Up to and Including Her Limits, 10 June 1976. Foto: Terry Slotkin. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

DASARTES 126 /

CAROLEE SCHNEEMANN

RASTREANDO O TRABALHO DIVERSIFICADO, TRANSGRESSIVO E INTERDISCIPLINAR DE CAROLE SCHNEEMANN AO LONGO DE SEIS DÉCADAS, NOVA MOSTRA CELEBRA UMA ARTISTA RADICAL E PIONEIRA QUE CONTINUA SENDO UM ÍCONE FEMINISTA E PONTO DE REFERÊNCIA PARA MUITOS ARTISTAS E PENSADORES CONTEMPORÂNEOS

Meat Joy, 1964. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

A exposição Carolee Schneemann: Body Politics, está aberta ao público até 8 de janeiro de 2023, na galeria de arte do Barbican Centre, no Reino Unido. Desde setembro de 2022, a exposição apresenta uma retrospectiva de Schneemann, pertencente à primeira geração de mulheres artistas que militaram a favor da arte realizada por mulheres. Por meio de mais de 200 obras, entre pinturas, vídeos de performances solo e em grupo, esculturas, instalações multimídia, filmes, textos e, ainda, objetos e materiais de arquivo pessoais da artista, o público encontra alguns dos temas mais latentes em sua obra, como a subjetividade, a objetificação do corpo da mulher na sociedade e a expressão sexual feminina.

Carolee Schneemann foi uma pioneira da performance feminista. Nascida na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1939, estudou pintura na Universidade de Illinois, em Chicago, e, em 1961, mudou-se para a cidade de Nova York. Lá, ela se integrou à “vanguarda experimental”, assim como outros artistas expressionistas abstratos da segunda geração, como Jim Dine, Allan Kaprow e Claes Oldenburg. Tendo explorado múltiplas formas de arte como a pintura, a performance, o teatro e o cinema, por vezes misturando-as em obras híbridas, Schneemann se tornou uma das protagonistas da vanguarda do centro de Nova York.

Personae: J.T. and Three Kitchs, 1957.

Body Politics apresenta, já no seu primeiro espaço, algumas das pinturas de Schneemann como, Personae: JT and 3 Kitch’s (1957), Three Figures After Pontormo (1957) e Tenebration (1961). Em diversos períodos de sua trajetória, a artista disse se considerar sobretudo uma pintora. Apesar disso, essas pinturas do fim dos anos 1950 e início de 1960 ficaram bastante à margem de seus trabalhos mais conhecidos, com performance e cinema, embora os quadros sejam fundamentais para uma percepção mais ampla de sua obra. Ao observar nas telas os corpos que se formam e saltam de seus traços e cores, é possível perceber que ali talvez já estivessem anunciados o movimento, a materialidade do corpo presente das performances, as esculturas cinéticas e as instalações posteriores da artista.

Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

Em Eye body: 36 transformative actions for camera (1963), Schneemann colocou pela primeira vez seu próprio corpo dentro de uma obra. Por meio de 36 fotografias em preto e branco em que a artista aparece nua e pintada, utilizando diferentes objetos, como espelhos e cobras, ela incorporou a performance, a pintura e a fotografia em uma mesma obra. Em uma fala publicada no More than Meat Joy (Documentext, 1979), Schneemann afirmou: “em 1963, usar meu corpo como uma extensão de minhas pinturas e construções era desafiar e ameaçar as linhas de poder territoriais psíquicas pelas quais as mulheres eram admitidas no Art Stud Club”. Assim, ela esclareceu que, para serem admitidas, essas artistas deveriam funcionar dentro das tradições e dos caminhos abertos pelos homens. Pôr-se nua na própria obra era, então, romper com essa prática. Mais do que isso, era deslocar o jogo de olhares que, como aponta Laura Mulvey em Prazer visual e cinema narrativo, tradicionalmente objetifica o corpo feminino no sentido de torná-lo um corpo sem olhar próprio, construído somente para ser olhado.

