MAR é ou não é do Rio?

O quadro ‘A queda do céu e a mãe de todas as lutas’ foi produzido pela artista Daiara Tukano especialmente para a exposição

POR JOÃO VICTOR GUIMARÃES

Museu de Arte do Rio ultrapassa posturas obsoletas ao apostar em exposições que destacam as narrativas, sobretudo coletivas, rejeitando discursos universalistas e ferramentas elitistas

“O Rio é o Brasil, São Paulo é o mundo, e a Bahia é a Bahia” escreveu em sua rede social o louvável poeta baiano James Martins. Não importando aqui e agora se o ideograma é uma célebre frase já dita ou constatação do poeta que a revela escrita, a sua publicação comoveu um sem-fim de pessoas. Verdade que tal impacto ocorreu também em razão das marcas e mensagens deixadas pela passagem de Beyoncé por Salvador. O lançamento do seu filme não ocorreu em São Paulo, Rio de Janeiro, tampouco Paris ou New York. Salvador! A afirmação da cidade e sua bela força comove o bom coração de quem a ama. Possivelmente se deve a isso o alcance da poesia/frase/afirmação publicada por Martins. Obrigado, poeta!

Há, contudo, espaço para todos os bairristas corações. Ora, “O Rio é o Brasil, São Paulo é o mundo”, embora seja poeticamente baseada em fatos históricos, traços culturais e suas manifestações, também é um presente e tanto para esses estados que creem estar nas suas capitais o Capital e a força motriz da nação. Sabemos que, diante de tamanha presunção, a Bahia, berço de alguns dos mais conflituosos e decisivos embates da civilização brasileira, não passaria de recanto e colônia (de férias). Esse delírio é um sintoma da grande ignorância que assola  até as mais brilhantes mentes e corações do país que atribuem ao Sudeste não só poder financeiro, que de fato têm, mas também o poético, cultural, filosófico, político e artístico capaz de sintetizar e  representar os símbolos totais da nação e de parte do mundo. Claro, possivelmente o ideograma de James Martins tenha como base muito mais as mazelas do Sudeste do que suas glórias. A capital mais rica da América Latina é também a que obriga seus habitantes e milhares de desabrigados a “ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina” cotidianamente perpetrada na Cracolândia, um dos mais recentes pelourinhos do Brasil. Monumento absoluto, gigantesco e eterno do desastre que se tornou a civilização ocidental, capitalista, patriarcal e burguesa. Se bio ou necropolítica, Lacan e Achille Mbembe debateriam. Contudo, é em meio a tudo isso que se engendra a cultura.

O Rio de Janeiro se frustra há muito por não ser o Brasil, por pouco conhecê-lo e, diferente do que gostaria, reconhecê-lo cada vez menos. Há décadas que as novelas ambientadas na Zona Sul carioca inventaram, por exemplo, uma paisagem musical teoricamente nacional capaz de incluir a MPB e concomitantemente excluir outros gêneros musicais igualmente (ou mais) populares e relevantes que este. Sim, são inúmeras as razões, limitações e justificativas para tudo. No entanto, temos um fato: os produtos sudestinos representam uma enorme necessidade de afirmar-se como centro de tudo. Sem que seja necessário perscrutar, revelam-se inúmeras falhas. Meio a essa que parece ser uma tendência ou vocação há, contudo, o Museu de Arte do Rio que há muito tem sido acolhedor e refletidor de narrativas pautadas no coletivo. A exposição Do Valongo à Favela: imaginário e periferia, por exemplo, marcou a inserção do Arquivo ZUMVÍ nas exposições. Hoje o arquivo oriundo das periferias da capital baiana segue sendo referência na preservação e concentração da memória do pós-abolição, participante da 35ª Bienal de São Paulo e curador adjunto da exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia que esteve em cartaz no MAR.

