Panmela Castro abre Exposição solo em Lisboa

Juca da Cruz, da série Deriva Afetiva

No autorretrato “Pode o subalterno falar?”, a artista Panmela Castro aparece lendo um exemplar da obra seminal da autora indiana Gayatri Spivak. A cena se passa em seu jardim-ateliê de Lisboa, onde passou os últimos dois meses em residência artística, recebendo pessoas, a convite da Galeria Francisco Fino. A pintura também dá pistas sobre o que está em jogo quando a artista brasileira e negra cruza o Atlântico para se encontrar com um grupo diverso de pessoas negras, brancas, afro-asiáticas, asiáticas, pessoas cisgêneras, trans, não binárias, portugueses, africanos e migrantes. Em meio às arquiteturas do jardim, emerge a sugestão de um oceano, como propõe o curador Igor Simões ao dar o título à primeira exposição solo da artista na Europa: “Panmela Castro: do Jardim, um oceano”.

A exposição em Lisboa abre nesta quinta-feira, 27 de junho, e segue até o dia 14 de setembro na Galeria Francisco Fino, Rua Capitão Leitão, 76.

Pode o subalterno falar, da série Deriva Afetiva

Leia abaixo o texto curatorial:

Panmela Castro: do Jardim, um oceano.

Ao chegar à Galeria Francisco Fino, em Lisboa, é possível ver logo na entrada um autorretrato, da artista carioca Panmela Castro. Nele alguns dos principais elementos formais do seu trabalho estão presentes: o escorrido que resulta das pinceladas rápidas que buscam captar o instante (uma tradição da pintura moderna impressionista), a habilidade em captar o ar que circunda a pessoa retratada.  As plantas, as luminárias, a atmosfera de um jardim. Um espaço que por si só, carrega uma série de camadas históricas que vão também tocar na tradição artística europeia do século XVIII e sua disputa entre a natureza como algo controlável pela ação humana ou então como o lugar do insubmisso. Não estamos em um jardim qualquer. Os pincéis, a paleta de cores, tudo nos faz entender que esse jardim é o lugar de processo e criação da artista. Panmela, em seu autorretrato, surge em posição ao mesmo tempo relaxada e absorta. Seus olhos miram um livro. Não qualquer livro! Em suas mãos, está o que seria um exemplar da obra definidora de Gayatri Spivak, que traz no título a pergunta retórica que conduziu grande parte dos pensadores interessados em fundar uma outra forma de compreensão do mundo: “Pode o subalterno falar?”.

Surge outra pista que pode nos conduzir pela exposição. O jardim não está situado em um lugar neutro. A neutralidade não existe. E como tal, não é possível deixar de lado, o fato de que a série de pinturas, apresentadas na galeria, surgiu em um jardim lisboeta. Acima de tudo, em um jardim português. É em Portugal que a figura da artista empunha o livro de Spivak, e isso muda tudo: O que está em jogo quando a artista brasileira e negra Panmela Castro cruza o atlântico e resolve se encontrar com um conjunto de pessoas negras, brancas,  afro-asiáticas, asiáticas, pessoas cisgêneras, trans, não binárias, portugueses, africanos, migrantes,  e esse encontro se dá em Portugal? Pois é exatamente nesse momento que por entre as arquiteturas do jardim, se vê surgir um oceano.

*

Sabemos todos que nos rastros do projeto colonial português, uma série de existências foram retiradas dos seus lugares de origem e carregadas à força para territórios dominados pela coroa; Terras em África foram retiradas de seus antigos donos para fazer desses pedaços de mundo, um lugar de domínio, extração de riquezas e mão de obra a serviço do império português.  O Oceano foi a estrada por onde Portugal planejou submeter parte do mundo. Mas lembremos também que toda a tentativa de submissão tem de lidar com o insubmisso, com aquilo que não se dobra.

Aos poucos, o oceano Atlântico foi também virando um espaço que não mais se submetia apenas à ideia de fronteiras nacionais, estabelecidas por europeus que se queriam descobridores do que sempre esteve em seu lugar. Acima e abaixo da água, uma série de tradições foram criadas. E foi dessa maneira que um mundo de práticas, linguagens e culturas, foi se tramando por entre sussurros, trocas, estratégias de sobrevivência.  O Brasil, país de Panmela Castro, foi nesse fluxo deixando de ser a principal colônia portuguesa para se tornar o principal destino de homens e mulheres negras que fundaram o maior processo de deslocamento forçado já experienciado pela humanidade: a diáspora africana.

Ora, como só poderia acontecer, essas vidas desviadas não ocuparam apenas o território dominado. Elas também refutaram o dominador, ameaçando-lhe a supremacia pelo interior de suas antigas cidades, ruas, casarios, jardins.  Portugal e a cidade de Lisboa foram vendo surgir gentes que escapavam dos seus padrões europeus e, com elas, vozes e saberes que foram relegados ao lugar da subalternidade. No entanto, os subalternos que chegaram (e seguem chegando) falam. E não apenas falam. Eles criam e recriam linguagens artísticas, modos de existir, formas de redesenhar a vida.

*

Panmela Castro opera a transformação do jardim em oceano, pois lançando mão dos seus processos de deriva afetiva, reúne um coro de vozes e existências que são resultados do mundo inventado pela água salgada do Atlântico. As pessoas que agora ela encontra e com quem cria, ao chegar ao jardim, trazem a porção oceânica de suas histórias. Trazem consigo deslocamentos feitos pela história dos seus corpos e dos corpos daqueles que lhes antecederam. Suas vidas são a prova concreta de que subalternidade foi tentativa.

Seus encontros, que podem durar diferentes tempos, são a base para seus retratos. O que essas pinturas trazem são o oposto da ideia de imobilidade. De alguém que “posa” para outro que o representa. Se o retrato é canonicamente pensado como o instante em que alguém paralisa e se torna o objeto a ser captado pelo pintor, essa noção não se aplica à operação poética que faz de um jardim, o oceano.

As pinturas aqui expostas são o registro de uma performance feita para ativar encontros.  Cada pessoa aqui representada foi também agente criador da sua própria imagem.  Esses retratos não são a narrativa única e excludente de uma pintora sobre corpos que a ela se submetem. Tão pouco são as verdades absolutas de seus retratados. O que temos é o resultado de um ato de plena confiança no poder de se estar junto; de se estar com; de lançar uma proposição e com ela se abrir ao acaso. Panmela é uma performer. Uma performer que, é também, uma grande pintora. Uma artista de sofisticada habilidade e repertório artístico.

Em uma de nossas conversas, a artista me trouxe uma outra dimensão de seu processo, que de alguma maneira me escapava. Ela me contava que essas pessoas nas pinturas são também partes de uma rede. Uma rede ampla de afetos que começa nos encontros e se expande para as dimensões da vida cotidiana. Ela me narrava histórias vividas entre ela e algumas daquelas que aparecem nos retratos dessa exposição. Me contava também sobre como cada uma dessas vidas se conectava com outras que vinham aos seus encontros e como, para ela, esse é um processo que nos leva a um outro ato: a própria exposição e suas celebrações: Uma manhã, tarde ou noite de abertura, quando essas pessoas juntas, vendo a multidão de vozes que surgiram por entre conversas, pinceladas que escorrem e afetos, veem não somente os retratos, mas a enorme rede que expressam. E nesse momento, aqueles que eram os subalternos celebram e relembram que com a força do que fazemos juntos, é possível fazer de um jardim em Lisboa, o próprio Atlântico. De um jardim, um infinito oceano.

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