Meat Joy, 1964. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

E assim ela o fez em diversos outros trabalhos. Meat joy (1964), por exemplo, é uma performance em que mulheres e homens jovens e seminus interagem entre si utilizando carne animal, como a de galinhas e peixes crus, junto a outros elementos, como cordas e tintas. Os atores têm no rosto uma expressão leve e, às vezes, sorridente, seus corpos se entrelaçam; eles parecem brincar entre si. O título da performance sugere um duplo sentido sonoro: meat joy, que significa “alegria da carne”, e meet joy, que significa “encontre a alegria”. O curto-circuito fonético gera ainda um terceiro sentido, que não está escrito: o de um possível “encontro com a carne”, a sua própria carne e a do outro.

Fuses, 1964-1967. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

Ainda nessa época, Schneemann fez Fuses (1964-1967), que é talvez um de seus trabalhos mais controversos. Nessa espécie de curta, em que a artista faz um registro doméstico de suas relações sexuais com o parceiro ao longo de algumas semanas, vemos uma abordagem expansiva e antipornográfica do sexo. A “fusão” dos corpos, implicada pelo ato sexual em si, acaba se estendendo à obra como um todo por meio da montagem, que funde diversos planos heterogêneos: janelas, praias, gatos, intervenções na película de acetato, mar, sobreposições, cores variadas – tudo em cortes rápidos, frenéticos. Sexo entre o casal, mas também entre as imagens. Sexo cósmico, que entrelaça o erótico e o doméstico, o corpo e o mundo. Tanto em Meat joy quanto em Fuses, Carolee propôs a libertação dos corpos, aquilo que é, ao mesmo tempo, celebração e tarefa política.

Up to and Including Her Limits (1972) é uma de suas obras mais lúdicas. Schneemann se pendurou nua em uma corda e, com um instrumento de desenho na mão, ela rabiscou uma tela que a circunda enquanto se balança em movimentos circulares. Assim, ela cria uma tela tridimensional, uma espécie de fundo infinito flutuante e dinâmico, como em um sonho colorido de pintura. Ela se colocou nessa obra, como parte ativa dela, como seu centro dinâmico e pulsante. A libertação do corpo traz consigo a libertação da arte.

Algumas feministas criticaram Carolee pela natureza do uso da nudez que ela fazia. Encaixando-se nos padrões eurocêntricos de beleza, sua nudez não necessariamente contestaria os desejos de olhar do patriarcado. Mas, para ela, tratava-se de um uso do corpo feminino que não passava por uma relação com o desejo masculino. É o que fica evidente na série Sexual parameters (1969 e 1975), entrevistas de quatro mulheres em que a artista gerou tabelas sobre a experiência subjetiva do sexo para essas mulheres, contrapondo o conteúdo pessoal à forma tabelar da organizacionação ocidental e racionalista do patriarcado.

Interior scroll – The cave, 1995. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

Na performance Interior scroll – The cave (1995), Schneemann e outras sete mulheres nuas puxam de suas vaginas o “pergaminho interior”, enquanto leem o que nele está escrito: um diálogo entre Carolee e um artista homem, onde ficam evidentes os estereótipos machistas. Estereótipos contra os quais Schneemann e outras artistas feministas tinham que lidar diariamente. Blood work diary (1972) também é uma obra potente nesse sentido, tendo sido criada a partir do momento em que um parceiro manifestou nojo do sangue menstrual diretamente à artista. A obra é descrita pela artista como um calendário de sua interioridade.

Carolee Schneemann também foi uma das primeiras artistas americanas a produzir obras de arte contra a Guerra do Vietnã. Ela abordou ainda a Guerra Civil Libanesa e os ataques do 11 de setembro em filmes e instalações multimídia. No curta-metragem Viet Flakes (1962-1967), Schneemann utilizou imagens de arquivo de revistas e jornais estrangeiros, reunidas ao longo de cinco anos, registrando uma importante crítica à guerra. Já no curta Souvenir of Lebanon (1983-2006), ela expôs imagens de aldeias palestinas e libanesas destruídas, além de registros de outros diversos desastres publicados em jornais, que a artista contrapõe com imagens coloridas de um Líbano bucólico. São as imagens de Souvenir of Lebanon que Schneemann apresenta na escultura cinética War Mop (1983), em que um esfregão motorizado cai batendo sobre um monitor de vídeo a cada quatro segundos.

