POR DOMI VALANSI
Falecido há 95 anos, o historiador de arte alemão Aby Warburg (Hamburgo, 1866–1929) é um dos mais debatidos pensadores da imagem pelos teóricos contemporâneos. Destacado por nomes como Georges Didi-Huberman e Giorgio Agamben, sua contribuição para a compreensão do estatuto das imagens como documentos de memória coletiva e anacrônica remonta ao que se pode reconhecer como uma antropologia do visível.
Apesar de inacabado, seu “Atlas Mnemosyne” (Bilderatlas Mnemosyne), com mais de 1000 imagens distribuídas em 63 pranchas, se apresentou como um “inventário de vestígios da Antiguidade que contribuíram, na época do Renascimento, para forjar o estilo da representação da vida em movimento”, como escreveu seu autor. Uma forma para um pensamento visual, que cruza as fronteiras de campos até então separados, como a arte, história, estética, filosofia e a antropologia.
Este mês, o argentino Hernán Ulm, Doutor em Literatura e Mestre em Filosofia Contemporânea, está no Rio de Janeiro este mês para ministrar um minicurso na FGV Arte, um espaço de experimentação e pesquisa artística da Fundação Getulio Vargas, sobre o pensamento de Aby Warburg e sua importância para a interpretação imagética. Nesta entrevista exclusiva para a revista Dasartes, o professor argentino fala sobre a importância do historiador e seu legado.
Por que hoje em dia se fala tanto Aby Warburg?
O pensamento de Aby Warburg resulta fundamental para pensar uma cultura que tem colocado as imagens como ferramenta central das configurações estético-políticas e comunicativas. Hoje, as imagens se apresentam como o modo mais óbvio, também às vezes como o meio mais inocente, de vínculo social. Nesse sentido há uma política das imagens, no sentido de que as imagens produzem “uma visibilidade do comum”, uma visibilidade “em comum”. Nesta perspectiva, o pensamento de Warburg é uma tentativa por pensar uma economia do pensamento que estabeleça, de um lado, as condições que nos permitem elaborar imagens, e de outro, liberar uma potência emancipatória em e através das imagens. Para o pensamento warburguiano, as imagens expressam uma constelação de energias diversas (ele fala de dinamogramas), que apresentam múltiplos sentidos. Quero dizer que as imagens sempre estão abertas (elas abrem um denkraum um espaço do pensamento) numa “tensão polar” que permite pensar que a cultura está sempre num estado de esquizofrenia, (são palavras do próprio Warburg): de um lado uma tendência ao pensamento mágico, religioso e, do outro lado uma tendência ao pensamento lógico, científico. O interessante de Warburg é que ele sustenta que a cultura se configura nessa tensão de forças que não podem ser superadas. De fato, se essa tensão fosse superada, a cultura se apagaria, tal como ele mostra nos trechos finais do texto “O ritual da Serpente”. Resumindo, falar de Aby Warburg é falar daquilo que nos engaja com nossa atualidade e nos permite pensar meios alternativos de compreender o presente. Pensar junto a Warburg é pensar uma política das imagens.
Quais são suas contribuições para a história da arte e das imagens?
Desde o início Warburg quer se afastar, tanto quanto seja possível, da tradicional “História das Artes”. Ele considera que pensadas do modo tradicional, as obras de arte estão condenadas à esterilidade, à inutilidade esteticista. Não há em Warburg uma teoria do gosto nem uma filosofia do belo. A pergunta inicial que ele se formula é (parafraseando ao Nietzsche que Warburg tinha lido) qual a utilidade ou o prejuízo das imagens para a vida. Isto é, qual a importância que as imagens supõem para a construção ou a sobrevivência do humano. Neste sentido, a Iconologia warburguiana não é uma História das Artes, mas uma espécie de Antropologia das imagens. Esse deslocamento permite nos aproximar das imagens numa perspectiva totalmente diferente. Ante uma imagem a pergunta fundamental agora será qual conflito ela vem a expressar (não a resolver mas a expressar: as imagens sao expressões dos conflitos da humanidade, os conflito nunca são ultrapassados, e as imagens que expressam esses conflitos sempre ficam sobrevivendo, como espectros, num estado de latência, numa instância limiar entre a vida e a morte). Neste ponto, Warburg vai também considerar que a História não oferece um modelo do tempo apropriado para pensar essas imagens e que as imagens, elas mesmas, apresentam uma figura do tempo que não tem nada a ver com a História mas com um princípio, a anacronia, que faz com que as imagens sejam parte de uma Memória que desloca as limitações do tempo histórico.
Explique a importância do “Atlas Mnemosine” na contemporaneidade.
