POR JOÃO VICTOR GUIMARÃES
Mostra Brasil Futuro: As Formas da Democracia, deixa o Museu de Arte do Rio após propor um roteiro invertido na sua itinerância e rejeitar uma definição sudestina do país
É verdade que há muito tempo as instituições que se intitulam responsáveis pela representação cultural das sociedades e culturas brasileiras têm esboçado uma considerável tentativa de conciliação entre os interesses e heranças coloniais/elitistas e aquilo que se apresenta como expressões incontornáveis das heranças culturais brasileiras, engendradas sobretudo pelas chamadas maiorias minorizadas. É bem verdade, contudo, que há uma disputa de narrativa em outros níveis que não os apresentados pelas pautas identitárias. Por exemplo, a disputa geopolítica acerca do soft power brasileiro, ou seja, nossa capacidade de influência através da comunicação e da cultura. E esse é um ponto muito relevante.
Não podemos negar que a maior parte do imaginário relacionado ao Brasil foi fomentado por personagens estrangeiras. Achille Mbembe, por exemplo, afirma no livro A Crítica da Razão Negra que “o pensamento europeu sempre tendeu a abordar a identidade não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo com o mesmo, do surgimento do ser e da sua manifestação em seu ser primeiro ou, ainda em seu próprio espelho”. Para Mbembe, trata-se de uma lógica de “autoficção, de autocontemplação e até mesmo de enclausuramento”. Um enclausuramento aparentemente incompatível com a “ampliação do horizonte espacial”, ou, como nos interessa pensar, com a amplitude da realidade aumentada inventada pelo olhar estrangeiro.
No livro Travessias 3 – Arte Contemporânea na Maré (2014) inúmeras vezes citado como referência de excelência, há uma proposição muito interessante em relação à noção que temos de estrangeiro. O catálogo traz um conjunto de exposições, debates e oficinas que ocorreram no Galpão Bela Maré, situado no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. A mostra Travessias, em síntese, “celebra mais um encontro entre a arte visual contemporânea e o espaço popular”. Como consta no texto do Observatório das Favelas presente no catálogo, “reunir artistas já consagrados internacionalmente e jovens residentes de favelas no inaugurar de sua caminhada artística, já seria um momento de especial qualidade e ousadia. Todavia, busca-se muito mais do que um encontro de linguagens, estilos e obras autorais. Queremos afirmar a favela como referência de experiências estéticas inauditas, justamente as que mobilizam a criação e a fruição sem as fronteiras da distinção territorial e social tornadas, infelizmente, comuns em nossa sociedade”.
Bom, é nítido que quase dez anos depois da publicação deste catálogo, já sabemos que dificilmente existe expressão cultural que supere sem absoluto “as fronteiras da distinção territorial e social tornadas, infelizmente, comuns em nossa sociedade”. Aliás, é um pouco sobre isso que refletiremos a seguir. Para tanto, vale destacar um ponto: “queremos afirmar a favela como referência de experiências estéticas inauditas”. Ou seja, ter no centro da criação, do verbo, do GPS, da atenção, tempo e dinheiro, a favela, não a Zona Sul. Essa projetada como cara do Brasil por décadas através da Rede Globo de Televisão que “destrói/distrai toda gente com sua novela”. E, claro, o cerne do problema não está no hábito de assistir novela. Não podemos cair no elitismo estúpido e medonho de banalizar e desdenhar de algo simplesmente porque é popular ou, como sutilmente denominam os elitistas do audiovisual, porque “é fácil”. Cito e utilizo como exemplo as novelas por serem, na verdade, fruto representativo do que a burguesia brasileira fez ao se apossar dos meios de produção. Inclusive e sobretudo, os meios de produção de cultura (capitalizada), que produzem um imaginário nacional. A novela é um problema desde que transformada pela burguesia em algo feito por estrangeiros (no próprio pais), para que a maior parte da nação se sinta estrangeira no seu próprio território. E podemos pensar em muitos outros produtos, mas aqui me interessa pensar nas novelas porque, sabemos, não raro passam a maior parte na Zona Sul carioca, como se tal cenário fosse comum em qualquer outro lugar desse país. Na perspectiva elaborada pelo projeto Travessias, em 2014, o centro de produção, o ponto de partida, era o Complexo da Maré, embora sem se pretender universal. Afinal de contas, e Achille Mbembe também nos ensina isso, qualquer noção de universalidade apenas tem comprovada a limitação de se deparar com o que não é semelhante.
