POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
Destruir, queimar, abrir espaço: para fazer vingar uma estética própria da vida moderna, em uma Europa convulsionada, vanguardistas armaram-se de divisas como essas, em franca luta contra o peso da tradição e o oficialismo da arte burguesa. Malevich afirmava ser necessário incendiar os museus e reduzir tudo a pó. Boccioni ansiava pelo nivelamento e a destruição da paisagem tradicional, fixada pelos artistas do passado. Tristan Tzara, por sua vez, estimulava a “grande tarefa destrutiva, negativa, a cumprir. Varrer, limpar”. E poderíamos seguir alinhando proposições bem semelhantes, mesmo em figuras muito distintas, quando não contrapostas, como Marinetti, Franz Marc, Kurt Schwitters, Breton etc. O próprio Tzara dá o tom da discórdia: “estamos fartos das academias cubistas e futuristas: laboratórios de ideias formais. Ou será que se faz arte para ganhar dinheiro e para fazer festas aos simpáticos burgueses?”
Nesse cenário de luta “anti-arte”, as instituições – academias, salões, museus – eram um alvo privilegiado. Isso porque em seus espaços o passado parecia adquirir um caráter sagrado, solene, a ser contemplado respeitosamente. Não à toa, para tais vanguardistas, os museus de arte eram como cemitérios: avessos à dinâmica e ao espírito da vida moderna. Em 1929, Georges Bataille, surrealista dissidente, foi ao cerne da questão, articulando em sua crítica o aspecto simbólico dessas instituições, mas também seu dado material mais elementar. Ou seja, ele chamou a atenção para a animosidade do povo contra os monumentos e para o verdadeiro sentido do ataque à arquitetura: tratava-se de fazer ruir o poder e a autoridade dos homens que conduziam e representavam a violenta história o Ocidente. Nas palavras de Bataille:
“A arquitetura é a expressão do próprio ser das sociedades, da mesma maneira que a fisionomia humana é a expressão do ser dos indivíduos. Todavia, é sobretudo com fisionomias de personagens oficiais (prelados, magistrados, almirantes) que essa comparação deve ser relacionada. Com efeito, apenas o ser ideal da sociedade, aquele que ordena e proíbe com autoridade, se exprime nas composições arquiteturais propriamente ditas. Assim, os grandes monumentos se elevam como diques, opondo a lógica da majestade e da autoridade a todos os elementos perturbadores: é sob a forma das catedrais e dos palácios que a Igreja ou o Estado se dirigem e impõem silêncio às multidões. […] Quando se ataca a arquitetura, cujas produções monumentais são atualmente os verdadeiros senhores da terra inteira, agrupando à sua sombra multidões servis, impondo a admiração e a estupefação, a ordem e a obrigação, ataca-se de alguma forma o homem”.
Logo percebemos que a iconoclastia vanguardista era na verdade muitíssimo produtiva. O que alimentava essa tensão, como frisou Boris Groys em Arte, Poder, era a luta pelo reconhecimento e pela inclusão de formas e procedimentos estéticos em um conjunto pretensamente estável e universal: para combater o engessamento da tradição e o oficialismo do gosto burguês era necessária uma intensiva produção de imagens diferentes daquelas já presentes nas coleções. Nesse combate, estética e política se enlaçavam. A destruição era então afirmada, uma e outra vez, por meio de pinturas, esculturas, objetos, intervenções, peças, manifestos, livros. Daí as diversas estratégias disruptivas (o choque, o chiste, o nonsense), a valorização de repertórios e materiais estranhos ao cânone, a crítica ao modelo mimético herdado do Renascimento, a preocupação com a autonomia e a experimentação das linguagens etc.
