IMPASSES DA ARTE CONTEMPORÂNEA

As tentativas de definição da arte contemporânea não raro esbarram em obstáculos de várias ordens. De fato, não é fácil encontrar um consenso sobre quando se deu o seu início, por exemplo, assim como é difícil destacar uma obra, um artista, um lugar que possam ser considerados, com unanimidade, seus geradores.

POR ARTUR DE VARGAS GIORGI

As tentativas de definição da arte contemporânea não raro esbarram em obstáculos de várias ordens. De fato, não é fácil encontrar um consenso sobre quando se deu o seu início, por exemplo, assim como é difícil destacar uma obra, um artista, um lugar que possam ser considerados, com unanimidade, seus geradores. Mesmo se a pergunta partir de um ponto aparentemente pacífico – digamos: a arte contemporânea é aquela que sucede à arte moderna –, logo o dissenso toma a cena: então a arte contemporânea seria, em resumo, a arte pós-moderna? Nesse caso, o que significaria o acréscimo desse “pós” (problemático como o “neo”, não apenas no mundo da arte): é uma superação do moderno? Uma continuidade diferente? O que então teria ficado para trás? Aliás, neste ponto da história, seguiríamos andando para frente? Um dia o fizemos, mesmo?

Os dilemas proliferam conforme as minúcias aparecem. Pois se nesse panorama buscarmos definições mais precisas para um estilo, um repertório, um procedimento, uma linguagem, em suma, para os traços predominantes na arte da contemporaneidade, igualmente nos encontraremos diante do atualíssimo fenômeno da multiplicação das incertezas. Isso porque, em uma palavra, muitas vezes parece que na arte contemporânea vale tudo. E seria preciso admitir que seus detratores encontram nesse aspecto um motivo realmente consistente para sua crítica.

No mundo que se abre após o moderno – mundo do trabalho da pós-crítica – quais critérios permitiriam a justa avaliação de miríades de criações que se querem sempre singulares, ou seja, criações que com a mesma legitimidade estética se propõem como específicas, irrepetíveis, enfim, incomparáveis como são cada um dos corpos desejantes que caminham por este globo? Se o mundo da arte contemporânea é o mundo do arquivo da História, onde está disponível, e de maneira não-hierárquica, todo o acervo de imagens, textos, linguagens, materiais e proposições acumulado pelos processos da cultura, como avaliar as práticas mais heterogêneas conduzidas neste presente que não pretende mais avançar – como pretendiam as vanguardas, os estilos, os movimentos modernos –, apenas permanecendo… contemporâneo a si mesmo?

No Brasil, Mário Pedrosa já apontava a crise da crítica num texto escrito em fevereiro de 1970: bem dispostos ao circuito da arte, os certames e os prêmios mostravam-se, contudo, sem armas diante da repetição enfadonha que parecia tomar conta das cerimoniosas Bienais. “Em face do desenvolvimento vertiginoso de tendências e da dissolução cada vez mais radical das categorias tradicionais de arte, pintura, escultura, gravura, desenho, e sobretudo em face do caráter cada vez mais experimental do próprio processo criativo, a quem premiar? Como premiar?” Pedrosa questionava se teria um júri aleatório, reunido ao acaso, “qualquer critério comum possível para dar prêmio a este e não àquele cara quando um apresenta um boneco de pano e urra à sua passagem, outro faz um buraco no chão cheio de pedras, um terceiro, uma sala com muitos botões para você apertar, um quarto e um quinto, uma reprodução mecânica do velho anúncio com pisca-pisca” e assim por diante…

Yayoi Kusama, Infinity Mirrored Room Phallis Field Floor Show installation.

E logo Ferreira Gullar – para citar apenas dois críticos emblemáticos em nosso contexto – não cansaria de argumentar contra a morte da arte, esse cenário de terra arrasada que para ele tomava conta de eventos cada vez mais supérfluos, porque ditados pela impermanência das “obras”, pela arbitrariedade das “sacadas” de pseudo-artistas e, principalmente, pela lógica irrefreável do mercado global; uma lógica que, com efeito, parece ser capaz de tornar cúmplices todos os envolvidos na situação em que a arte deixa de ser elemento de ligação e passa a ser mais uma ferramenta de alienação, submetida à esperteza dos espetaculares jogos de marketing.

