Alforrias justapostas | Rodrigo Reichardt

No Museu de Arte do Rio, duas exposições trazem, à sua própria maneira, representações de Anastácia, negra escravizada venerada como santa popular no Brasil

Nos dez anos desde a sua inauguração na Praça Mauá, o Museu do Arte do Rio (MAR) não esconde a sua preferência pela temática da negritude. São testemunhas disso as sete exposições em cartaz, bem como as intervenções artísticas que perpassam desde o pilotis até as pedras-portuguesas na fachada assinadas por Jaime Lauriano. Todas, sem exceção, trazem como referencial o cotidiano, a história ou mesmo a cosmogonia do indivíduo negro no Brasil.

Em duas destas exposições, Anastácia, a escravizada tradicionalmente retratada com uma máscara punitiva de ferro, é posta em evidência. Caracterizada pela primeira vez na litografia “Castigo de Escravos” (1839), do explorador francês Jacques Etienne Arago em sua passagem pelo Brasil, Anastácia recebe no Museu de Arte do Rio uma abordagem ao mesmo tempo ancestral e contemporânea.

Em Uma Poética do Recomeço, mostra individual de César Bahia, escultor em madeira soteropolitano, Anastácia recebe o título de Escrava-Mãe e é apresentada com a indumentária tradicional de candomblé.

“Essa escultura faz parte de um conjunto de um ‘Brasil interpretativo’, pois César Bahia, quando esculpe, também interpreta o Brasil a partir da oralidade, dos terreiros, do povo de santo, de colecionadores, vendedores e de nós, afro-suburbanos, que nos vemos em muitas de suas esculturas, tanto no aspecto devocional, litúrgico, quanto artístico e estético”, detalha José Eduardo Ferreira Santos, curador do Acervo da Laje, um espaço de memória artística no Subúrbio Ferroviário de Salvador responsável por revelar César.

César Bahia. Foto: Rodrigo Reichardt

De acordo com José Eduardo, na Bahia ainda vigora um imaginário ancestral e oral em relação à história de Anastácia, transmitido de forma intergeracional. Representações de resistência e acolhimento, de força e liderança, são costuradas por figuras femininas e localizadas, em sua maioria, no candomblé. Nada disso escapa do olhar do escultor, e muito menos do seu formão.

“César Bahia, sendo um artista ligado às tradições mais ancestrais e com os pés fincados no subúrbio de Salvador, não teve contato com as interpretações mais contemporâneas de Anastácia fora do seu ciclo. Em César o contemporâneo ainda é o ancestral, e é assim que ele dialoga com o que é de atual e emancipatório na história de Anastácia.”

Uma parceria entre o Instituto Moreira Salles e o Museu de Arte do Rio, a mostra “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros” também comporta uma representação própria da Escrava-Mãe. Assinado pelo artista Yhuri Cruz, “Monumento à voz de Anastácia” (2019) alforria a mulher dos instrumentos de tortura – os grilhões ao pescoço transmutaram-se em um colar de ouro –, e desamordaçada, esboça aos lábios um leve sorriso; mas principalmente, a liberta da iconografia colonial que perdura nas suas representações.

“Meu processo criativo é muito relacionado aos arquivos e à fabulação histórica, então me interessa muito ir atrás de figuras ou imagens históricas e poder de alguma forma fabular a mítica ao redor delas”, descreve Yhuri.

Yhuri Cruz. Foto: Rodrigo Reichardt

“O ‘Monumento’ é um trabalho que lida com a imagem da escrava Anastácia, feita por um pintor numa missão francesa no início do século XIX. Ele pinta a imagem de um homem amordaçado, a imagem atravessa o tempo, se feminiliza, vira mulher, e ela ganha o nome de Anastácia. O meu trabalho é revelar a boca dessa mulher e transformá-la num monumento.”

O retrato está pendurado na parede rubra, por onde reverbera três vezes a palavra “voz” em letras garrafais, mas não está restrito a ela.

“Eu também distribuo santinhos da Anastácia para as pessoas. Então vocês podem vir aqui e pegar quantos santinhos vocês quiserem, porque imprimimos muitos”, brinca.

Uma ode às bocas insubmissas, vedadas pela história, a Anastácia de Yhuri Cruz vai ao encontro da exposição sobre Carolina Maria de Jesus, autora do livro “Quarto de Despejo” (1960) que à época tomou a opinião pública de assalto por ser uma favelada e uma das personalidades mais comentadas nos círculos literários do Brasil.

A relação Yhuri com Anastácia não destoa; na ficha técnica de “Revenguê: uma exposição-cena”, mostra individual do artista no Museu de Arte do Rio, um agradecimento. “À boca que se abriu no meu destino”, escreve.

Rodrigo Reichardt é estudante de Jornalismo da PUC-Rio.

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