria Fortes D’Aloia não quis incluir.

Liege Gonzalez Jung é diretora e editora-chefe da Revista Dasartes desde 2008.

FOREIGNERS EVERYWHERE • 60TH
INTERNATIONAL ART EXHIBITION • LA
BIENNALE • VENEZA • 20/4 A 24/11/2024

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