Um passeio pelas galerias de São Paulo

POR MATTEO BERGAMINI

São inúmeras as galerias de São Paulo que abriram – nas ultimas semanas – novas exposições, antes da temporada do Natal.

Na capital paulista, devido a sua grande variedade em oferta cultural, talvez seja mais claro obter uma ideia do que é hoje a arte brasileira ou, pelo visto, quais são as tendencias, quer dos estilos, quer do mercado, a desenvolver-se nessa latitude.

Mas como há muito a ver, para não ficar demais abismados, é preciso fazer uma espécie de cardápio, dividindo paladares e expectativas.

Começamos por duas exposições que poderiam definir-se afins as tendencias do sempre-verde “Tropicalismo” brasileiro.

Chico da Silva, na Gomide & Co, e Genaro de Carvalho na galeria Passado Composto – ambas no bairro dos Jardins – são duas mostras pra não se perder. Chico da Silva, nascido no Acre em 1910, é um dos pintores redescobertos nos últimos anos: autodidata, internado em um hospital psiquiátrico, participou também a Bienal de São Paulo em 1967, porém a sua pintura cheia de imagens mitológicas, de dragões até jacarés, misturada com a natureza do Nordeste, provavelmente naquela época não alcançava o sabor da vanguarda moderna que se desempenhava em todo Brasil. Hoje, por um outro olhar, podemos rever com lucidez a sua grandeza em narrar a vida e as suas sombras de um jeito extremamente, maravilhosamente, colorido.

Chico da Silva

Genaro Antônio Dantas de Carvalho, nascido na Bahia em 1926, foi estudante na Sociedade Brasileira de Belas Artes no Rio de Janeiro nos meados de 1940, e também aluno do Fernand Léger, na École Nationale de Beaux-Arts em Paris, além de ter uma amizade próxima com o grande Jorge Amado.

Incrível artista na área da tapeçaria, Genaro foi também o primeiro a criar um ateliê desse tipo no Brasil, em Salvador. Escrevia o critico Sérgio Millet a respeito da poética do Genaro: “Ao contrário da maioria dos pintores de nossa época, [ele] confessa apreciar o decorativismo e tê-lo até como objetivo de sua arte”.

Mais uma vez uma estrada bem complexa nos anos da arte conceitual e minimalista, que hoje chega a nós como uma explosão de beleza brasileira no seu sentido mais ajeitado.

Agora, porém, voltamos ao futuro e entramos na Galeria Casa Triangulo onde a artista carioca Lyz Parayzo abriu, no dia 17 de novembro, a sua Parayzo. Longe de ser uma exposição autobiográfica, esta mostra tem tudo a ver com a identidade trans feminina da artista. Ainda bem é que essas obras interajam com o espaço e de consequência com os espectadores de uma forma “universal”: Lyz cria um “campo de batalha” onde umas linhas de aço perfuram -em sentido metafórico- o ambiente, tornando-lo um alvo para transformar pensamentos e repensar a própria fisicidade. Lyz fala do seu Parayzo como de um ecossistema interativo, que vem também após 5 anos de exploração a respeito da escultura e da joalheria com o metal (disciplina preciosa para a miscigenação não-binaria do individuo), mas também depois de uma temporada passada na Academia de Belas Artes em Paris. E assim que, proporcionando politica e atualidade, os trabalhos de Lyz se escrevem na melhor forma da escultura de hoje, com referencias a grande Lygia Clark e aos seus “bichos”, como exemplo.

Lyz Parayzo, Mini Shark Mobile

Já Mauro Restiffe e Juan Araujo, na Galeria Luisa Strina -a primeira galeria de arte contemporânea no Brasil, aberta em 1974- com A lua busca la sombra completam um jogo requintado que fala sobre a identidades da pintura e da fotografia, como dos derramamentos de uma dentro a outra e vice-versa, utilizando por essa trajetória algumas das imagens mais emblemáticas das arquitecturas brasileiras. Como Juan tinha feito pinturas de algumas das casas projectadas por Oscar Niemeyer ou Álvaro Siza, queria figurar também o colorido da Casa King, de Paulo Mendes da Rocha, em São Paulo e pediu para Mauro Restiffe de fotografar a casa para ele. Eis que, ao longo de três anos, vem à tona essa exposição refinada que questiona com a nossa percepção, como em um jogo de espelhos numa casa de espelhos, “Até que não sobre mais nenhuma lembrança de onde veio aquela imagem final. A lógica especular da reprodução, onipresente na produção de Araujo e muito importante para Restiffe, ganha diferentes sentidos na medida em que os trabalhos são comparados entre si”, explica-se.

