POR AGNALDO FARIAS
As especulações sobre o corpo humano parecem não ter fim. Tampouco um começo. Aparentemente desde o nosso princípio – e vai saber quando isso se deu? – convivemos com nossa condição enigmática. Embora sejamos presenças palpáveis, tangíveis, carnais – é essa a impressão, ao menos, que temos dos outros –, seguimos sendo obscuros. Algumas ideias e conjecturas foram decisivas para o estatuto atual do corpo, o que não o impede de seguir sendo mais indecifrável do que nunca. Para não recuar muito, pensemos nos pequenos bonecos autômatos realizados no século XVIII, pensemos no Escritor, um autômato composto por seis mil peças, criado em 1770 pelo relojoeiro suíço Pierre Jaquet-Droz. Aparência, roupa e pose verossímeis, sentado a uma mesinha com caneta em punho, o Escritor não apenas escrevia como era programado – veja bem, programado – para escrever com letras diferentes. Sua similitude conosco ia além da forma física, mas as diferenças entre nós, pior ainda, aludiam à possibilidade de que dentro de nós habitam vários outros, patentes em caligrafias distintas. Na esteira da Revolução Industrial esses autômatos foram uma febre que perdurou ao longo do século XIX. Não por acaso, o século em que Mary Shelley escreveu, em 1818, Frankenstein: ou o Prometeu moderno; também foi o século em que o francês Auguste Villiers de L’Isle-Adam, em seu A Eva futura, 1886, menos gótico e mais futurista, cunhou o termo androide.
O encontro de obras recentes de Luiz Escañuela e Leandra Espírito Santo sugere essa rápida introdução, indicativa do intrincado nível de questões com as quais ambos estão lidando. Logo na primeira sala tem-se duas pinturas de Luiz, semelhantes nas dimensões e no tema, particularmente no protagonismo das mãos. Na tela da esquerda, Aquilo que aqui ficou (2023), as pontas dos dedos indicadores e médio das mãos de uma pessoa deitada sobre uma cama tocam-se suavemente, no limiar de um entrelaçamento. O vermelho é o tom predominante, um vermelho sanguíneo, luminoso. Os dorsos das mãos estão meticulosamente executados, sobretudo porque contrastam com o corpo da mulher deitada, representado difusamente; a extração fotográfica da pintura leva a pensar a imagem como estando fora de foco. Vê-se perfeitamente os desenhos dos nós dos dedos, o estuário de linhas riscadas em sentidos desencontrados, as semitransparências das unhas, as da mão esquerda mais compridas, as da direita como com meias-luas vermelhas, como se recém retiradas de uma vasilha com sangue.
Luiz Escañuela sabe da atração do público pelo hiperrealismo, sua avidez por ilusões. Também sabe que, feitas a partir de fotografias, essas pinturas, ao contrário do que apregoam, resultam do distanciamento do mundo físico; quanto mais minuciosamente avançam no fabrico de visíveis perfeitos, mais se afastam daquilo que chamamos de realidade. Para que não haja engano sobre isso, e também para a eventual surpresa do público visitante, em frente a essa tela, abrindo o conjunto apresentado na última sala da exposição, vem Experimento para uma cartografia das mãos (2023). Enquanto a primeira oferece a representação que quer se passar pelo que não é, verdade tornada visível, a segunda, tomando igualmente as mãos como tema, desnuda o processo, revela com crueza os andaimes da imagem, as idas e vindas, as veredas deixadas e suprimidas ao longo da sua confecção.
OHHHHHHH (2023) é o nome da instalação de Leandra Espirito Santo que ocupa integralmente a sala do meio. Em contraste ao colorido sensual da pintura de Luiz, Leandra opta pelo cinza do alumínio. Oito cabeças dispostas lado a lado, tornadas brilhantes pelo impacto das lâmpadas brancas, dessas que impregnam de azul o ambiente, razão pela qual também são chamadas de lâmpadas frias. Diferentemente das pinturas, essas cabeças são escultóricas, mais concretas e reais, até porque foram moldadas a partir do rosto da artista, um processo que exige a impassividade de um exame de tomografia. As cabeças estão divididas entre duas das quatro paredes da pequena sala cúbica. Já as lâmpadas, além de as separarem, percorrem todos os cantos do volume, garantindo uma atmosfera entre fabril e hospitalar. As cabeças são expressivas. Correspondem, portanto, a traços particulares da artista, não fossem expressões estereotipadas, dessas à disposição no banco de emojis, um dos mais recentes e eficazes produtos de um avassalador processo de homogeneização de expressões faciais, roupas, gestos e ideias prêt-à-porter. Cabe a pergunta: o que sobrou de nós? Essa é uma das questões centrais da artista. Leandra bate na mesma tecla na instalação apresentada na sala seguinte: 30 gsts + (2021-atual). Novamente suas mãos, dessa vez moldadas em bronze em gestos copiados do elenco de gestos ofertados, também, pelos emojis.
Uma das raízes da escultura remonta à magia, às máscaras mortuárias e ao esforço em garantir a presença daqueles que se foram e que nos eram importantes. Que importância há naquele que é igual aos outros, qual a relevância do indiferenciado? Voltando ao princípio da exposição, logo à entrada, grudado na parede, três pequenas esculturas mexem-se freneticamente. Inhoim-inhoim-inhoim (2023), é composta por três linguinhas de silicone, moldadas a partir da língua da artista. Parecem vivas, ou estariam mortas, estertorando com energia e que, enquanto houver energia, seguirão batendo contra a parede, indiferente a ela?
Agnaldo Farias é professor-doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo, crítico de arte e curador.