A história da arte é sempre viva. Ela muda de tempos em tempos. Artistas, temas e técnicas voltam ao debate, particularmente em exposições que se propõem a refletir sobre as pautas que hoje nos preocupam. O olhar para os percursos da história da arte é, invariavelmente, motivado por questões atuais. Sendo assim, essas exposições se tornam eventos de reparação e legitimação de memórias historicamente apagadas ou subestimadas.
Sob essa perspectiva, revisões sobre artistas e obras se fazem presentes no circuito de exposições internacionais. Notadamente, as curadorias tratam das manifestações das artes não ocidentais, mas também a arte europeia está em xeque. Nem mesmo movimentos e períodos considerados “resolvidos” ou, ainda, bem “documentados” estão livres do exercício do reexame de suas proposições, constituição e repercussões. O impressionismo é um desses movimentos que parece que tudo já foi abordado e discutido (mas só parece!).
Em uma época marcada por alterações profundas na forma de viver e pensar, os artistas desse grupo provocaram rupturas com a representação clássica, criando uma visão do mundo moderna e inovadora. Eles empregaram pinceladas soltas, em telas geralmente feitas ao ar livre para que o artista pudesse capturar melhor as nuances da luz, da natureza e do tempo. Seus motivos, modos de execução e expor estavam ligados à vida burguesa e a fatores relacionados à Revolução Industrial.
Porém, o registro histórico do grupo dos impressionistas privilegiou as trajetórias dos renomados pintores-homens. Quem não conhece Claude Monet, Camille Pissarro ou Edgar Degas? Para a escrita da história mais tradicional, a produção das mulheres-artistas que integraram o grupo era de segunda classe. Isso criou um imaginário em torno do grupo. Responda rápido: de quantas pintoras impressionistas você se lembra? Não vale dizer Mary Cassatt (1844-1926), caro leitor esperto! Pois é! Por trás das intensas pinceladas e das cativantes cenas e paisagens, há uma história fascinante de pintoras que desafiaram convenções sociais e, em grande parte, contribuíram para o desenvolvimento e o reconhecimento do impressionismo.
Entre essas pintoras que aderiram ao impressionismo estão: Mary Cassatt, Eva Gonzalès, Berthe Morisot, Marie Bracquemond, Lilla Cabot Perry e até mesmo nossa artista brasileira Georgina de Albuquerque. Algumas delas estavam ligadas ao círculo mais íntimo do grupo. Nesse ponto, merecem destaque as chamadas “grandes damas do impressionismo”. São elas: Gonzalès, uma das poucas alunas mulheres de Édouard Manet; Morisot, casada com Eugène Manet (irmão do pintor) e, por último, Cassatt, a única americana oficialmente associada ao grupo. Ela expôs pela primeira vez com os impressionistas a convite de Edgar Degas, em 1879, e se tornou membro chave do movimento.
E, agora, talvez porque chegou a hora de rever a trajetória e o repertório das mulheres-artistas ou, ainda, talvez porque amamos efemérides, Mary Cassatt foi a artista selecionada para uma grande exposição no Museu de Arte da Filadélfia (de 18 de maio a 8 de setembro), com itinerância prevista para o Museu de Belas-Artes de São Francisco (de 5 de outubro a 26 de janeiro de 2025) – em 2024, são 180 anos de seu nascimento e, em 2026, serão 100 anos de sua morte. Então, novas exposições e livros prometem lançar luzes sobre sua vida-obra.
A exposição Mary Cassatt at Work traz a intenção curatorial de Jennifer A. Tompson e Laurel Garber no título: ver as cerca de 130 obras da artista como resultado do seu ofício; perceber ela própria como artista profissional e compreender suas cenas registradas para além da questão do lazer e do ócio. Suas pinturas mostram as mulheres em óperas, tomando chá ou visitando amigos, mas também no ambiente doméstico. Suas personagens leem, costuram, fazem tricô e bordado, amamentam e cuidam dos filhos, ou seja, estão em pleno exercício do “trabalho feminino” naquele momento – de modo algum, suas pinturas podem ser reduzidas a cenas de “mães e filhos”.
A mostra assinala ainda os processos de criação da artista, indicando o uso do caderno de anotações, dos modelos, do pincel, da agulha de gravura, do bastão de pastel e até mesmo as pontas dos dedos – tudo a confirmar o tema e o modo feminino na pintura moderna. Dessa forma, esse “trabalho” do título da mostra também se refere à inovação do “fazer arte”.
Cafés, bares e bordéis não eram considerados lugares “adequados” para as mulheres como Cassatt.
O reexame sobre o trabalho de Mary Cassatt não é algo novo. Em 1998, a feminista britânica Griselda Pollock publicou o livro Mary Cassatt: Painter of Moderna Women. Nesse livro, a pintora foi colocada como uma protofeminista, mulher solteira, sem filhos, que apoiou o sufrágio universal e experimentou ousadias no seu ofício. Sua biografia nos conta sobre a sua rejeição aos costumes das mulheres de sua classe social (sua família era muito influente, seu irmão Alexander se tornou presidente da Ferrovia da Pensilvânia). Ela abdicou de constituir família e optou por fazer da pintura seu trabalho, chegando ao centro da vanguarda francesa.
