POR DOMI VALANSI
“A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.”
Darcy Ribeiro em “O Povo Brasileiro”
Um dos acontecimentos mais absurdos de 2016 foi a sessão do impeachment da presidente. Com requintes patológicos de crueldade, o ainda deputado do “baixo clero” Jair Bolsonaro, acrescentou ao seu voto a fala “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Nas estruturas do poder, houve pouca reação à fala sádica, que relembra o passado de tortura a que a presidente foi submetida na ditadura, e também se provou uma prévia de quatro anos de desrespeito aos direitos civis que estavam por vir.
Se isso aconteceu com uma mulher em uma das posições mais destacadas do país, ao que estão sujeitas outras, menos favorecidas social e economicamente? Nascida em uma família com um grave caso de violência contra a mulher, Gabriela Noujaim aborda esta indignação na arte, com trabalhos que destacam a luta feminina. As obras, que foram expostas no Museu Nacional da República, em Brasília, na individual “Resistência Latinamérica”, estão em cartaz no Museu da República, no Rio de Janeiro.
Seja mártir, seja heroína
O Palácio do Catete foi sede da Presidência da República no período de 1897 a 1960 e palco de 18 presidentes, eternizados em fotografias penduradas, lado a lado, na parede. Em contraponto, a poucos metros dali, na sala que abre a exposição de Gabriela Noujaim está a instalação “Museu das Mulheres” (2023).
A obra relembra a vida e lutas de 16 mulheres lutadoras e revolucionárias como a vereadora Marielle Franco, a farmacêutica Maria da Penha, a artista cubana Ana Mandieta, a líder indígena Sonia Guajajara, a escritora Conceição Evaristo, entre outras. Formada em Gravura pela UFRJ, a artista imprimiu esses rostos no veludo vermelho, que aparecem e desaparecem conforme o espectador se movimenta diante delas.
A técnica também é usada no livro “Latinamérica” (2020), uma caixa-experiência com obras em diversos suportes e textos, sobre o impacto negativo da pandemia na vida das mulheres. A obra revela questões como condições precárias de trabalho, aumento da violência doméstica, somado aos casos de mortes pelo vírus entre indígenas e demais mulheres em situação de vulnerabilidade.
Além do livro, na pandemia a artista imprimiu o mapa da América Latina com a cor vermelha sobre máscaras cirúrgicas, enviando-as para profissionais da saúde de diferentes estados brasileiros. O mapa em vermelho é um elemento recorrente de sua obra, que ganha outros significados, como uma lágrima, em um dos trabalhos.
A artista está presente, impressa em uma bandeira monumental, segurando o mapa. A história do continente escrita em sangue. Gabriela Noujaim, que tem uma íntima relação com movimentos indígenas, aparece com o rosto em vermelho: seja pintura de luta ou de morte. A resistência se faz presente em forma de palavra. O contorno em branco reforça todas as existências e narrativas que desapareceram ou não aconteceram por conta do colonialismo. A fragilidade feminina de uma região que regularmente sangra.
Na mesma linha que aborda a terra pátria e mãe, a artista discute a terra origem, solo e casa dos povos originários, abordando o desmatamento, as invasões e os massacres. A exposição tem uma cartela muito definida de vermelho, magenta, rosa, e relações, afetos e cortes.
É curioso pensar que estas séries de trabalhos, com tantos elementos materiais como o papel, o tecido e a tinta, e manuais como a serigrafia e o bordado, no fim da mostra, serão digitalizados para ocuparem um espaço no metaverso. Nesta nova camada de realidade, como uma jovem América Latina, será possível escrever outras histórias e narrativas totalmente, agora sim, marcadas pela presença feminina.
A exposição “Resistência Latinamérica”, de Gabriela Noujaim, tem curadoria de Sissa Aneleh e realização do Museu das Mulheres. O Museu da República fica na Rua do Catete 153. Funcionamento: de terça a sexta feira, das 10h às 17h. Sábados, domingos e feriados, das 11h às 17h. Entrada gratuita.
Domi Valansi é jornalista com foco em artes visuais e museus com pós-graduação em Fotografia com instrumento de pesquisa das ciências sociais
GABRIELA NOUJAIM: RESISTÊNCIA LATINAMÉRICA
ATÉ 4 DE MAIO
MUSEU DA REPÚBLICA
RIO DE JANEIRO