
Série “Inútil paisagem”. 2022. Técnica mista sobre tela. 130 x 100 cm.
Juan Lecuona (Buenos Aires, 1956) é legítimo representante do retorno à pintura dos anos de 1980 – a Transvanguarda, uma reviravolta nas artes visuais. À época, jovens artistas contestaram a autonomia da arte e da prevalência da estética como única construtora de significado. Eles decretaram a morte da ideia de progresso em arte e, por conseguinte, o fim da história da arte linear. Demandaram diversidade de técnicas, materiais, atitudes e abordagens. Para eles, a inspiração estava em toda a parte.

Série “Inútil paisagem”. 2021. Técnica mista sobre tela. 130 x 100 cm.
E esses são conceitos-chaves para o entendimento da exposição individual que acontece agora na Galeria Ricardo Von Brusky, em São Paulo (e segue até 17 de agosto). A mostra apresenta pinturas inéditas da série Inútil Paisagem (2018-2022), pinturas e tridimensionais dos anos de 1980, entre eles, alguns trabalhos da célebre série Calas (1986). Como sugere, a crítica escrita por Rafael Vogt Maia Rosa, que acompanha a mostra, a seleção das obras é, de fato, concisa, mas permite o “sobrevoo” sobre sua produção.
Reconhecido como fundador do grupo Babel, em 1985, junto com os artistas argentinos Nora Dobarro (1942), Eduardo Médici (1949), Héctor Médici (1945) e Gustavo López Armentía (1949). O nome Babel referia-se, sobretudo, à liberdade e à heterogeneidade de linguagens. Era um agrupamento de artistas com procedimentos diversos, mas preocupados com a dissolução do estilo e da autoria. O grupo expôs intensamente por três anos na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai.
No início de seu percurso, Lecuona criou imagens que oscilavam entre a figuração e a abstração. Seus trabalhos investigavam os adjetivos perceptivos da forma (primeiro, orgânicas e, depois, geométricas). A série Calas é desta fase. Suas imagens evocavam uma flor com conotações mortuárias, tornada desenho, pintura e tridimensional. Depois, as pinturas ganharam contornos em branco sobre um fundo preto e, mais tarde, o artista trouxe as memórias de uma enseada próximo à sua casa de infância, com diversas versões até chegar ao triângulo, que por sua vez, ganhou muitas variações e fundos.

Série “Inútil paisagem”. 2021. Técnica mista sobre tela. 130 x 100 cm.
Já nos anos de 1990, o artista convocou a figura feminina para seu repertório e se indagou sobre os problemas levantados pela história da arte, como por exemplo, as referências ao processo criativo de Marcel Duchamp. Assim, nos seus trabalhos, surgem aspectos figurativos, geométricos e cinéticos – suas obras são colocadas por alguns críticos, como “verdadeiros palimpsestos”. Essa “escrita”, “apagamento”, “reescrita” e “sobrescrita”, presente nas obras, é explicada, em depoimentos, nos quais o artista diz que uma forma altera a outra, ou ainda, uma forma se engancha com a outra.
Ele pesquisa materiais e pigmentos incessantemente. Intenciona deixar “restos de pensamentos” por meio do emprego de técnicas mistas, gestos, chapas de gravuras antigas, espátulas, sobreposições e transparência das cores. No seu processo criativo, a transição das aparências do mundo real acontece pelo domínio da cor e pela sobreposição de técnicas. Sobre os seus trabalhos, paira a compreensão de que até que ponto forma, cor e material libertam da intenção representativa.
Suas pinturas, especialmente são autorreferenciais. Nelas, se observa o contraste da linha e da mancha, bem como o embate desenho-pintura. Um olhar aguçado vê que os gatilhos do mundo invadem a memória de Lecuona e transbordam em suas telas. As obras chamadas Inútil Paisagem (2018-2022) nos dizem sobre isso. Assumidas pelo artista, como recortes urbanos – algo que ele vê de sua “ventana mnemónica”.

Série “Inútil paisagem”. 2022. Técnica mista sobre tela. 100 x 70 cm.
Em 2020, em residência na Fundación Calamuchita Arte, Lecuona fez uma série de desenhos com o mesmo nome, Paisagem Inútil, e esses seguem o mesmo princípio de suas pinturas. Eles combinam-se e recombinam-se; codificam a paisagem do isolamento pandêmico. Segundo o artista, os desenhos apropriam-se do lugar; seguem sua própria vida, então, o movimento da obra é o do mundo. Sentimos isso, na visita à exposição individual de São Paulo.
Enfim, percebemos a memória descritiva e recorrente do artista. Ele desvela lembranças de paisagens de modo gráfico, arquitetônico e intuitivo – traça um caminho íntimo e pessoal. Para o observador, o repouso do olhar sobre sua obra torna-se uma experiência única. Essa mirada, de certo modo, liga-se ao enunciado de Goethe “cada olhar envolve uma observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese”.
São Paulo, 15 de julho de 2023.
Alecsandra Matias de Oliveira.
Curadora independente. Doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutorado em Artes Visuais (UNESP). Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação Internacional de Crítica de Arte (AICA). Articulista do Jornal da USP e colaboradora da revista DasArtes. Autora dos livros Schenberg: Crítica e Criação (EDUSP, 2011) e Memória da Resistência (MCSP, 2022).