Aliás, no Museu de Arte do Rio, atualmente estão oito exposições: Funk: um grito de Ousadia e Liberdade, Gira da Poesia: 15 anos de Slam no Brasil, Narrativas em Processo: Livros de Artista, Confluências: entre ruas, escola e museus, Laroyê: Grande Rio, Onà Irin: Caminhos de Ferro, individual de Nádia Taquary, Brasil Futuro: As Formas da Democracia e Ocupação Bori: o Filme + Coleção MAR. Essas três últimas apresentam artistas e curadores baianos. Onà Irin, por exemplo, além de dedicada à baiana Nádia Taquary, marca o início de uma série de exposições individuais de artistas mulheres (como Pâmela Castro e Daiara Tukano). Onà Irin também conta com curadoria de Amanda Bonan, Marcelo Campos e Ayrson Heráclito, artista, curador e professor baiano que apresenta no MAR a ocupação Bori junto ao filme dirigido por Lula Buarque de Holanda realizado em razão da performance que Heráclito faz em 2021 na Pinacoteca de São Paulo da qual participaram Moisés Patrício, Sheyla Ayo, Hélio Menezes entre outras/os artistas. Contudo, é a exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia que apresentou artistas e curadores de todas as regiões do Brasil. Itinerante, a mostra iniciou-se em Brasília, com curadoria de Lília Schwarcz, Márcio Tavares, Rogério de Carvalho e Paulo Vieira. Em Belém, além de artistas paraenses e nortistas, Roberta Carvalho foi convidada à curadoria adjunta. Em Salvador, o Acervo da Laje e o Arquivo ZUMVÍ, além de participarem com obras, também fazem parte da curadoria adjunta. Pelo menos até março deste ano, foi esse o panorama apresentado ao público que visitou o Museu de Arte do Rio.

Desfile da Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd.

Obra da exposição “Ònà Irin: Caminho de ferro”, de Nádia Taquary.

‘A queda do céu e a mãe de todas as lutas’. Por Daiara Tukano.

 

Além da presença de representações artísticas de outros estados do Brasil, o MAR também tem apresentado fontes e perspectivas muito valiosas elaboradas em solo fluminense. A exposição Funk: Um grito de Liberdade e Ousadia destaca a tomada do espaço institucional e cultural por expressões culturais, artísticas e filosóficas que ainda sofrem do desprezo de grande parte da “classe-média-intelectual” brasileira. Aliás, a exposição Slam: 15 anos de Slam no Brasil revela a importância de documentos, dados, obras e memória, enfim, que ainda não estão oficializadas e, por isso, seguem subalternizadas. Segundo Marcelo de Campos, curador-chefe do Museu, são narrativas, objetos e memórias que “não adianta buscar em acervos institucionais porque são fruto de histórias que ainda não estão institucionalizadas”. Ou seja, há no Museu a presença de dados, obras, narrativas, objetos que só é possível acessar através de coleções particulares, nas casas das pessoas porque, definitivamente, a história do Slam no Brasil, muito menos do que a do Funk, ainda não faz parte da história nacional oficial. Porém, quem conta essas histórias? Quem são esses colecionadores/as? Quando vemos na exposição, por exemplo, cartazes de shows em centros culturais desfavorecidos, não restam dúvidas: é a periferia que fala daqui pra frente.

Thales Leite/ 2023

Uma pesquisa interna do Museu de Arte do Rio aponta que 60% do público que frequenta o MAR hoje é formado por pessoas que visitam um museu pela primeira vez. Sendo assim, o Museu tem demonstrado adotar algumas práticas, inclusive e sobretudo curatoriais, como, por exemplo, a escolha por montagens nas quais a narrativa tenha destaque. Isso não significa subestimar a inteligência, afinal, nem toda narrativa é simplista. Mas sim propor uma relação mais nítida entre o que se vê dentro do Museu com aquilo que se vê fora dele. É ter o Museu próximo do público e do mundo. Consequentemente, todo o mundo faz parte do Museu.

Pode parecer pouco, se visto de longe ou de forma ingênua, mas requer coragem inserir num museu obras que não necessariamente irão valorizar a coleção de galerias e suas personagens, antigas conhecidas do mercado das artes plásticas. Muito além da importância política e sua contribuição para a História, há um investimento sendo feito em artistas que só são contemplados graças, claro, ao seu trabalho, mas também à insistência da curadoria, em especial Marcelo de Campos, na lida quase cotidiana com artistas, ateliês, papos, encontros. O exercício da curadoria exige muito menos visitas a galerias e mais às ruas, salas de aula e todo e qualquer espaço onde haja arte a se mostrar. É a rua que suporta as evoluções. A popularidade é vitoriosa porque é fruto e semente do fracasso de projetos dicotômicos e excludentes ainda muito defendidos pelas camadas que, com seus mecanismos e instituições manipuladoras, se intitulam elite intelectual brasileira e reafirma seus dogmas acadêmicos, artísticos e curatoriais eurocentrados incapazes de representar dignamente o Brasil, o mundo, tampouco a absoluta e gloriosa Bahia. Há, afinal, na popularidade um quê de devolutiva. Dogma algum pode domar uma vontade manifestada pela presença dos corpos que ocupam o MAR, moldam suas narrativas e assumem seu destaque.


As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião da revista Dasartes, sua equipe e conselho editorial.

João Victor Guimarães é crítico de arte, pesquisador, curador, graduando em Artes pela UFBA e colabora com as Revistas Dasartes, Select e Bravo!

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