POR DOMI VALANSI
OS AFETOS DE VIDAS BORDADAS
A individual de Mariana Guimarães ocupa um monumento histórico brasileiro: o Paço Imperial (1743), residência dos Vice-Reis até a chegada da Corte de D. João VI (1808), quando se tornou sede dos governos do Reinado e do Império. Em um contraponto (não intencional) ao local majoritariamente masculino, a artista ocupa e ativa energias ancestrais femininas, através de falas sobre o tear (prática indígena anterior à chegada dos europeus às Américas), das dores e afetos maternos, e também o universo simbólico dos filhos, em narrativas e bordados.
Com curadoria de Izabela Pucu, mostra “Fio-ação” parte de um conceito que a artista desenvolveu no seu doutorado, ao visitar oito sertões do Brasil, de Minas Gerais ao Nordeste, onde mulheres artesãs (rendeiras, bordadeiras e fiandeiras) ainda fiam na roca e tecem no tear.
“Fio-ação é um movimento processual de tecer-se à medida que tecemos o coletivo. Um devir que se realiza no encontro com o outro, a partir do outro e reverbera em si mesmo e produz processos de singularização e autonomia nas relações intrapessoal e coletiva. É um devir-com uma micropolítica de transformação onde o movimento processual do tecer-se é sempre o movimento coletivo do tecermo-nos através de modos de invenção, agenciamentos coletivos, práticas de cuidado, continuidades, rupturas, partilha, afeto e sobretudo diálogo”, explica a artista.
Mariana Guimarães vai tecendo e materializando tradições orais, como a lenda da cobra que mama. A cobra coloca a cauda na boca da criança, para que a mesma não chore, simulando a amamentação, e vai à procura do seio da mãe, que dorme, para tomar seu leite. Essa ação repetida por muitas noites, deixava os bebês desnutridos. Junto com a filha (que se impressionou com a história) decide transmutar esse mito ao inverter as posições: agora é a mãe que mama e então se fortalece. A artista então reproduz tanto o folclore atualizado quanto o fazer das bordadeiras, quem mantém essa narrativa viva. E ainda dialoga, por que não, com as pinturas modernistas “Urutu”, de Tarsila do Amaral, “A Cobra Grande manda para sua filha a noz de Tucumã”, de Vicente do Rego Monteiro, e até a recente instalação “Entidades”, de Jaider Esbell.
Outra tradição, menos metafórica e mais cotidiana, são os “Potinhos” (2017). A ação, que cria um impressionante jardim interno, embalagens descartáveis são reaproveitadas como suporte para plantas, uma tradição brasileira de se criar mudinhas em latas e suportes que originalmente tinham outras funções.
O florescer também se espalha por todo o espaço expositivo em herbariums suspensos, tendo como contrapeso sacos de cacos e restos de azulejos, que a artista coletou em suas andanças pela cidade, e também em uma grande instalação em que dezenas de dedais afixados na parede se tornam mini vasos.
Em um exercício sistêmico, Mariana Guimarães honra a sua avó materna. Ela coleta pedras, as pinta (como a matriarca costumava fazer) com elementos como pequenos bordados e cria um círculo. No girar da roda da vida, o novo filho, Bento, chega e gera mais desenhos da irmã, destacados na série “Crônicas do puerpério”. A sensibilidade da menina destaca cenas do dia a dia da casa e da maternidade, que foram transformadas em obras como “Mamãe chorando sem motivo”, “Bento com muito cocô!!!”, “Papai arrumando a gaveta” e “Bento tomando bainho”.
Mas a vida nem sempre brota e um dos trabalhos foi feito a partir de um aborto seguido de 40 dias de sangramento. “Pour le rouge” reúne cadernos, um referente a cada semana de gestação, com intervenções, furos, fendas e vermelhos.
Duas obras em bordado podem ser a síntese de todo este universo, de mais de 300 obras produzidas ao longo de uma década pela artista. A primeira traz escrito em uma meia de bebê, “Mãe é mão”. A progenitora tanto acolhe quanto abre as portas para o mundo. É a artesã de um fazer manual diário na criação de seus pequenos seres, o espelho de gestos nascentes. Em outra, as palavras “histérica” e “histórica” em fios vermelhos se espelham, enfatizando algumas das condições da mãe, mais especificamente neste corpo de trabalho, ocupando e atravessando o Paço Imperial com o afeto, o sensível, o cotidiano, mas principalmente o feminino.
Domi Valansi é jornalista com foco em artes visuais e museus com pós-graduação em Fotografia com instrumento de pesquisa das ciências sociais
MARIANA GUIMARÃS: FIO-AÇÃO
ATÉ 23 DE AGOSTO 2023
PAÇO IMPERIAL
RIO DE JANEIRO
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