Até o último dia 10 de março tivemos no Museu de Arte do Rio, a Mostra Brasil Futuro: As Formas da Democracia que é elaborada com o intuito de celebrar a retomada da democracia no Brasil em razão da vitória eleitoral do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e discutir a democracia como uma grande obra eternamente em progresso. Historiadora, antropóloga, escritora vencedora do Jabuti 2023 e uma das curadoras da mostra Brasil Futuro, Lilia Schwarcz já afirmou: “Eu penso que o destino dessa exposição, se ela quer falar das formas da Democracia, é ter uma vocação de fato plural. Eu acho que ninguém delega representação. Acho que isso não existe. Houve um momento em que a branquitude era quase neutra, era um lugar de conforto, quase opaca, que não se radicalizava. Hoje cada vez mais pessoas como eu que corretamente estão sendo racializadas. Se essa perspectiva for aparecendo na exposição, aí ela será o que pretende ser. E como a democracia, ela é incompleta. A gente vai aqui tomando a incompletude não como uma uma falha, mas como uma vocação e destino”. Segundo Lília, a exposição trata da democracia “não como projeto completo, mas justamente como um projeto por definição incompleto, um processo, porque direitos a gente nunca acaba de constituir”.
Brasil Futuro: As Formas da Democracia foi aberta ao público no dia 2 de janeiro de 2023 no Museu da República, em Brasília, depois passou pela Casa das Onze Janelas, em Belém, Pará, e pelo Centro Cultural Solar do Ferrão, em Salvador, Bahia. Em cada uma agregou-se à mostra artistas e curadores locais. Em Belém, Roberta Carvalho passou integrar a curadoria adjunta. Em Salvador, a curadoria adjunta ganhou novos integrantes: Daniel Rangel, Adriana Cravo, José Eduardo Santos e Vilma Santos, do Acervo da Laje e Lázaro Roberto e José Carlos Ferreira, do ZUMVÍ Arquivo Afro-fotográfico. Chegando ao Rio, com a curadoria adjunta de Amanda Bonan e Marcelo Campos e tendo mais de duzentos artistas participantes, a mostra segue numa busca pela equidade de gênero, raça, sexualidade, suportes, técnicas, perspectivas etc. Em Salvador, Brasil Futuro chegou a contar com mais de quinhentas obras. Parte considerável dessas obras, são do Acervo da Laje, montado a partir de obras de artistas do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Uma das iniciativas mais pungentes da arte contemporânea no Brasil e no mundo, O Acervo da Laje é um museu-casa-escola que manifesta todos os dias do ano, há 10 anos, a ideia de ter o subúrbio ferroviário no centro, no cerne, no âmago de tudo. Segundo José Eduardo, ele buscou “conciliar a arte popular. Tirá-la do lugar de arte popular e colocá-la como arte-arte. Queria nomeá-la com a autoria de seus artistas porque o Brasil fez um processo de apagamento muito grande. Eu queria reconciliar”.
Entender que há uma falta, uma incompletude, é um dos passos fundamentais para combater o enclausuramento resultante da ilusão da universalidade. Acreditar-se capaz de construir algo completo, perfeito sem o acolhimento e participação de diversas partes, é assumir a impossibilidade do diálogo, do trânsito imposto entre um contexto, local, grupo, território, e outro. Muito além de celebrar a importância do Norte e do Nordeste na retomada/salvaguarda da democracia no país, talvez a itinerância da mostra Brasil Futuro aponte justamente essa tendência ao diálogo. Mais: um diálogo interno.
Agora, o Rio de Janeiro tem mais uma chance de se reconciliar consigo mesmo, reconhecendo as forças importantes, estratégias necessárias, técnicas e artistas negligenciadas, capazes de contar parte das histórias da nação e salvaguardá-las. Assim como o Galpão Bela Maré percebeu a importância de ter a Maré no centro, Brasil Futuro sabe a relevância política, cultural e artística de enaltecer, não apenas mostrar, as narrativas, suporte, curadorias, artistas, técnicas, de diversas regiões do país para tratar de algo que interessa e afeta a nação inteira: a urgência e beleza da democracia.
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João Victor Guimarães é crítico de arte, pesquisador, curador, graduando em Artes pela UFBA e colabora com as Revistas Dasartes, Select e Bravo!