Uli Sigg | Hong Kong

UMA COLEÇÃO ÚNICA: A CHINA CONTEMPORÂNEA, POR ULI SIGG

POR MATTEO BERGAMINI

 

A semana da cultura em Hong Kong foi guiada pela décima-primeira edição de Art Basel, voltada aos números pre-pandémicos em fato de visitantes e participação de galerias. Mas, além da feira, a cidade teve a oportunidade para mostrar ao mundo, finalmente, a sua renovada potência cultural partindo – a exemplo, por um museu especial como o M+…

Aberto em 2021 no meio da pandemia – Hong Kong naquela época estava completamente fechada aos turistas e aos estrangeiros, o Museu M+ foi idealmente encomendado há mais de dez anos pelo colecionador, diplomata e empresário suíço Uli Sigg, cujo acervo de arte contemporânea chinesa – composto por obras realizadas entre 1972 e 2012, é o maior do mundo contado com mais de 1500 trabalhos realizados por 350 artistas, recolhidas nos anos dentro dos quais Sigg prestou serviço como embaixador na República Popular da China, na Coreia do Norte e em Mongolia.

Installation view of M+ Sigg collection: Another Story, 2023. Photo: Dan leug, M+, Hong Kong

Porém, o Senhor Sigg resolveu oficializar o seu tesouro somente em 2012, doando uma parte dele ao Museu que outrora – conforme os planos, deveria ter aberto em 2019. Adiada de dois anos, a espera já obteve a sua vingança contra a covid: de fato, em 2023 foram dois milhões os visitantes da área de West Kowloon (WestK), o distrito cultural maior da Ásia que hospeda também o M+, um vero e próprio recorde que pôs o museu entre os dez mais visitados do mundo.

A área de WestK foi criada em 2008 pela região administrativa especial de Hong Kong e conta com 40 hectares de terra recuperada – 23 dos quais de espaço público aberto; o orçamento inicial de 21,6 bilhões de Hong Kong dólares, ou seja quase 14 bilhões de reais, conta-nos à perfeição como aqui vão as coisas. Projetado pelo studio suíço Herzog & De Meuron, o M+ abraça três andares cujas salas não têm um tropeço: quer a exposição dedicada à Madame Song, lendária modelo, colecionadora e amiga do estilista francês Pierre Cardin, tornada-se uma ícone na China da década de ’80, quer a mostra “The Hong Kong Jockey Club Series: Noir & Blanc—A Story of Photography” deixam à vista toda a maravilha desenvolvida por aqui. Mas enfim, após essa introdução, entramos em “Sigg Collection: Another Story”.

Installation view of M+ Sigg collection: Another Story, 2023. Photo: Lok Cheng, M+, Hong Kong

Já a primeira sala é de tirar o fôlego, aparecendo simultaneamente as pinturas de Zhang Xiaogang, Fang Lijun, Zhang Huan.

bloodline big family, 1995.

Zhang Xiaogang é – com Yue Minjun, um dois mais conhecidos artistas asiáticos fora do país: a celebérrima pintura Bloodline – Big Family n.17 (1998) se tornou uma das pedras milhares da arte chinesa da década de ’90; os rostos inexpressivos dos componentes da família têm inspiração pelos mesmos retratos familiares do artista, tirados antes da reforma económica que houve aqui nos anos ’80 e cujos efeitos determinaram o vulto da desmedida economia do “dragão” que todo mundo conheceu.

Misterioso o Autorretrato 1995.2 (1995) do artista Fang Lijun, aparecendo ele mesmo dividido em quatro personagens iguais mas claramente desentendidas, numa paisagem abstracta.

“FAMILY TREE”(2001), ZHANG HUAN

De Zhang Huan são expostas as fotografias que compõem a série Family Tree: em 2001 o artista pediu a três calígrafos que escrevessem em seu rosto, em ideogramas, mitos e adivinhações da tradição popular chinesa, desde o amanhecer até o anoitecer. Ao longo do dia, a inscrição destas histórias transformou o rosto do artista a ponto de torná-lo irreconhecível: ao cair da noite, a face de Zhang, completamente negro, simbolizava a impossibilidade de definir uma identidade precisa.

Ao lado, escondida por uma parede a deixar intacta a sua identidade e potencia visual, há a instalação Stratégie en Chambre (1999), realizada por Wang Du: aqui pilhas e pilhas de jornais criam uma cerca sobrevoada de dezenas de brinquedos de aviões e satélites; acima desse muro de papéis as figuras dos ex Presidentes da Rússia e dos Estados Unidos, Boris Yeltsin e Bill Clinton, ficam bem juntinhas a simbolizar as relações e os intrigas políticas acontecidas durante a época da Guerra do Kosovo mas, sobretudo, olhando as diferentes narrativas oferecidas pelas mídias sobre o conflito – conforme ao lado do mundo no qual se escreve, o artista reflete sobre a falta de espirito crítico dos leitores, inconscientemente submetidos as informações oficiais e parciais publicadas pelos grandes grupos editoriais globais.

