Marcela Florido | Ross + Kramer Gallery

Em 1984, na cidade de Nova Iorque, surgia um coletivo de artistas anônimas que tinha o objetivo de combater o sexismo e o machismo no mundo da arte. Naquele ano o MoMa recebia a exposição “International Survey of Painting and Sculpture”, formada por trabalhos de 169 autores. Destes, menos de 10% eram mulheres.

Anos mais tarde, o mesmo grupo, as “Guerrilla Girls”, usaram o slogan “Do Women Have To Be Naked To Get Into the Met.Museum?” (Será que as mulheres têm de estar nuas para entrar no Met.Museum?), juntamente a imagem do quadro de Jean-Auguste-Dominique Ingres, “Une odalisque, dite La grande odalisque” (1814) com uma interferência: uma cabeça de gorila rugindo de fúria no lugar da cabeça da odalisca. A montagem estava acompanhada de dados que chamariam a atenção do mundo: menos de 5% dos artistas na seção de Arte Moderna eram mulheres e mais 85% dos retratos nus eram femininos.

Em 2013, uma estudante brasileira, mestranda em pintura na “Yale School of Art”, em Londres, fazia a seguinte pergunta: “Quem pintou ou pinta a mulher brasileira pós 1950?”. “Estava pesquisando e encontrai pouquíssimas artistas contemporâneo focadas em retratar mulher brasileira e isso me pareceu triste. Esta experiência acabou virando tema da minha tese em Belas Artes”, explica a pintora Marcela Florido, em meio a suas telas gigantes e coloridas, com faces femininas marcantes.

“É emocionalmente e culturalmente difícil tentar definir quem é essa pessoa, essa mulher que eu pinto. Sigmund Freud sugeriu que os personagens dos sonhos e da ficção dos artistas estavam enraizados em seus próprios desejos e conflitos inconscientes e, portanto, eram reflexos de si mesmos. O que me fez pensar que essas figuras que eu pinto são, inevitavelmente, projeções da minha própria personalidade.”, conta. “Essa temática nasceu de uma frustração. Na época da minha pesquisa em Yale eu não me via representada nos quadros dos artistas contemporâneos brasileiros que eu amava, que são as minhas referências. Pensar em como a gente se vê, enquanto mulher, refletida na nossa sociedade me deixou meio obcecada em tentar desenhar esta figura, que para mim é tão difícil”, reflete a carioca, neta do arquiteto Marcelo, de quem herdou o nome e o talento para o desenho.

Passado alguns anos, Florido reconhece que atualmente no mundo das artes, existe um cenário bastante diferente dos tempos de sua pesquisa. Assim como mundialmente, artistas mulheres se tornaram uma das principais tendências, haja vista o tema da última Bienal da Veneza, retratar os diferentes tipos de mulheres brasileiras parece ser o foco de nomes fortes e jovens que despontam no cenário tupiniquim, como Renata Felinto, Gê Viana e Larissa de Souza. “Acho que, principalmente nos últimos três anos, o mercado nacional têm dado atenção para artistas que estão na busca de retratar personagens do nosso país de uma forma profunda. Um grande exemplo é o Maxwell Alexandre, que representa os meninos negros da Rocinha sem ‘exotificar’, mas dando humanidade, personalidade, para aquele personagem narrado no quadro. A Marcela Cantuária é outra artista que está se pintando, assim como eu faço, e que me chama a atenção. Ela faz muitos autorretratos e também parece ser meio obcecada nesta busca de se ver representada”, observa a jovem pintora, que já teve exposições realizadas nas galerias de arte Ibeu e Anita Schuats (Rio de Janeiro), Stems Gallery (Bélgica) e na Art Basel (Miami) e participou de residências artísticas no Quénia e Emirados Árabes, entre outros países.

Morando na terra das “Guerrilla Girls”, Nova Iorque, desde 2015, Marcela tem há oito anos seu ateliê em um galpão industrial no Brooklyn, que compartilha com outros quinze artistas. “Esta é uma prática que sempre prezei: o convívio e a troca de informações e críticas com amigos de ofício. Formamos uma comunidade que trabalha muito. Sábado, domingo, tarde da noite, sempre tem gente nos ateliês e são artistas que eu admiro. Esta prática proporciona trocas e experiências compartilhadas, como as studio visits, quando curadores ou colecionadores vêm conhecer o trabalho de algum dos artistas e acaba visitando os espaços de todos nós”, conta.

Para a americana Sara Rufino, editora, pesquisadora de artes, editora de veículos importantíssimos como Cultured, Art+Auction, The Brooklyn Rail, e contribuidora para Modern Pintors, Cults, Bomb.com, Artnet News, Galerie, The Art Newspaper, Artsy, e Observer.com, as pinturas de Marcela são o tipo raro de trabalho que se envolve incisivamente com várias vertentes da história da arte – desde o início do modernismo brasileiro e suas complexidades concomitantes em torno da representação e dos componentes biofísicos da identidade até a arte pop americana e ainda mais recente, o conceitualismo. “Com suas raízes brotando claramente de Tarsila, Florido leva literalmente o ditado de Jasper Johns ‘Pegue um objeto. Faça algo com ele. Faça outra coisa com ele’. Cultivando essas duas sementes dentro de seu próprio contexto contemporâneo como pintora brasileira que vive no exterior – como tantos artistas brasileiros fizeram no passado. O trabalho de Florido se move fluidamente através do tempo e do lugar, evitando os descritores que muitas vezes trancam e limitam a representação e a beleza”, explica a jornalista, fã de cultura brasileira contemporânea.

Em março Marcela Florido, que trabalha majoritariamente com pintura a óleo sobre tela em grande formato, lançará na importante galeria “Ross + Kramer Gallery” (no bairro novaiorquino de Chelsea) sua próxima exposição, apresentando um novo grupo de pinturas em grande formato, mas desta vez em óleo sobre seda. “Essa é uma nova técnica que desenvolvi no meu estúdio em 2022. As novas pinturas a seda incorporam imagens simbólicas recorrentes no meu trabalho nos últimos anos, mas trazem uma transparência e uma nova relação com a materialidade da tinta”, conta a artista que hoje em dia está focada simplesmente no prazer de pintar. “Acho que desde 2018 consegui voltar a ter o prazer só pelo fazer. Acho que pude relaxar e deixar um pouco de lado as questões, o contexto social e político no meu trabalho. Acredito que por ter investido tanto nestas conversas, por tanto tempo, principalmente quando estava na academia, elas se tornaram parte da minha produção, mas agora estou conseguindo deixar o prazer do fazer artístico voltar a ser o fator principal. Assim como fazia quando era criança, quando me recolhia apenas para pintar. Estou deixando este prazer cumprir o papel principal na minha vida”, completa a pintora, afinal “hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás”.

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