POR MATHEUS CENACHI
Apesar de viver grandes momentos de experimentação, a arte contemporânea enfrenta sérias dificuldades em sua agenda ética. Naturalmente, nem toda arte tem o dever de ser engajada. Porém, ainda existem artistas de matriz brecthiana que, como eu, preconizam que a arte pode ser uma valiosa ferramenta de transformação ética da realidade. E o problema é que estamos fracassando nesse projeto.
As recentes ondas de ódio, extremismo político, bem como a disseminação de ideologias misóginas são sintomas da nossa inaptidão para criar arte que, de fato, trace uma ponte comunicativa com o grande público e, então, estimule reflexões e ações eticamente comprometidas. De modo que a seguinte interrogação torna-se crucial: o que deve a arte fazer para reassumir o seu lugar de motor cultural engajado e, assim, transformar o comportamento dos indivíduos?
Para a filosofia moral o “problema da motivação” é antigo e precioso. Afinal, não basta desvendar o que é o certo e o errado: é vital entender como garantir que as pessoas ajam conforme a recomendação da ética, o que não é recorrente. As pessoas o tempo todo sabem o que querem, precisam ou devem fazer e, apesar disso, agem contrariamente: o fumante que tenta parar de fumar é um caso típico.
Esse tipo de inconsistência prática despertou a atenção de muita gente ao longo da história, mas foram David Hume e Bernard Williams os grandes teóricos que avançaram o debate.
Em seu “Tratado da Natureza Humana”, Hume percebeu algo decisivo: a faculdade da razão é estéril em termos práticos. Raciocínios, argumentos abstratos são essenciais no momento de definir como executar a ação: se desejo construir uma mesa, terei que decidir qual material usar, fixar as etapas do projeto e assim por diante. Logo, a razão será uma ferramenta indispensável para atingir certo fim. Agora, o responsável pelo surgimento da ação, o que faz a pessoa se mexer, não é um raciocínio, mas desejos, emoções.
Se isso soa óbvio, pense em como a nossa cultura ainda não entende as coisas assim. Dizemos “aja racionalmente”, “não seja passional”, acreditando que o raciocínio pode originar ou impedir uma atitude. Não funciona assim. O fumante que luta contra o vício não luta com argumentos. Ele já tem todos os argumentos que precisa para parar, já está persuadido disso. Hume diria, então, que o embate é entre “duas” emoções ou desejos avessos; o de fumar, ou a compulsão pelo tabaco, e o de parar de fumar.
É a partir de uma rica análise que Hume formula: “a razão é escrava das paixões”.
Quando pais repreendem seus filhos, não funciona apenas argumentar: isso não muda, necessariamente, o desejo do filho. Antes, é preciso descobrir como tocar a criança emocionalmente – o que varia de pessoa para pessoa –, seja por incentivos positivos, seja incitando medo, o que não é pedagogicamente recomendável, mas por vezes eficiente.

“A separação”
Falar sobre motivações práticas, portanto, é falar sobre a constituição psicológica daquele que desejamos estimular. É pensar, como sugere Williams em “Internal and External Reasons”, na interioridade da pessoa, em sua subjetividade. Se a mensagem não toca o coração, ela é uma razão prática “externa”, distante, indiferente e ineficaz. Se toca… então localizou algo valorizado emotivamente pela pessoa, logo, a chance da ação surgir é maior.
A compreensão da teoria anterior, chamada de internalismo das razões, é essencial à arte engajada. Violar seu princípio, independente da esfera de interação comunicativa, implica na destruição do objetivo central: produzir ações nos outros.
Erro rude da esquerda brasileira, no qual a direita cai menos, é achar que estamos no século XX. Ainda vejo jovens amigos panfletando incansavelmente o ideal do movimento à classe trabalhadora: quase nunca dá certo. Eles não sentem nenhuma conexão com causas sociais, nem com aqueles jovens; observam os estudantes com ceticismo e ultraje, pois são pessoas que discursam sobre uma condição de exploração que desconhecem na prática. Assim, apenas ouvem com pouca paciência o discurso e amassam o panfleto. Nada mais natural: tentam fazê-los engolir razões externas.