Nesse sentido, Pollock descreveu o percurso de Cassatt a partir de sua formação artística europeia, o estudo dos antigos mestres e seu entendimento dos repertórios de Manet e Courbet. A autora fez uma leitura atenta das obras de Cassatt e revelou sua visão do papel da mulher na modernidade. Acima de tudo, a pintora nos deu acesso à vida abafada da alta burguesia no século 19. Ela pintou a mulher moderna.
Há uma literatura sobre Mary Cassatt que se ressente de suas limitações como mulher naquela Paris, ou seja, são pesquisas que enfatizam suas restrições, especialmente com relação ao estudo da pintura (às mulheres era proibida a matrícula nas academias de arte) e, ainda, o impedimento de frequentar bares, cafés e cabarés – locais emblemáticos para o debate moderno. Cafés, bares e bordéis não eram considerados lugares “adequados” para as mulheres como Cassatt.
Porém, novas abordagens percebem que ela tinha outros espaços da vida moderna, tais como as exposições, os camarins, os salões de costuras e, por fim, todos os lugares por onde a vida privada burguesa se desenvolvesse. Nesses lugares, o olhar voyeur da artista criou ficções de domesticidade. Diferente de seus companheiros, Cassatt não se deteve na representação que evidencia pessoas elegantes segurando guarda-sóis e passeando entre belas paisagens. Ela preferia os closes, a luminosidade da carne, a textura da pele. Suas mulheres estão em cena por si só ou, ainda, uma pelas outras. Elas estão sem a intervenção ou aprovação da figura masculina.
A artista não teve qualquer receio em pintar uma mulher comum amamentando, com o seio desnudo. A liberdade em amamentar sem tabu foi, certamente, um passo relevante à história da arte – antes disso, somente as madonas apareciam nessa condição. Algumas de suas obras retratam seus próprios parentes, amigos e clientes. Nos últimos anos de sua vida, ela geralmente usava modelos profissionais em composições inspiradas na renascença italiana. Depois de 1900, ela se concentrou quase exclusivamente ao tema “mãe e filho”.
Na exposição Mary Cassatt at Work, a relação com Degas é explorada. Eles tinham muito em comum: eram de famílias abastadas e ávidos pelas descobertas de um novo tipo de pintura. Amigos, eles trocaram influências. Seus estúdios eram próximos. Ele a estimulou a lidar com a técnica da gravura e, de modo mais amplo, a abandonar a pintura acadêmica. Por sua vez, Degas era um grande colecionador do trabalho da pintora, chegando a ter mais de 100 obras. Ele também gostava de usar Cassatt como modelo. Na última década do século 19, essa parceria teve fim: ele se dedicou às paisagens e ela passou a ter interesse por explorar a gravura a partir da técnica japonesa.
Por algum tempo, historiadores sugeriram um possível romance entre Cassatt e Degas, porém, hoje, investigações se concentram nas relações da pintora com mulheres, incluindo a colecionadora americana Louise Havemeyer e sua empregada Mathilde Valet. No seu testamento, ela firmou o desejo de deixar cerca de 300 obras para Valet, sua companheira por longos anos. Cassatt sempre foi de natureza discreta. Cartas, diários, livros e outros documentos foram destruídos antes ou após sua morte. Durante décadas, ela viveu e trabalhou em Beaufresne, zona rural francesa, em um castelo de pedra e janelas fechadas. A exposição Mary Cassatt at Work recupera essa persona com a frase da pintora: “O que gostaríamos de deixar para trás é uma arte superior e uma personalidade oculta”.
Além de resgatar o trabalho de Cassatt (incluindo suas obras e seu desejo de ser uma pintora profissional), a exposição ainda nos faz lembrar que ela trabalhou intensamente para a divulgação do impressionismo nos EUA. Em estreita colaboração com Havemeyer, a pintora mediou a compra de obras-primas – algumas delas integram o acervo do Metropolitan, em Nova York. E isso deve ser levado em conta, quando se pensa na organização de uma exposição como essa, que trata sobre o legado da artista em itinerância nos principais museus norte-americanos.
No mais, rever a trajetória e o repertório de Mary Cassatt é perceber que a história muda ou, ainda, melhor: entendemos que há sempre um detalhe negligenciado e esse nos traz novos “achados” e nos faz refletir sobre nossos dias.
Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutorado
em Artes Visuais (Unesp). Curadora independente. Professora do CELACC (ECA USP).
Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes
(ECA USP). Especialista em Cooperação e Extensão Universitária no Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Membro da Associação
Internacional de Crítica de Arte (AICA). Articulista do Jornal da USP, editora da Revista Arte & Crítica
e colaboradora da Dasartes. Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória
da resistência (MCSP, 2022).
MARY CASSATT AT WORK • PHILADELPHIA MUSEUM OF
ART • EUA • 18/5/2023 A 8/9/2024