À exceção do corpo negro | Inhotim

Marcel Diogo na exposição Direito à forma, Galeria Lago, Inhotim.

O racismo é um emaranhado de sutilezas. Beatriz Nascimento

No debate entre autoria, representação e representatividade, há um ponto que trata sobre o critério de seleção de obras e artistas: alguns críticos temem que a escolha sustentada por gênero, origem, ou racialidade possa afetar a “boa arte”; outros mostram sua apreensão sobre a política na arte e, outros, ainda zelosos pela estética universal e universalizante, classificam tudo como “onda passageira”. Há outros críticos ainda mais perigosos que fixam limites tecno-conceituais à arte afro-brasileira. Todas são posições complexas porque mascaram o sistema de exclusão e apagamento presente na crítica, na história e na arte brasileira.

Adjacente, na cena contemporânea, instituições e processos curatoriais têm se dobrado às proposições de artistas e curadores não brancos. E esses agentes se dedicam a percorrer novas histórias e a questionar as “caixinhas” que a crítica insiste em colocar para essas produções. Nas práxis desses artistas e curadores, destacam-se a força do coletivo, a busca por referenciais em autores, tais como, Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento, e o exercício de reposicionamento de artistas negros e indígenas na história da arte.

Muitas dessas discussões constituem o “pano de fundo” das exposições Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim e Direito à formaambas abertas recentemente no Inhotim, na Galeria Lago e na Galeria Fonte, respectivamente. As exposições integram o Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, parceria entre o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) e Inhotim (2021-2024).

Rubem Valentim, Emblema-83. Foto: Divulgação Instituto Inhotim

Aliás, o Programa está firme no propósito de ter “um museu dentro do museu”, isso porque as mostras Primeiro ato – Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, Segundo ato – dramas para negros e prólogo para brancos, Terceiro ato: sortilégio e Mestre Didi – “os iniciados no mistério não morrem”, somadas às exposições atuais, dão densidade e vigor à pesquisa e à produção afro-brasileira. A presença negra – aqui incluo artistas, curadores e público – em Inhotim tem sido uma frente de inserção de discursos diversos em espaço historicamente elitizado. Claro! Essa relação apresenta embates e estranhamentos, mas considero o Programa um princípio de apropriação desses lugares antes veladamente proibidos.

Mas, deixemos o contexto e vamos às exposições novas. A primeira delas, Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim, com curadoria de Lucas Menezes e Igor Simões, está dentro do escopo de investigação que envolve o Museu de Arte Negra, uma vez que são reconhecidas as relações do artista com Abdias do Nascimento e suas obras serem parte significativa do seu acervo. Porém, é um grande desafio curatorial. Como fazer a diferença, quando a obra de Rubem Valentim foi tantas vezes exposta e discutida? Entre as diversas mostras, lembramos, por exemplo, de Rubem Valentim: construções afro-atlânticas (2018-2019), no MASP. E, aí temos o “pulo do gato” curatorial: além de reunir a produção do artista em distintos períodos desde 1950, os curadores buscaram por artistas que se relacionam com a poética de Rubem Valentim, entre eles: Mestre Didi, Emanoel Araújo, Bené Fonteles, Rosana Paulino, Jaime Lauriano, Rebeca Carapiá, Rubiane Maia, Allan Weber, Froid e Jorge dos Anjos.

Galeria Lago, Inhotim. Foto: Tiago nunes.

No título “fazer o moderno, construir o contemporâneo”, o anúncio do legado de Rubem Valentim que, apesar de não se considerar um integrante do concretismo – ele mesmo declarou “nunca fui um artista concretista” –, empregava a geometria como um meio, assim como o racionalismo característico dos concretos. As formas dominam as obras, evidenciando a grandeza do universo simbólico e sua ancestralidade, que se manifesta não apenas de modo estético, mas também mágico.

Do artista, destacam-se os trabalhos que integram a coleção do Museu de Arte Moderna da Bahia, os do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, os do Museu da Pampulha e as mais de 30 obras que pertencem à coleção de Inhotim. É uma festa de emblemas e signos de Exu e Xangô – orixás referenciados por Valentim. E, ao final da mostra, perguntamo-nos: quantas vezes a “crítica branco-cêntrica” deixou de ler completamente Valentim?

Dos trabalhos de gerações mais recentes, atrevo-me a destacar os de Rosana Paulino e Froid. Na série de trabalhos Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical (2017-2019), Paulino levanta suspeitas sobre a “vocação à geometria” da arte nacional. A artista evoca as imagens da exuberante natureza tropical e da iconografia de homens e mulheres negros e indígenas do século 19, em geral, em preto e branco, com interferências de figuras geométricas em cores fortes – essa associação torna-se inquietante pelo contraste visual. Como se a presença das figuras geométricas pudesse anular a presença da flora, fauna e das pessoas.