Claro, a tábula rasa foi uma aposta também presente entre nossos modernistas. Em torno da revista Klaxon, do desvairismo de Mário de Andrade, da prosa em retalhos de Oswald de Andrade e das performances de Flávio de Carvalho, por exemplo, poderíamos situar gestos afinados com o vanguardismo europeu. Com a diferença – fundamental – de que nos trópicos o problema se colocava quase ao revés: como diferentes críticos modernos afirmaram, a questão, aqui, não era lidar com a presença e o peso da tradição, mas sim com a sua falta. E, assim como alimentou o imaginário colonial desde a invasão europeia, esse violento diagnóstico da ausência de um passado cultural sólido dava aos modernistas o ímpeto para começar do zero, mas queimando etapas, de modo que, no nascimento moderno da nação, o avanço e o atraso coincidiam, em choque. Com isso se entende, aliás, o papel decisivo do urbanismo – ao menos desde a haussmanização do Rio de Janeiro e o “bota abaixo” dos cortiços – e, logo, da arquitetura moderna – Le Corbusier, Lucio Costa, Niemeyer etc. – na construção de uma cultura e de uma sociedade, a partir do aparelhamento do Estado.

Enrique Barilari, Keneth Kemble, Jorge López Anaya, Jorge Roiger, Antonio Seguí, Silvia Torras, Luis Alberto Wells, Arte destructivo, Galería Lirolay, 1961
Seja como for, o caráter destrutivo proliferou e foi assimilado, conforme as experimentações das neovanguardas ganhavam fôlego. Ao tratar da arte contemporânea na América Latina, Andrea Giunta escreveu sobre a exposição de Arte destructivo realizada em 1961, em Buenos Aires, já no quadro de uma terceira guerra mundial anunciada pela Guerra Fria. Objetos recolhidos na rua, na zona do porto, nos lixos – como cabeças de cera queimadas, garrafas, uma banheira, uma poltrona rasgada, pedaços de automóvel, um caixão perfurado à bala – e quadros prévios dos artistas envolvidos: tudo estava marcado pelo tempo e pela deterioração, que foi intensificada na mostra. Na exposição, portanto, propostas dadaístas e surrealistas eram repetidas com diferença: a violência era reivindicada e transformada em procedimento para responder ao presente; a destruição tornava-se material artístico.
Foram vários os artistas que ampliaram essas experimentações, respondendo a contextos específicos: Jean Tinguely, Marta Minujin, Hélio Oiticica, Antonio Manuel, Gordon Matta-Clark etc. Tinguely acionou sua grande máquina autodestrutiva às portas do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1960. Marta Minujin destruiu suas obras em 1963, num terreno baldio de Paris. Antonio Manuel ofereceu suas urnas ao público – que deveria rompê-las à força – num evento no Aterro do Flamengo, planejado por Oiticica e Rogério Duarte, em 1968. Na década de 1970, Matta-Clark fez seus cortes e extrações em diversos edifícios condenados à demolição.

Jean Tinguely, Homage to New York, The Abby Aldrich Rockefeller Sculpture Garden, 1960
Ora, intervir em construções ou prédios condenados, projetar uma máquina que se autodestrói quando acionada, acabar com as próprias obras durante uma performance, reutilizar restos dos processos de urbanização em novos e precários arranjos ambientais, criar objetos destinados à ação disruptiva do público ou de outros atores: em suma, quando ressituados, recursos como esses ainda produzem efeitos. Por isso não estranha que eles integrem, como repertório, certos princípios operatórios de artistas que, não obstante, mantêm com as instituições e fundações, hoje, uma relação bem diversa das formas de enfrentamento em geral exercitadas pelas vanguardas históricas e pelas neovanguardas.
O globo da morte de tudo, instalação de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska em que um inventário da modernidade é submetido a uma vertigem calculada e, finalmente, ao colapso advindo da globalização, foi feito e refeito dentro de espaços emblemáticos: Galeria Anita Schwartz (2012) e Sesc Pompeia (2016). E um mesmo impulso – digamos – anarquitetônico, mas conciliado, poderia ser observado, por exemplo, em obras feitas em museus e galerias por Héctor Zamora, Carlito Carvalhosa, Henrique Oliveira ou José Bechara. Realço esse dado, aparentemente trivial, porque com ele entendemos a significativa mudança ocorrida na tensão entre a arte destrutiva e os espaços expositivos, assim como podemos destacar as funções que esses espaços podem desempenhar contemporaneamente.