Fur Wheel, 1962.

Colorado House, 1962. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

War Mop, 1983. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.

Ao longo da exposição, mesmo quando não há vídeos, o público vê fotografias e artefatos usados nas performances que, de alguma maneira, trazem uma impressão material do movimento e da energia que está sempre presente em suas obras. Por meio desses objetos, é possível perceber como Schneemann documentava muito tudo o que fazia, como em um esforço bastante consciente de fixar sua própria existência, a de seu corpo e a de sua arte, em um mundo ainda carregado de resistências contra o trabalho de artistas mulheres.

Ela faleceu recentemente, em 2019. Ainda muito ativa aos quase 80 anos de idade, Carolee Schneemann recebeu, em 2017, o prêmio Leão de Ouro, na 57ª Bienal de Veneza, pelos seus 60 anos de carreira.

Drika de Oliveira é chefe de
coleções fílmicas na Cinemateca
do MAM, Diretora de Fotografia
e Pesquisadora Audiovisual.

CAROLEE SCHNEEMANN: BODY POLITICS •
BARBICAN CENTRE • REINO UNIDO • 8/9/2022 A 8/1/2023

 

Compartilhar:

Confira outras matérias

Flashback

MARY CASSATT

A história da arte é sempre viva. Ela muda de tempos em tempos. Artistas, temas e técnicas voltam ao debate, …

Reflexo

MARCELA CANTUÁRIA

 

Em 1° Salão Latino-americano y Caribeño de Artes / Salão das Mulheres (depois de Willem van Haetch), estabeleci um posicionamento …

Capa

Bienal de Veneza

Quando o tema da Bienal de Veneza foi anunciado, confesso que fiquei desanimada: Estrangeiros em qualquer lugar (somos todos estrangeiros). …

Alto relevo

Francis Bacon

Poucos pintores do século 20 se opuseram de forma tão marcada às interpretações de suas telas e, no entanto, tiveram …

Entrevista

Carlos Cruz-Diez

Esculturas e pinturas que mudam de acordo com os movimentos do espectador são a marca registrada de Cruz-Diez, artista venezuelano …

Matéria de capa

KATHARINA GROSSE

COR, RUÍNA E UTOPIA
O Staatliche Museen zu Berlin, gigantesca instituição cultural alemã, traria entre abril e outubro de 2020 a …

Destaque

CECILIA VICUÑA

Cecilia Vicuña, que nasceu em Santiago, Chile, em 1948, vive e trabalha em Nova York há quarenta anos. Recebeu em …

Do mundo

ROBERT INDIANA

“Minha arte é como um mergulho de alta disciplina – um voo alto, simultâneo e policromático, uma exaltação do verbal-visual… …

Reflexo

JOSÉ BECHARA

O artista constrói espaços geométricos que oscilam entre o rigor formal e ocorrências randômicas. Aprofundando-se na sua técnica de oxidação, …

Destaque

YOKO ONO

1933-1945

Yoko Ono nasceu em 18 de fevereiro de 1933, em Tóquio. Passou a maior parte de sua infância no Japão, …

Capa

MARK ROTHKO

“Uma imagem vive de companheirismo, expandindo e acelerando diante dos olhos do sensível observador. Morre pelo mesmo motivo. Portanto, é …

Capa Garimpo Matéria de capa

THIX

De costas, com um vestido de babados rosa, um grande brinco dourado e uma trança presa por um laço preto, …

Do mundo

JOAN JONAS

 

“Não vejo grande diferença entre um poema, uma escultura, um filme ou uma dança. Um gesto tem para mim o …

Alto relevo

DAN FLAVIN

Dan Flavin (1933-1996) fez história ao criar uma nova forma de arte. Suas obras feitas de luz extraíam a cor …

Reflexo

ANNIE LEIBOVITZ

O olhar de Annie Leibovitz, seus instintos teatrais e sua genialidade são lendários, mas ela não é conhecida por um …