A proximidade de parte significativa da arte contemporânea recente – note-se a dificuldade na delimitação da temporalidade – com as formas do ativismo político-social e com as pautas identitárias abre uma importante perspectiva. Aí parece ser redefinida a demanda emancipadora da participação, elemento estruturante de inúmeras propostas ao longo dos anos 1960 e 1970, e que agora envolve as próprias instituições não através do enfrentamento direto ou da contestação, mas sim da aliança contingente, a cada vez negociada. Artistas, instituições e público são assim co-autores de situações em que o campo da arte é continuamente redefinido, espraiando-se propositivamente para o entorno, por meio de obras, experiências e narrativas coletivas que batalham pela representatividade e pelo protagonismo das alteridades, isto é, pela possibilidade de uma intervenção crítica e criativa em contextos históricos, culturais e políticos.

Esquematicamente, poderíamos dizer que, por um lado, isso reafirma a potência do caráter eminentemente plástico da arte contemporânea; por outro, igualmente marca a sua limitação. Diante do impasse, há quem valorize essa vocação contextual das obras e das instituições de arte contemporânea por ser ela não meramente reprodutora das histórias hegemônicas, mas sim produtora de novos arranjos, montagens, enfim, de novas realidades. É a posição de Boris Groys. Para o autor de Arte, Poder, o aparente vale tudo é, em suma, sinal de uma conquista: trata-se da consolidação da lógica dos direitos estéticos iguais, que deve ser sempre reafirmada. Nesse aspecto reside, aliás, a possibilidade da avaliação crítica. “A arte boa é, precisamente, a prática que visa à confirmação dessa igualdade”, afirma Groys. É nesse ponto que arte e política se conectam de modo fundamental: “ambas são esferas em que há luta pelo reconhecimento”. “Somente na pressuposição da igualdade de todas as formas e mídias visuais em nível estético é possível resistir à desigualdade factual entre as imagens – como imposto pelo ambiente exterior e refletindo desigualdades culturais, sociais, políticas e econômicas”.

Mas há também quem apresente uma avaliação distinta dessa situação – mais reticente, digamos. Em sua crítica da estética da pós-modernidade, Fredric Jameson mostra ser fundamental a especularidade que ele estabelece entre o funcionamento do mercado financeiro e o da arte contemporânea. Em ambos os casos, afirma Jameson, estão em jogo heterogeneidades que seguem a mesma lógica das abstrações informacionais. Nesse sentido, instalações e flashmobs, por exemplo, não seriam mais da ordem dos objetos, mas sim dos acontecimentos: singularidades que operam, a cada vez, com seus arranjos únicos, num espaço específico e apenas no presente, sem postular padrões ou relações de continuidade com o passado e o futuro. A questão é que o mesmo ocorre, como argumenta o autor, com certos instrumentos operados pelo mercado financeiro nesta era da globalização, como o capital fictício e os derivados: como esses fenômenos da arte contemporânea – um site specific, uma ocupação, uma performance etc. –, tais instrumentos são arranjos comerciais absolutamente peculiares, altamente complexos e especulativos; em seu caráter indecidível (ficcional e real) condizem mais com o acontecimento único e efêmero do que com uma estrutura estável, passível de previsão e regulação.

Instalação de Chiharu Shiota.

Segundo Jameson, esses dispositivos financeiros seriam como um paradigma da heterogeneidade, termo afinal caríssimo para a política e a arte contemporâneas. E também a força do capitalismo atual estaria, portanto, em sua capacidade plástica de mesclar economia e cultura, transformando toda heterogeneidade em homogeneidade, isto é, aplainando a multiplicidade das expressões singulares sob a forma de um mesmo processo econômico-cultural totalizador, destinado a abolir o fora e a consumir o mundo.

As oportunidades e os impasses da arte e da política na contemporaneidade se encontram nesse quadro de inúmeras variáveis e incertezas. Daí que as apostas tendam a ser as mais distintas e, muitas vezes, conflituosas. Mas, se é possível arriscar um ponto comum entre as variadas demandas críticas, ele seria o seguinte: a exigência de reforçarmos, enquanto é tempo, a imaginação e as práticas que poderiam nos conduzir para o fora do capitalismo; algo a ser realizado coletivamente, neste presente que nos cabe, mas como retomada de histórias passadas, de mundos e saberes outros, para a criação do que ainda pode existir de futuro.

Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

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