Mais um retrato do recém-passado chinês é Great Criticis: Chanel, de Wang Guangyi: quatro pessoas segurando o livro vermelho do Mao Zedong estão na frente de quem – conforme à iconografia da Revolução Cultural – deveria ser o próprio líder enquanto no seu lugar aparece um frasco de Chanel n°5, o mais popular entre os perfumes do mundo. Eis a revelação, em claro, da desmedida mudança ocorrida com os símbolos reverenciados no país comunista, cada vez mais perto à atmosfera evanescente do mundo ocidental e capitalista.

Fora do eixo o trabalho do artista Liu Ding, refletindo com a imagem que a China remete de si mesma no exterior e que não vai longe da realidade: Products (2005) oferece-nos una visão precisa do que acontece no bairro de Dafen, ao lado da cidade de Shenzhen, o lugar do país onde se fabrica a maior quantidade de pinturas a óleo reproduzindo grandes clássicos ocidentais ou paisagens de céus azuis e cisnes brancos, tipicamente orientais. Para realizar esta mega instalação compreendendo 40 itens o artista contratou treze diferentes pintores, atuando assim uma reflexão sobre os conceitos de “arte de massa” e de autorialidade.

Yue Minjun se auto-representa nas formas de homens cujos sorrisos são escancarados e além da normalidade; não são agradáveis, mas nem esforçados: imitam cruelmente a coletividade sem qualidades que vive tanto no mundo imaginário quanto no real, pronta para aceitar qualquer tipo de besteiras aproveitando da própria ignorância, mesmo. Dessa maneira, o famoso quadro A Liberdade guiando o povo do pintor francês Eugène Delacroix – realizado em homenagem à Revolução de julho de 1830, quando houve a queda do Rei Carlos X, transforma-se em um ponto de vista entre a farsa e a denuncia: um grupo de treze homens, de cara tola, são mortos ou lutam inconscientemente por aquele ideal que esta acabando com a vida deles. A liberdade mora bem longe daqui, mas o povo esta preparado a combater, sem noção, em nome da propaganda.

Mais uma sala e vem a impressionante Old people’s home (2007), realiza por Sun Yuan e Peng Yu: dentro de uma área cercada por elementos semelhantes a bancos brancos, a identificar quase o espaço de uma arena, há uma serie hiper-realista de idosos em cadeira de roda alinhando-se, aproximam-se, as vezes batem levemente um contra o outro, cada um sentado imóvel. Alguns deles olham ao vazio enquanto outros estão de olhos fechados, quem segurando uma lata de cerveja quem uma carteira; os relógios, os ternos vestindo-los e os demais elementos a sinalizar a autoridade parecem afirmar que situamo-nos na frente de uma casa de aposentadoria para políticos ou ex homens de poder, antigos donos de um mundo que continua existindo somente no vácuo que alberga na percepção de quem combate com os efeitos da velhice e da demência.

Prototipo n°1, obra de Shi Jinsong, materializa um escritório de torturas: tem algo de parecido com a instrumentação de suplícios dos mártires, mas também com o universo das perversões sexuais mais violentas. Composta por moveis integrados com algemas, espinhos a enfiarem na carne viva, lâminas afiadas substituindo o assento da cadeira, hoje em dia é impossível olhar a essa instalação sem perceber um arrepio que vem de longe e corre diretamente aos conflitos atuais.

AI Weiwei, Ton of tea.

Concluímos com o mais famoso dos famosos, ou seja o artista criado próprio pelo poder de Uli Sigg, de acordo com as teorias de muitos críticos: Ai Weiwei. Com a fantástica obra Ton of tea,

Ai Weiwei nos remete à metáfora do comercio internacional utilizando uma escultura absolutamente minimalista, imitando as formas dos americanos Robert Morris, Carl Andre e especialmente Richard Serra, cujos trabalhos o artista conheceu em Nova Iorque na década de 1980. A mistura de chá Pur Er, a mais consumida por cidadãos chineses em todo o país, é mostrada no tradicional bloco que permite a conservação e o transporte das folhas compridas, tornando-o  quase um ready made cheio de implicações conectadas aos temas dos negócios, das comunidades de imigrantes e, também, da história da arte.

Enfim, deslumbrante é o digno adjetivo para definir o acervo de Uli Sigg exposto no M+: raras são as mostras nas quais todas as salas equivalem-se em termos de qualidade, precisão do projeto expográfico, potencia dos trabalhos; aqui, do começo ao fim – seguindo a ordem curatorial ou achando o próprio percurso, entrelaçando os temas e os trabalhos, não existem obras “menores”, nem uma fraqueza.

Agora, após mais de dez anos da instituição da coleção Sigg e com todas as atuais flexões económicas e sócio-políticas do mundo, seria preciso adivinhar quem desenvolverá o papel do dragão na arte chinesa do amanhã. Aceitam-se apostas.

Matteo Bergamini é jornalista, crítico e escritor especializado em Arte Contemporânea. Colabora com a revista italiana ArtsLife e com a portuguesa Umbigo Magazine

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