Tarsila do Amaral na exposição Um presente para Ciccillo

Tarsila do Amaral. Gente no Povoado I, c. 1953. Nanquim sobre papel, 33,3 x 49,5 cm. Fonte: Catálogo Exposição Um presente para Ciccillo, FAAP, 2007.

POR MICHELE PETRY

A exposição Um presente para Ciccillo exibiu na Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA Museu), entre os dias 01 de maio e 02 de outubro de 2022, um conjunto de quarenta e oito obras reunidas por Oscar Pedroso D’Horta (1908-1975) em um álbum para a entrega de artistas amigos como presente à Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccillo) (1898-1977). Tratava-se de uma homenagem íntima num contexto de ataques públicos feitos a ele, enquanto presidente da Comissão do IV Centenário de São Paulo, assim como por ocasião da II Bienal Internacional do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Apresentada ao público pela curadora Denise Correa dos Santos Mattar (1948), a exposição ocorreu antes em outras oportunidades: pela primeira vez no Espaço Cultural BM&F – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros, em São Paulo (2006); depois no núcleo interior da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), nas cidades de Ribeirão Preto (2007) e de São José dos Campos (2008); e no Espaço Galeria do Serviço Social da Indústria (SESI) de Campinas, Itapetininga, São José do Rio Preto e São José dos Campos, SP, em 2017, no formato de mostra itinerante.

Na FAMA, a exposição teve a mesma proposta curatorial das anteriores, porém a expografia foi elaborada a partir do seu espaço, de uma paleta de cores e de interferências geométricas inspiradas na obra de Samson Flexor (1907-1971), Sem título (1953). Dela surge o uso dos tons de cinza como base para as paredes da Sala Rolim Amaro e os de laranja, roxo, azul ou amarelo, por exemplo, para os detalhes das faixas verticalizadas.

Samson Flexor. Sem título, 1953, guache sobre papel, 72,5 x 50,5 cm.
Fonte: Catálogo da Exposição Um presente para Ciccillo, FAAP, 2007.

 

FAMA Museu. Vista da Exposição Um presente para Ciccillo, 2022.
Fonte: Stefanie Klein/FAMA Museu.

O conjunto foi disposto conforme uma organização de grupos temáticos representativos dos artistas que compunham o álbum: Os Modernistas, compreendendo o Primeiro Modernismo, entre o final das décadas de 1910 e 1920, o Clube dos Artistas Modernos (CAM) e os Salões de Maio, na década de 1930; Grupo Santo Helena, formado por artistas imigrantes ou descendentes desses no ano de 1935; Família Artística Paulista, criado em 1937 como resposta ao Salão de Maio, e 19 Pintores, referente à exposição de arte moderna paulista na década de 1940; Itália e Brasil, abrigando o grupo de artistas italianos residentes no país pelas circunstâncias da Guerra; Entre a Figuração e a Abstração, o embate dessas tendências artísticas; e Atelier Abstração, fundado por Flexor, com atuação na década de 1950: “Telas empilhadas, telas nos cavaletes e nas paredes, coleções de cerâmicas populares e imagens de santos trazidas da Bahia, a desordem gostosa de um ambiente bem Paris fazem do estúdio de Samson Flexor um refúgio, onde os alunos do artista trabalham cheios de fé” (AMARAL, 1952 apud BRANDINI, 2008).

Desses grupos faziam parte, entre outros, Di Cavalcanti (1897-1976) e Flávio de Carvalho (1899-1973); Mario Zanini (1907-1971); Bruno Giorgi (1905-1993); Giuliana Giorgi (1911-2009), Gaetano Miani (1920-2009) e Gastone Novelli (1925-1968); Aldemir Martins (1922-2006), Odetto Guersoni (1924-2007) e Gerda Brentani (1908-1999); Jacques Douchez (1921-2012), Suzana Izar (1918-1990) e Wega Nery (1912-2007).