Continuando, há um novíssimo espaço e um novíssimo artista na área do Jardim Europa: Paulo Damasio abriu a sua Popfrito no sábado 19 de novembro na galeria Gemagemagema. Irônico, colorido, descontraído, o trabalho de Paulo se desenvolve em pinturas, desenhos, instalações que invadem todo o andar térreo de uma vila, a falar de um universo juvenil mas não por isso menos critico a olhar a sociedade, os vícios e as taras dos dias nos quais vivemos, como as nossas dependência aos remédios, ansiolíticos e tais, as drogas e as imagens da TV que constroem o nosso imaginário. Além do simpático, o Popfrito nos faz refletir bastante sobre as nossas problemáticas, mesmo com um sorriso estampado na cara.

Explodem de pintura a Mendes Wood, no magnifico galpão da Barra Funda, com a mostra do jovem artista italiano baseado em Nova York Giangiacomo Rossetti, a Galeria Millan com os novos trabalhos de Vivian Caccuri, e a Vermelho, com a impressionante intervenção ambiental de Dora Longo Bahia.

A pintura de Giangiacomo tem referências literárias, mas também aperta a historia da arte -especialmente a área surreal de Edward Hopper e dos seus retratos suspensos no tempo, como a de René Magritte, onde o mistério abraçava cada ângulo da tela. Por esses pintores sabemos bem que são as coisas mais comuns a ter a margem mais espessa de impenetrabilidade, e talvez seja por isso que o casal de amigos de Giangiacomo vindo a Manhattan e pintados pelo artista, lembrem-nos uns retratos antigos além do tempo e do cotidiano, suspendidos mesmo quando capturados em atos sentimentais o de vida comum. Uma pintura “lenta” aquela de Giangiacomo Rossetti, que precisa de atenção aos detalhes para ser apreciada.

Giangiacomo Rossetti

Giangiacomo RossettiVivian Caccuri, continuando a sua pesquisa sobre a relação entre humanos e mosquitos e suas influências no desenvolvimento das sociedades na América Latina, com Descomprimidos na Galeria Millan oferece ao publico umas obras concebidas no último biênio, entre pandemia e instabilidades sociais, o relatar o que significa viver no Brasil hoje em dia, manipulando materiais tais como telas de mosquiteiros, algodão, acrílicos, resinas, a criar universos sobrepostos de dor, amor, esperança, fraternidade, alegria ou oblívio.

Terminamos essa enxurrada de galerias paulistas com Perigo! de Dora Longo Bahia na Vermelho: “Meu trabalho é sobre violência: violência como sujeito ou como forma”, declara a artista nascida em SP em 1961. Nas paredes da Vermelho o “perigo” explode num trabalho de dimensão ambiental, onde as paredes todas são grandes telas onde a artista coloca pintura, desenhos, usando também umas cadeiras como esculturas, para render visíveis uns estrondos de guerra o de armadilhas: a sensação -entre fumaça, pedras e poeira criadas em estilo de figurinhas a cercar pinturas informais- é de entrar em um outro campo de luta.

Dora Longo Bahia, Galeria Vermelho

Aquele campo de batalha ou de jogo politico que hoje se consuma aqui, de novo. Essas mostras, bem diversas entre elas, tem o poder de traçar -pelo menos aos olhos de um estrangeiro – umas linhas estilisticas cujas estéticas bem relatam sobre o imaginário brasileiro mais atual.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. É
diretor da revista italiana Exibart, e também
colabora com a portuguesa Umbigo Magazine.

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