Já o trabalho comissionado pelo Inhotim, Boi de piranha – BRAZILIAN ZODIAC (2021), de Froid, é uma instalação com 25 quadros com a representação de bichos e um cavalete alla Lina Bo Bardi, feito de vidro, cimento e engradado de cerveja. A cada dia, um dos quadros é exposto no cavalete – entende a dinâmica mais facilmente quem é das periferias e conhece as regras do jogo do bicho. Porém, o cavalete improvisado remete ao espaço expositivo do MASP – é quase uma pequena invasão “da alta cultura” no mundo periférico, mas, no fundo, é o jogo do bicho que está sendo exibido em uma galeria de Inhotim.

Froid, Boi de Piranha. Foto: Tiago Nunes.

Na segunda exposição Direito à forma, com curadoria de Deri Andrade e Igor Simões – faço uma ressalva para tratar da intensa prática de Simões, curador convidado nas duas mostras, e que vem se sobressaindo em outras exposições nacionais, tais como a mostra Dos Brasis, no SESC Belenzinho, e Mestre Didi – “os iniciados no mistério não morrem”, no Inhotim. Feito isso, percebe-se o diálogo curatorial entre Menezes, Simões e Andrade, especialmente pela associação entre obras de Rubem Valentim e Mestre Didi, presentes nas duas mostras.

Porém, Direito à forma é quase um manifesto, pautado pelas ideias de Beatriz Nascimento, no qual artistas negros reivindicam a investigação formal, a abstração e os parâmetros conceituais. A frase de Beatriz Nascimento “Eu sou Atlântica” abre o texto curatorial da exposição. A mostra exibe ainda o vídeo-documentário Ori (1989), de Raquel Gerber, sobre a historiadora e ativista do movimento negro.

Como afronta, os trabalhos selecionados para a mostra destroem a ideia de que a arte de autoria negra, necessariamente, está relacionada à figuração. Deliberadamente, não se exibe o corpo negro nas proposições artísticas. Este é um grande golpe à “crítica branco-cêntrica” que sustenta suas argumentações na ausência da pesquisa formal e sempre espera por um corpo negro nas produções de autorias negras.

A força do coletivo surge como textura desta mostra. São mais de 30 artistas presentes – uma prova da potência das artes visuais feita por pessoas negras. Alguns nomes estão em evidência, tais como Sônia Gomes, Ayrson Heráclito, Rommulo Vieira Conceição, Iagor Peres, Rebeca Carapiá, Helô Sanvoy, Juliana dos Santos e Mulambô.

Sonia Gomes, Sem título, da série Torções, 2021. Foto: Divulgação Instituto Inhotim.

Como na primeira exposição, assinalo dois trabalhos: Divisor III (2002), de Ayrson Heráclito, um impressionante tanque de vidro com água, sal e dendê – a relação dialética entre os materiais (conexão e disjunção) remete à diáspora Atlântica e seus desdobramentos. Já Mulambô, em Terra Estrelada (2021), reinterpreta a bandeira dos EUA, com cores e formas de movimentos libertários e, igualmente, são as cores do manto de Nossa Senhora de Guadalupe – então, o trabalho se torna uma homenagem aos latino-americanos que construíram a “América”.

Assim, a visita às exposições nos mostra como o olhar para artistas negros pode ganhar uma perspectiva mais ampla. A inserção dessa produção em um contexto afro-atlântico e exibida em instituições, como Inhotim, pode revelar conexões adicionais e ainda não experienciadas. Estamos em um momento em que artistas e curadores negros têm nas mãos as rédeas das discussões sobre o conceito de arte afro-brasileira. Exposições como essas servem para que a crítica não traga um “emaranhado de sutilezas” que nada se relacionam com o “exercício de liberdade” que foi sempre proposto pela arte.

Leia AQUI matéria completa de Mestre Didi no Instituto Inhotim, por Alecsandra Matias de Oliveira

Leia AQUI matéria completa de Abdias Nascimento no Instituto Inhotim, por Alecsandra Matias de Oliveira

Alecsandra Matias de Oliveira é pós-doutorado em Artes Visuais (Unesp). Doutora em Artes Visuais (ECA USP). Mestrado em Comunicação (ECA USP). Professora do Celacc (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação Internacional dos Críticos de Arte (AICA). Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022). Curadora independente e colaboradora da Revista DasArtes, Jornal da USP e Revista USP.

VEJA GALERIA DE IMAGENS DA EXPOSIÇÃO ABAIXO

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