POR GUS MOURA DE ALMEIDA
A Noite sob o Sol do Meio-dia
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
José Saramago
O artista anglo-português Theodore Ereira-Guyer apresentou sua segunda exposição individual na generosa sala de exibição da residência FONTE, entre junho e julho de 2022, em São Paulo. Espaço híbrido que congrega além de galeria independente e democrática, atelier de artistas. Em mais uma iniciativa internacional, com curadoria assinada pela belga Julie Dumont e seu The Bridge Project, a mostra intitulada Time Lapse [Lapso de Tempo] é um agradável festejo para os olhos e estimulante sinapse para uma percepção particular da relação entre o tempo e o espaço.
Adentrando as duas salas conectadas por paredes diagonais, é possível perceber um conjunto de 29 trabalhos, concebidos pelo artista em viagens entre Brasil, Itália e Portugal nos últimos dois anos. Flutuam nas paredes brancas e movediças da galeria pinturas a óleo sobre tela, xilogravuras, e grandes painéis em água forte em uma montagem ao mesmo tempo harmônica e fina.

FOTO: Leka Mendes
Do grupo de telas destaca-se a aproximação de “Two small mountain paintings (i) & (ii)” [Duas pequenas pinturas de montanhas (i) & (ii)]. Trata-se de duas vistas topográficas em que se observa o lapso, característico da estética japonesa do vazio, de uma incompletude pictórica a partir das partes, digamos, inacabadas do céu não retratado nestas duas paisagens. Feitas a partir de dois rascunhos em grafite a branquitude celeste revela uma ligação entre diferentes cadeias montanhosas, representadas por intermédio de listras multicoloridas, em uma variedade de momentos de luz natural. Além destas, há outras quatro peças desenvolvidas pela técnica da pintura, todas em médio formato e expressando variações daquele mesmo tema, i.e., paisagens montanhosas. Em “Fortunes” [Sortes] a geografia pictórica utilizada pelo artista faz referência ao pontilhismo; ao passo que em “Desert mountain dance” [A dança da montanha desértica] observamos a textura destes relevos como se fosse uma vista aérea bicolor. Aqui, apesar do título referir-se ao deserto, o trabalho revela um campo fértil, talvez até mesmo agrícola. Já em “Growth” [Crescimento] o céu, agora representado, mostra-se tão pesadamente desenvolvido como se pudéssemos sentir-nos molhados pela chuva. De outro turno “Night in the mountains” [Noite nas montanhas] – a pintura mais vibrante e vigorosa de todas, que surge ao final da segunda sala – surpreende não apenas pela textura e cromatismo, mas também por, colocar em dúvida que tipo de noite está sendo retratada. Instigantemente, uma noite não escura, talvez sob a luz da lua, apresentando toda uma cadência rítmica sedutora e pulsante.

FOTO: Leka Mendes

FOTO: Leka Mendes
A pintura de Theodore resgata as paisagens mais recentes de David Hockney, sem deixar de ter como prevalência uma ideia contemporânea de impressionismo. Ao brincar com linhas e pontos, o artista consegue empreender a dinâmica tarefa de criar a partir da bidimensionalidade todo um léxico tridimensional, no qual se sublinha a sublime percepção de apreender com ironia e contrassenso diversas variações da paisagem sob vários níveis de incidência da luz.
Não bastasse a força dos trabalhos pintados a óleo, a mostra também apresenta peças inéditas em xilogravura. São verdadeiras joias em que se percebe uma diluição da paisagem rumo ao universo microscópico, orgânico e celular. Estes papéis, apresentando por vezes seis diferentes cores ao mesmo tempo, são vivazes, eloquentemente felizes, despertando um interesse por vezes de uma pueril brincadeira infantil. Dispostos hora em conjunto, ora reinantes, são provenientes de complementares séries, quais sejam: “Places we used to play” [Lugares em que costumávamos brincar]; e “Netheir here nor now” [Nem aqui nem agora]. Por si só, mais uma vez representam um embaralhamento das fronteiras entre o real e o imaginário.
Mas ainda há mais nesta exposição. O artista, virtuoso gravurista, apresenta uma coleção de quatro recentes gravuras em metal. Em “The Pond (i) & (ii)” [O Lago (i) & (ii)] a densidade da noite proporciona o dilatar das pupilas, sendo possível enxergar os detalhes de uma paisagem lacustre e suas ninféias. Por outro lado, talvez a mais importante obra, ao menos em termos conceituais, é o políptico de grande dimensão intitulado “Nocturne” [Noturno]. Aqui o espectador atento poderá ser capturado em uma epifânica sinestesia, pois a paisagem dita noturna, paradoxalmente, revelada em tons de laranja e rosa, torna possível sentir o calor do sol do meio-dia. Deste modo, o artista joga todo o tempo com a ficção e a realidade, confundindo quem o observa de forma mais próxima.
À parte este conjunto de paisagens montanhosas e lacustres, há, a observar a exposição, uma espécie de coro de inspiração greco-bizantina composto por 12 máscaras gravadas sobre pequenas placas de gesso, também em uma diversidade de cores. São rostos inquisitivos e perplexos, cujas expressões revelam, assim como os outros trabalhos, um tempo paralisado.

FOTO: Leka Mendes
Percebe-se então que o mote de toda a exposição se concentra no valor e na afirmação do paradoxo e da ambiguidade.
Com efeito, visitar a exposição “Time Lapse” de Theodore Ereira-Guyer, mostra-se um mergulho, sem rede de segurança, em uma equação espaço-temporal híbrida, a conjugar o agora estendido, ou uma sensação de longevidade instantânea.
Theodore Ereira-Guyer – Time Lapse
De 23 de junho a 23 de julho de 2022
FONTE