A arte contemporânea comete erros semelhantes. Mas se o exemplo anterior atesta que falar sobre ética e política não basta para mudar o mundo, quais características podem fazer esse trabalho?
Consideremos a juventude, pois nela costuma residir a energia para subverter o mundo. Historicamente, o que encanta os jovens? A sensação de descobrir a realidade. É o que fazem Woolf, Shakespeare, Kiéslowski e as antenas da raça: nos enchem de epifania com a sua visão filosófica acurada, desvelando a essência das coisas. Assim, se a nossa arte anda estéril eticamente, é porque ela não propõe uma mínima investigação sobre o mundo. Precisamos que os artistas desejem mais entender a condição humana e pensem menos em impressionar uma plateia viciada no que é cool; seja um cool mainstream, seja cult. Nesse sentido, “A Separação”, foi um momento de ar puro no cinema recente, pois examinou de maneira densa algumas dinâmicas familiares.
A força da objetividade é implacável: ela enche os nossos corações de certezas e potência de agir. Esse mesmo sentimento embala ateus que descobrem Nietzsche e católicos que visitam o Vaticano. Há, porém, um detalhe: a força da apresentação desse conhecimento é multiplicada quando feita a partir de um indivíduo.
Nós amamos romances de formação. Acompanhar a trajetória de vida de uma pessoa que culmina na compreensão refinada da existência é algo que nos cativa milenarmente, como em “Never Look Away”. Observamos o protagonista Kurt, desenvolvemos empatia e ele nos inspira com sua trajetória artística em busca de autenticidade.

Rita Von Hunty.
O simples fato de haver um indivíduo em foco na arte potencializa as chances de ela ser motivadora. Tanto melhor se esse indivíduo tiver alguma bagagem de valores minimamente saliente, visível ao espectador. Até as figuras mais enfadonhas, como Harry Haller de “O Lobo da Estepe”, inspiram leitores, porque esse é um personagem que não cansa de expor as suas convicções sobre a vida. Se são boas convicções, é outra história.
Um quarto aspecto da arte motivadora é o tratamento específico da questão socrática, aquela que está na base da filosofia moral ocidental e da vida: “como viver bem?”. A partir do instante em que uma época abandona a investigação do sentido da vida, do ser humano, uma imensa janela se abre ao charlatanismo: soluções fáceis para a felicidade. O charlatanismo da vez é capitalista e meritocrata, segundo o qual ser feliz é ser consumidor. Ou uma versão do estoicismo que faria Zenão chorar.
A vantagem do conservadorismo é esta: na medida em que tenta “salvaguardar” valores sociais antigos, ele se apresenta enquanto resposta (às vezes tosca, mas emocionalmente inflamada) à questão socrática e, assim, sempre arrebanha interessados, ao contrário do discurso progressista, o qual, corretamente, busca se fundamentar essencialmente em argumentos, embora também possa ser inflamado.
O grande problema é que argumentos desacompanhados de discurso emotivo não significam nada.
Há muito o que investigar sobre a relação entre arte, ética e sociedade. É hora de seguir a recomendação de Arendt e “pensar no que estamos fazendo” como artistas. Os pontos delineados representam apenas um frame do trabalho, e sem dúvida é possível criar obras motivadoras que contenham outros aspectos que não esses.
A nossa sorte é que às vezes surge um ponto luminoso que indica algum caminho. Me refiro ao fenômeno Rita von Hunty. As suas “aulas” são brilhantes, e certamente o drag queen intelectual que consegue se tornar célebre no Brasil transfóbico e armamentista é um gênio. Além do conteúdo de seu discurso, talvez uma das suas lições mais relevantes é que o fenômeno é Rita. Não há, ainda, o fenômeno Guilherme. Não na mesma proporção. Isso reforça a relevância do “meio da mensagem”, um dos cernes da discussão sobre arte e ação.
Matheus Cenachi é formado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professor, ensaísta, dramaturgo, poeta, roteirista e fotógrafo artístico.