POR MATTEO BERGAMINI
Sob as cinzas, brasa é o título da 37. Bienal Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna em São Paulo, até o dia 15 de janeiro, que reúne quase trinta artistas de cada região do país
Sob as cinzas, brasa: para um estrangeiro como eu talvez esse título seja o mais possível iluminante para enxergar todas as esfumaturas que a arte contemporânea brasileira traz consigo. Ainda bem, um título perfeito para compreender de perto quais são hoje esses ardores -as brasas- que queimam mesmo sendo escondidas pelas cinzas: eles continuam no mesmo calor, precisando somente de um sopro de vento para se incendiar novamente.
Na minha percepção, o Brasil é um dos mais resilientes país do mundo todo, eternamente e cotidianamente preparado a renascer como a fênix; esta mostra parece dar força à minha ideia através de uns trabalhos riquíssimos onde são encaradas as questões políticas, sociais, naturais, culturais que vieram à tona nos últimos anos, aliás no último século, já que estamos ainda em 2022 e continua-se na homenagem à semana de 1922, por tudo que ela trouxe até hoje em fato da criação de uma consciência cultural brasileira.
Talvez hoje essa consciência seja mais potente ainda, como ela tenha aprendido a lidar com as dificuldades de um mundo em continua transformação dentro do qual os desafios permanecem os de sempre: a desigualdade social, o racismo, a tutelas das minorias.
Porém, “Sob as cinzas, brasa”, escrevem os curadores, é também uma referência a dualidade da brasa, a sua capacidade de destruir como a de transformar.
Longe de ser uma mostra-documentário – acho que não seja dever da arte visual “documentar” a realidade, mesmo porque por isso existem várias maneiras mais eficientes – “Sob as cinzas, brasa” relata o universo contemporâneo da criação e dos seus itens de uma forma impecável, tocando os imaginários com pinturas, esculturas, instalações num percurso aberto e que dispõe em si todas as cores que compõem o Brasil e a brasilidade, deixando aberta uma janela aos cinco sentidos.
Há a exemplo a obra América-Latéx de Marina Camargo (Maceió, 1980) cuja conformação é a de uma escultura-pintura a representar a cartografia da América do Sul: ela aparece totalmente preta, presa numa jaula dada pelos meridianos e paralelos que nos faz lembrar mesmo as grades de um presidio, a reter uns países escravos mesmo por aquelas que deveriam ser as suas fortunas: o petróleo, a exemplo.
Em falar de escravidão, um dos mestres que se encontram em Panorama é o Glauco Rodrigues (1929-2004), pintor e ilustrador que nas décadas de 1960 e 1970 destacou-se para ter concebido uma série de obras sobre o tema do colonialismo. Com humorismo e cores que lembram as mais estereotipadas formas de Tropicalismo, as personagens nas telas do Glauco são enfeitadas de violência e sensualidade, descanso e sangue. O pintor confunde as percepções, colocando o inimigo dos povos nativos em postura de herói, brincando sem parar com a ideia feliz que a tela leva ao primeiro olhar, misturada com o medo e o terror a chegar logo depois.
De Xadalu Tupã Jekupé (Alegrete, 1985) são quatro quadros a relatar a sua origem Guarani, concebidos levando à tela os contos orais dos sábios das aldeias no estado do Rio Grande do Sul. O artista apresenta ao nosso olhar uma área desconhecida pela maioria das pessoas ocidentais, enfrentando temas ancestrais, a da criação da terra e do fogo, pondo em luz a presencia de animais-guias fundamentais nas antigas crenças, tais como sapos, urubus e jacarés. Optando por um estilo que os expertos diriam naif-ingénuo Xadalu Tupã Jekupé bem consegue em focar na visão de um universo afastado e sagrado, preciso de se conservar.
Entre os muitos outros artistas que nos permitem de obter um cartão-postal bem preciso e sugestivo a respeito desse Panorama brasileiro, vale a pena citar No Martins, que abre a exposição com as suas pinturas que levam cores pop e temáticas sociais, tais como a convivência da população negra no cotidiano urbano, os símbolos da cultura da convivialidade, junto aos conflitos sociais.
A concluir, a mágica instalação Dagmar, Filha do barro, feita pela dupla RodriguezRemor, ou seja, Denis Rodriguez e Leonardo Remor, cujo trabalho é também uma homenagem a Dona Dagmar, ceramista nacionalmente conhecida por realizar os vasos de maior tamanho do Brasil, mulher de origem indígena que recusa essa condição e que engajou ao longo da sua vida, na sua atividade, todos os seus filhos. Esse trabalho pode-se considerar também uma inscrição no futuro da grandeza da Dagmar, artista fora do mercado e dos cânones comerciais, mas não por isso menos incrível, muito pelo contrário!
O que sobra, enfim, desse Panorama? De fato, como dizia Herbert Marcuse, “A arte não pode mudar o mundo, mas pode contribuir para a mudança da consciência e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo”.
Sabe-se que um Panorama, quanto mais na natureza, é por sua característica instável: aos humanos a tarefa de adaptar-se e conjugar de uma maneira caridosa a própria vida com as figuras alheias. Esse é o ponto certo, a abrir os jogos futuros, seja da arte, seja das consciências individuais.
VEJA GALERIA DE IMAGENS ABAIXO
37° Panorama da Arte Brasileira – Sob as cinzas, brasa
De 23/7/2022 a 15/1/2023
MAM, São Paulo