Em Inconstância material (2012), realizada na Luciana Brito Galeria, Zamora contou com vinte pedreiros, oito pilhas de tijolos e um texto de Nuno Ramos, desmembrado e repetido pela voz de cada operário. A ruidosa ação consistiu no contínuo percurso aéreo dos tijolos, que eram lançados de mão em mão pelos trabalhadores, passando em circuito pelo interior da galeria, pelos espaços externos e o estacionamento. Nada foi construído, a não ser a suspensão do próprio processo de construção: espécie de desativação da violência e da autoridade do poder que, como Bataille afirmou, não se separam da arquitetura. Assim, ao longo da performance dos improdutivos operários-recitantes – performance bem arquitetada, aliás, a partir de uma maquete, também exposta – foram se depositando pela galeria os acidentes, os erros, os restos: os tijolos destruídos.

Carlito Carvalhosa, Roteiro para visitação, Palácio da Aclamação, 2010
Carlito Carvalhosa, por sua vez, realizou em 2010, no Palácio da Aclamação, em Salvador, o seu Roteiro para visitação. A ocupação distribuiu-se por esse solar do século XVIII que, antes de ser restaurado e virar museu, serviu de residência oficial para governadores do Estado e recebeu visitantes ilustres, como a rainha Elizabeth II. Os diferentes ambientes modulavam um mesmo gesto: intervir no espaço arquitetônico – em sua memória, sua história – de maneira ostensiva, como se ali estivesse em construção uma ação violenta e desastrosa. Entre mármores, lustres de cristal, pesadas cortinas, tapeçarias, objetos de bronze e porcelana, mobiliários em estilo D. José I e Luís XVI (etc.), o artista atravessou postes de madeira, escoras de eucalipto e, com destaque, uma aroeira viva, suspensa no Hall de entrada. O tenso jogo armado apontava não para a solidez e a permanência da cultura do Ocidente, mas para a contingência que assedia suas construções materiais e simbólicas, e que afinal ameaça as relações de poder estabelecidas. Ao preparar isso que o artista definiu em suas notas como uma “armadilha”, a história colonial foi como que deixada “em obras”, colocada em suspenso: a qualquer momento, tudo pode ruir, cair, colapsar.
Esses trabalhos (concepção, materiais etc.) não foram casos isolados na produção dos dois artistas. E devem bastar para salientar que há muito a destruição foi assimilada: essa inconstância material faz parte do repertório de inúmeros artistas e da plasticidade – digamos assim – já assumida por várias instituições. Com isso poderíamos pensar que o aspecto disruptivo das propostas foi neutralizado, uma vez que envolvido num jogo controlado e, não raro, espetacular, entre artistas, curadores, financiadores, espaços expositivos e, por certo, público, que tende a colaborar espontaneamente com a massiva repercussão dos acontecimentos – e quanto mais estrondosos, melhor.
No entanto, é preciso considerar, também, que apenas em condições de exposição podem assomar com estranheza muitas situações que são percebidas como normais ou necessárias, amortecidas pelo dia a dia: é porque elas são retiradas de sua existência ordinária ou indiferente e deslocadas para museus ou galerias que a sua real condição pode ser esmiuçada e submetida à leitura. Como propõe Boris Groys, se na tradição modernista o contexto era visto como estável, concebido a partir do ideal do museu universal, em nosso tempo é a instabilidade que predomina. “Logo, a estratégia da arte contemporânea consiste em criar um contexto específico que pode fazer certa forma, ou coisa, parecer outra, nova e interessante”, escreve Groys. Isso fica muito claro em obras como as de Zamora e Carvalhosa.
Quando movido para espaços expositivos, o que foi normalizado por um cotidiano anestésico pode se tornar sensível, suspeito, sujeito a disputas. A montagem e a remontagem dos contextos são então decisivas para a criação de narrativas disruptivas, de gestos demolidores, que não se limitem ao campo da arte. Embora se arrisque à domesticação pela dinâmica das exibições e do mercado, há um caráter destrutivo que não cessa de trabalhar, talvez ainda jovial e sereno, como o definiu Benjamin, mesmo quando em silêncio. Cabe a ele abrir caminho – não pela tábula rasa, mas pela saturação das camadas da história, em direção a um arranjo estético e político do inaudito.
Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.