Tarsila do Amaral (1886-1973), posicionada na exposição junto ao grupo do Primeiro Modernismo, embora também tenha participado do Salão de Maio de 1939, esteve na recepção organizada para Ciccillo e o presenteou no álbum com a obra Sem título (Figura 3), que identificamos ser Gente no Povoado I (c. 1953), nanquim sobre papel, a qual possui quatro associações no Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral (2008). As mesmas dizem respeito à Gente no povoado II (c. 1953), grafite sobre papel de seda, localizada no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo (Pina); Gente no povoado III (c. 1953), grafite e nanquim sobre papel, exposta com outras cinquenta e quatros obras de Tarsila do Amaral na Galeria Paulo Prado, em São Paulo (1980); Gente no povoado IV (c. 1953), grafite e nanquim sobre papel; e Gente no povoado (1970), água-forte, ponta-seca e relevo seco sobre papel, uma gravura realizada por João Luís Oliveira Chaves (1924-2014) para o Núcleo dos Gravadores de São Paulo (Nugrasp), a partir de um desenho da década de 1940, não identificado, com tiragem de cem exemplares e vinte provas de artista (CATÁLOGO, 2008).

Tarsila do Amaral. Gente no Povoado I, c. 1953. Nanquim sobre papel, 33,3 x 49,5 cm.
Fonte: Catálogo Exposição Um presente para Ciccillo, FAAP, 2007.

No ano de produção da obra exposta, 1953, Tarsila do Amaral produziu trinta e cinco obras, classificadas como pinturas, desenhos, decalques, estudos e ilustrações. São desse período A Feira III, Passagem de nível II, Porto I, Vilarejo com ponte e mamoeiro e Paisagem com touro II, obras com motivos de outras, elaboradas na década de 1920, ou, posteriormente, na década de 1960: A Feira I (1924), A Feira II (1925), Passagem de nível I [1925], Passagem de nível III (1965), Porto II (1966), O Mamoeiro (1925), Paisagem com casario e mamoeiro I (c. 1963), Paisagem com casario e mamoeiro II (c. 1964), Paisagem com touro I (c. 1925) e Paisagem com touro (1970-1972). Essa última, xilogravura e relevo seco sobre papel, lembra a gravura Gente no povoado (1970), uma vez que ambas foram realizadas pelo mesmo gravador em tom de azul e com um detalhe dourado no touro e no mamoeiro, respectivamente.

Os temas e as formas de Gente no povoado I aparecem na gravura de mesmo nome e, com modificações, nas demais obras associadas a ela. Contudo, a formação de um grupo de figuras, adultos e crianças, no primeiro plano da imagem permanece e remete à Fotografia (1953) e Crianças no vilarejo [1970]. Já a paisagem, com suas árvores e casas, evocam Povoação I (1952), Povoação II (1953), Paisagem com casas e figuras I (1950-70) e Paisagem com casas e figuras II (1950-70). A copa de uma das árvores em formato de coração está presente nas conhecidas obras A Cuca (1924) e Cartão-Postal (1929). Essas possíveis relações entre as obras de Tarsila do Amaral reverberam a tese de que existe um universo próprio da artista nas suas composições que ultrapassa a demarcação de fases em uma linha do tempo.

Um presente para Ciccillo, exposição produzida com ampla pesquisa de documentos em torno do evento que deu origem ao álbum e sobre ele próprio, apresentou um recorte da arte brasileira que permite conhecer um panorama geral de artistas atuantes no século XX na cidade de São Paulo. Esse é o caso de Tarsila do Amaral, artista muito conhecida pela sua produção da década de 1920, mas que possui obras também significativas, localizadas em décadas posteriores, como Gente no Povoado I (c. 1953) que, quando colocada sob um novo olhar, fomenta o necessário diálogo sobre a sua atuação no campo da arte moderna e contemporânea no Brasil.

Michele Petry é historiadora e possui pós-doutorado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), na Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica

UM PRESENTE PARA CICCILIO
DE 1/5 A 2/10/2022
FABRICA DE ARTE MARCOS AMARO – FAMA
ITU

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