Mnemosine é a Memória. Isto é: uma configuração do tempo que se afasta dos princípios cronológicos próprios do modelo historicista. Se a História se constrói segundo um princípio de continuidade e sucessão, a Memória oferece um modelo do tempo descontínuo e não sucessivo. A economia de Mnemosine não é linear. Lembrar o passado é também pular para além da História para nos mergulhar nisso que, embora esquecido, faz parte de nossa vida. O esquecimento é, na verdade, uma latência do que foi. O passado, na memória, não é aquilo que foi mas aquilo que ainda está sendo. A memória é vida e a vida e transformação: para Warburg o tempo das imagens elabora essa relação com um passado que ainda está nos passando, agindo entre nós. O tempo da Memória é um tempo ativo e anacrônico (na medida em que ultrapassa as fórmulas da continuidade sincrônica do tempo histórico,) que exige de nossa participação ativa na elaboração do sentido do comum. A anacronia da Memória exige, por sua vez, uma operação distinta do modelo histórico. A montagem vem, neste caso, a nos oferecer uma economia das relações entre imagens. Uma antropologia das imagens expressa em uma economia da Memória que pode ser percorrida através da montagem como principal operador heurístico.
Fale um pouco sobre a grande biblioteca que ele construiu ao longo da vida e sua importância para as gerações seguintes.
Junto com o Atlas (esse grande projeto que Warburg constrói logo depois da saída da internação psiquiátrica e que era uma tentativa por dar uma visibilidade geral às relações anacrônicas do tempo entre as imagens), a Biblioteca foi uma tentativa de Warburg de constituir um grande sistema de relações entre textos e imagens. A Biblioteca é para Warburg um instrumento de pensamento. Assim como o próprio pensamento vai mudando, a Biblioteca também muda. Tirando uma ideia de Goethe, Warburg organiza a Biblioteca segundo o princípio da boa vizinhança ou das afinidades eletivas. Isto é, os livros e as imagens não tem um lugar fixo. Eles vão trocando lugares, criando novas constelações, figurando novos territórios… Como Warburg não tem escrito um “método”, a própria Biblioteca dá visibilidade à heurística da pesquisa warburguiana. Numa heurística os passos da pesquisa não estão pré-anunciados pela estrutura do método. A heurística é a construção de um território no qual surgem, às vezes de modo inesperado, figuras que não procurávamos e que exigiam reformular o percurso da pesquisa. A Biblioteca expõe essa possibilidade heurística que propõe o pensamento warburguiano.
O que o seu curso destaca da vida e obra do historiador?
O curso vai apresentar de modo problemático os principais conceitos do pensamento warburguiano para tentar não apenas expor os princípios gerais desta heurística, mas para tentar nos aproximar das imagens numa perspectiva que permita pensar em elas e através delas, as políticas das imagens inscritas em nossa atualidade. Através dos conceitos warburguianos propomos repensar nossa relação com as imagens: neste sentido o curso vai apresentar esses conceitos para construir a cartografia que tem por nome Iconologia como um modo de questionar as origens das imagens em nossa cultura. Muitos pensadores (Agamben, Ginzburg, Burucúa, Alain Michaud, Didi-Huberman, dentre outros) tem se aproximado à nossa realidade atual partindo das premissas conceituais da iconologia warburguiana. O curso vai tentar retomar essas tentativas para pensar, junto com Warburg, as origens próprias das imagens na cultura do presente e a configuração de uma política do comum exigida e pensada nas imagens.
Você recomenda algum livro ou ensaio para quem quer conhecer mais a obra de Warburg?
Dois livros são importantes para nos aproximar de Warburg: “Aby Warburg e a imagem em movimento”, de Philippe Alain Michaud. Ele apresenta o pensamento iconológico sob o viés dos princípios do cinema e indica o vínculo da iconologia com os procedimentos cinematográficos. E “A imagem sobrevivente: História da Arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg”, de Didi-Huberman que apresenta um estudo integral do pensamento iconológico, mostrando as diferentes perspectivas que estão envolvidas na elaboração do pensamento warburguiano.
Sobre Hernán Ulm
Hernán Ulm é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2014) e é Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidad Nacional de Salta (2006). Desde 2022 é professor titular de problemáticas estéticas contemporâneas na Universidade nacional das artes, em Buenos Aires. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Estética, atuando principalmente nos seguintes temas: estética, arte, política, deleuze e subjetividade, teoria das imagens e intermidialidade.
O curso da FGV Arte “Imagem, memória, montagem: Warburg e a antropologia do visível” está com as inscrições esgotadas.
Imagem: Aby Warburg: Bilderatlas Mnemosyne – The Original, 2020. Vista da instalação no Haus der Kulturen der Welt, Berlin © Silke Briel / HKW.