POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
Diferentes leituras do trabalho de Claudio Edinger reforçam um mesmo aspecto, que envolve suas imagens, e que poderíamos chamar de ética do olhar. Isso significa que, em seu percurso com a fotografia, desenvolvido desde meados da década de 1970, para além do registro visível, ou ainda, apoiado no fenômeno estético há um dado ético que se imprime e que configura, afinal, a relação entre o sujeito e o mundo: operar um olhar aparelhado, protético, isto é, manejar um olhar sustentado pela técnica é estabelecer uma singular forma de contato com o outro, o que se desdobra não apenas em ver e em ser visto, mas também em ver-se vendo.
Sobre essa condição artificial do olhar – uma condição que foi naturalizada ao longo da modernidade e do convívio com os variados dispositivos produtores de imagens técnicas – recai o desafio. Pois se a mediação do aparelho deixa de percebida; se os condicionamentos impostos pela própria natureza técnica do dispositivo não são questionados; se a relação que se estabelece com o entorno por meio do aparato não é motivo de interrogação e experimentação – então é grande o risco de prevalecer, no trabalho fotográfico, uma automatização insensibilizadora do olhar. Com efeito, é essa operação automatizada, que aplana o mundo na imagem e assim transforma qualquer forma de vida ou acontecimento em espetáculo ou clichê, o gesto que melhor traduz a anestesia hipersensível do mundo contemporâneo.
Daí os extremos que essa condição paradoxal e ansiosa assume, flagrados de maneira ostensiva na cultura contemporânea: no fotojornalismo e nos editoriais de moda, na fotografia “artística” e na fotografia “documental”, nos perfis de redes sociais e nas campanhas políticas, publicitárias etc. De um lado, a “estetização” indiferente do mundo, ou seja, a capacidade de transformar, com os recursos fotográficos, até a desgraça mais pungente em objeto de contemplação desinteressada. De outro, o apelo sensacionalista que, à força dos mesmos recursos, mas interessado numa repercussão vazia, contanto que monetizante, consegue converter em imagem de grande impacto mesmo a maior das trivialidades.
Em seu trabalho, Claudio Edinger percorre um caminho distinto, avesso a tais armadilhas, mesmo quando transita, com muita fluidez, pelo mundo do jornalismo cosmopolita ou, digamos, da arte de luxo. Se considerarmos, por exemplo, fotografias desenvolvidas nas duas últimas décadas, nas quais explora o foco seletivo com câmera de grande formato, veremos que elas são emblemáticas desse gesto de desautomatização do olhar e das relações com o outro.
A seu modo, Edinger nos mostra nesses trabalhos o inconsciente ótico do nosso faminto olhar fotográfico projetado sobre o mundo: “há um abismo entre o modo como realmente vemos o mundo e a maneira como a fotografia nos ensinou a acreditar que vemos”, sintetiza Guilherme Ghisoni. Ou seja, o olhar não é a captura instantânea de imagens sempre claras e límpidas. Ao contrário, nosso olhar, disposto sobre um campo mais ou menos vasto, sempre singulariza: ele seleciona, enfoca, atento ao que, num espaço-tempo preciso, nos toca pontualmente, enquanto o restante adquire contornos imprecisos, quase se confundindo num entorno informe. “Na fotografia, como na vida real, a intimidade surge de um conhecimento profundo”, escreveu o artista. “O foco seletivo, com foco e desfoque na mesma imagem, mostrando como vemos de fato, procura aprofundar esta verdade fundamental sobre a intimidade”.

Claudio Edinger, Paradoxo do olhar, 2014.
Ao trabalhar com o foco seletivo, Claudio Edinger encaminha, portanto, a desnaturalização de um olhar que, ao longo da modernidade, identificou-se com o instantâneo fotográfico, ou seja, com um efeito da técnica que produz indistintamente, numa mesma superfície, um campo de visão que na verdade é diferencial e com múltiplas dimensões. Mas, ao fazer isso, o fotógrafo também promove uma sensibilização do olhar, que nas fotografias pode ver-se em sua própria intimidade, isto é, exposto ao modo como se dá a sua projeção sobre o mundo, uma condição em geral iludida e performada inconscientemente.
O gesto do artista dá conta assim de, por meio da técnica, estabelecer relações não entre sujeito e objeto, mas entre sujeito e sujeito. Desse modo, aquele que vê não só é igualmente visto, como também se vê, através do aparelho, sendo colocado em questão, quando diante do outro, no mundo. Trata-se, em suma, de ver-se vendo: um decisivo exercício de descentramento, em jogo na longa trajetória do fotógrafo, com o qual o olhar técnico deixa de ser um instrumento de poder, promotor da hierarquização e do controle a partir de um eu autocentrado, para torna-se um meio relacional, quer dizer, de mútuo envolvimento e implicação no campo do visível.
Ao considerar seus retratos, Simonetta Persichetti escreve: “Edinger procura estabelecer uma relação com seu objeto de estudo que o coloque no interior da sua psique. De fato, não existe qualquer diferença entre o retratado e o que retrata, embora, numa análise mais atenta, exista uma linha tênue entre o artista e o seu objeto. O artista faz a escolha do que quer mostrar, apesar do que o retratado projeta. No entanto, há uma cumplicidade entre o fotógrafo e o seu retratado e há uma autoria partilhada”.
Assim, mesmo manejando uma técnica extremamente refinada, que parece deixar pouca margem para o imprevisto, Edinger entende que a fotografia não se limita à produção da imagem, à captura do tema, ou a qualquer modo de fixação e apropriação do que é, essencialmente, dinâmico, vivo. Ao contrário, arriscaria afirmar que, para ele, a fotografia, como prótese do olhar, é de fato um processo, uma experiência, ou ainda, uma forma de estudo e de conhecimento: mas não do que seria um mero assunto, tema ou objeto, e sim do que somos, do que não somos e do que, afinal, podemos vir a ser, uns com os outros.

Claudio Edinger, Madness, 1989.
Como pensar de outra maneira os períodos vividos pelo fotógrafo nos locais e entre aqueles que seriam fotografados? Para registrar os judeus ortodoxos no Brooklyn, em Nova York, Edinger viveu dois anos com eles. Para fotografar os doentes mentais internados no Hospital Psiquiátrico de Juqueri, em São Paulo, Edinger passou semanas, em diferentes oportunidades, entre os mais de 3.500 pacientes institucionalizados. E o mesmo vale para a série de retratos dos excêntricos ocupantes do Chelsea Hotel, para as fotografias feitas entre os frequentadores de Venice Beach, para a série em que retrata os moradores de Havana, para o álbum sobre o carnaval brasileiro, para as fotografias feitas em Nova Déli, em Calcutá etc.
Não à toa, Guilhermo Cabrera Infante afirmou a propósito da experiência cubana do fotógrafo: “Ele fala das suas fotografias não como uma imagem contínua da estética da miséria, mas como uma ética que insiste em ser profundamente moral”. Ao que Nan Richardson acrescenta: “O fato de evitar a ‘estética da miséria’, a língua franca do fotojornalismo em seu denominador comum, é o que diferencia Edinger nesse trabalho e em outras de suas melhores séries”.
Se a contemporaneidade é marcada por avassaladoras imagens/cifras instantâneas, já desprendidas de qualquer lastro de experiência ou de espaço-tempo efetivamente compartilhado, as fotografias de Claudio Edinger são o seu revés crítico e criativo: imagens que insistem na profundidade das relações, na intimidade do olhar atravessado pelo outro, como uma abertura para o que ainda pode ser uma existência em comum.
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