POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
Certas obras – ou ainda: certos fenômenos estéticos – colocam em primeiro plano a dimensão ética da arte. Mas o que isso quer dizer? Em que consiste a dimensão ética dos fenômenos estéticos? A pergunta, colocada nesses termos, é mesmo complicada e sem dúvida se abre para respostas bem distintas – a depender, antes de tudo, do que se entende por estética.
Não entrarei nesse debate espinhoso, mas, para efeitos do que está em jogo aqui, diria que a estética não se confunde com os juízos de gosto nem, mais especificamente, com a ciência do belo na arte. Antes, retomando sua etimologia (aisthesis), remete aos nossos sentidos corpóreos, ao que é percebido pelo corpo no limiar da sua interação – do contato – com o mundo ao redor.
Assim, em seus contornos mais gerais e imprecisos, um fenômeno estético pode ser algo muito mais abrangente do que aquilo que, com alguma familiaridade, talvez, chamamos de “obra de arte”: pode ser todo fenômeno (imagem, som, gosto, objeto etc.) que nos toca e nos sensibiliza, em nosso corpo a corpo com mundo. E, justamente por se dar nessa zona cinzenta, de difícil apreensão, entre os sentidos corpóreos e o exterior – a rigor, uma instância prévia aos valores e às convenções culturais –, o fenômeno estético tende a perturbar os juízos e os conceitos, favorecendo a discórdia, o dissenso.
Essa perturbação está intimamente ligada à ética, que por sua vez poderia ser pensada como a manifestação de uma forma de vida singular, ou seja, o modo como cada sujeito se posiciona a respeito das questões do seu tempo e, com esse posicionamento, encaminha o que ele mesmo pode vir a ser. Nesse sentido, a ética se expressa, sobretudo, nas decisões com as quais nos comprometemos e nos colocamos diante dos dilemas compartilhados, diante do outro, isto é, nas decisões com as quais definimos o que somos (e o que não somos), individual e coletivamente.
Ponto crucial, já anunciado, é que essas decisões podem contrariar regras de conduta e costumes estabelecidos, operando um rompimento com o que é esperado ou previsto. Sendo indissociável da própria potência da vida – potência afinal irredutível aos códigos, aos deveres impostos –, a exigência ética parece se abrir para um contínuo exercício de criação e de crítica, rigorosamente libertário, com a existência em comum delineando os horizontes da nossa responsabilidade.
Em torno de considerações como essas poderíamos reunir boa parte dos gestos mais perturbadores das vanguardas históricas: o choque ao gosto burguês, a recusa das convenções da figuração, a exploração de distintos modos de percepção e de produção de sentidos, a contínua luta contra os academicismos de todo tipo, a busca, em suma, não exatamente de uma nova “arte”, mas das formas e das forças que fossem capazes de traduzir uma estética – capazes de promover uma sensibilização, um contato – à altura das exigências da convulsionada vida moderna.
Não à toa, essa dimensão ética das proposições e das obras de arte seria salientada pelas neovanguardas dos anos 1960 e 1970. E talvez a consigna da participação (do público, do artista) tenha sido a que melhor sintetizou essa demanda da decisão e do contato corpóreo, espécie de imperativo relacional que de fato foi compartilhado por diversas pessoas que tentavam elaborar, por meio da arte e cada uma a seu modo, uma outra forma de vida, um novo vir a ser, ou seja, uma saída ética e estética para os graves dilemas políticos e culturais do período: Lygia Clark, Hélio Oiticica, Antonio Manuel, Lygia Pape, Ivald Granato, Cildo Meireles, Carlos Zílio, Anna Bella Geiger, entre muitos outros.
Nesse contexto marcado por certa anestesia crítica nos certames, pelo impasse na relação travada com as instituições e pela intensa repressão que tomava conta do Brasil, Antonio Manuel protagonizou uma situação emblemática, que ao mesmo tempo reivindicava a participação e mostrava seus limites. No XIX Salão Nacional de Arte Moderna, que ocorreu em 1970 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o artista inscreveu a si mesmo como obra.
“Escrevi como título da obra meu nome, as dimensões eram as do meu corpo etc.”, afirmou o artista em entrevista. Mesmo tendo sido barrado pelos jurados, Antonio Manuel, a obra recusada, quis estar presente na inauguração, reafirmando então a sua decisão de expor o próprio corpo – origem e vértice da singularidade estética – como uma obra-limite. “E, apesar do júri e do Museu, no dia da abertura do Salão, eu me apresentei lá, junto com uma modelo da Escola de Belas-Artes que se chamava Vera [Lucia]”, disse ele. E no que consistiu a apresentação? Em despir-se até ficar completamente nu. Um gesto de aguda sensibilização, de comprometimento radical com a vida, que foi acompanhado por aplausos de parte do público.
Logo após o evento, Antonio Manuel foi com Hugo Denizart e Alex Varella para a casa de Mário Pedrosa, que já estava informado da intervenção do artista. Parte da conversa que tiveram foi gravada e depois transcrita por Lygia Pape. Na ocasião, Pedrosa comentou com entusiasmo o ocorrido, insistindo no aspecto ético que envolvia a exposição do corpo-obra de Manuel:
“Você voltou, depois, às origens […] Você foi ao fim de todo esse processo. […] Rompe todos os tabus, leva ao fim de todos os tabus, rompe tudo, no plano ético, no plano sexual, moral – no plano criativo […] O fato de, hoje, você ter feito isso, sacode toda a perspectiva da arte, a discussão estética, a discussão ética, a discussão sobre arte. Discute tudo. E com uma autenticidade enorme. O que Antonio está fazendo é o exercício experimental de liberdade […] Você colocou de uma maneira esplêndida o problema ético. Toda a arte de hoje – toda atividade-criatividade. O problema ético aparece de uma maneira espantosa – porque só tem significação a partir do problema ético.”
É interessante notar que as palavras de Pedrosa apontam a potência vital do gesto do artista não apenas pelo que afirmam: igualmente significativos são os contornos, as voltas, as repetições em torno do que lhe parece central; como se o crítico buscasse o nome, o termo preciso, o ponto nervoso desse fenômeno ao mesmo tempo propositivo e disruptivo, diante do qual os conceitos, as convenções, os pressupostos parecem falhar.
Com O corpo é a obra, vemos que a arte não pode ser reduzida a um mero reflexo das condições econômicas ou sociais. Ao contrário, em termos estéticos – como aisthesis –, a arte perturba, interpela, instaura uma situação originária, digamos, não apaziguada entre as formas da cultura. É aí que estão em jogo os processos de construção e de reconstrução dos sentidos do mundo.
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Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.