Tarsila do Amaral Pintando o Brasil moderno
POR MICHELE PETRY
“Paris… eu também me lembro daquele primeiro encontro com a cidade fabulosa – o coração do mundo. Lembro-me da satisfação de desembarcar uma primeira vez na Gare du Nord e poder dizer ‘Estou em Paris!’. Lembro-me do deslumbramento naquele ambiente de cultura, de velha civilização e de alegria. Lembro-me, ao fim de alguns invernos prolongados, do tédio que dava aquele céu sempre cinzento que me obrigava a fugir para o sol da Espanha. Lembro-me com saudades de outras terras conhecidas e da vontade de percorrer outras desconhecidas. Lembro-me agora do meu studio, ao lado das antigas fortificações do Boulevard Berthier, tão embelezado pelo azul da distância…” (Tarsila do Amaral, 1940 apud Brandini, 2008, p. 422).
Tarsila do Amaral residiu em Paris na Rue du Louvre, n. 2, em 1920; na Villa Méquillet, n. 5 (Neuilly-sur-Seine), em 1922; na Rue Hégésippe Moreau, n. 9, entre 1923 e 1925; e no Boulevard Berthier, n. 19, em 1926. “O ano de 1926 foi também de grande importância na minha carreira”, afirmou a artista (Tarsila do Amaral, 1952, apud Brandini, 2008, p. 735). Aquele foi o ano da sua primeira exposição individual na Galeria Percier, onde também expôs em 1928. Depois disso, em 2005 ocorreu a exposição Tarsila do Amaral: Peintre Brésilienne à Paris – 1923-1929, na Maison de L’Amérique Latine. Agora, entre 2024 e 2025, o GrandPalaisRmn realiza a histórica exposição Tarsila do Amaral. Peindre le Brésil moderne no Museu de Luxemburgo, que segue posteriormente para a Espanha, no Museu Guggenheim Bilbao. Trata-se de uma homenagem e reconhecimento à artista, pelos tempos que ela passou em Paris e pela grandiosidade que alcançou a sua obra.
A exposição, inaugurada no dia 07 de outubro de 2024 e aberta ao público dois dias depois, reúne pinturas e desenhos da artista, assim como fotografias e documentos relacionados a sua trajetória a partir do seu ateliê em São Paulo em direção à sua primeira estadia em Paris, com o desenvolvimento do cubismo e das suas características singulares, às suas primeiras exposições individuais em Paris (1926) e no Rio de Janeiro (1929), às relações e os projetos que desenvolveu com Oswald de Andrade e Blaise Cendrars, às viagens ao Rio de Janeiro e Minas Gerais (1924), ao Movimento Antropofágico (1928), à ênfase nos trabalhadores e nas cores da sua infância presentes na sua produção de diversos períodos.
Abaixo vista das obras Meu Ateliê (Rua Vitória) (1918), Vista do hotel de Paris (1920), Estudo (Nu sentado) (1921), no primeiro plano, e, ao fundo, do detalhe da obra Terra (1943) e Lenhador em repouso (déc. 1940).
Vista das pinturas Carnaval em Madureira (1924), Vendedor de Frutas (1925), O Mamoeiro (1925), à direita, A Cuca (1924) e Manacá (1927), ao centro, Religião Brasileira I (1927) e Batizado de Macunaíma (1956), à esquerda, O Touro (1928) e Urutu (1928), ao fundo
São apresentadas obras com cenas de Paris e das cidades brasileiras Rio de Janeiro, São Paulo, Congonhas, Capela Nova, Tiradentes e Ouro Preto, retratos e autorretratos, como Figura em Azul, caderno de croquis, estudos de desenhos e de ilustrações para livros, partitura e cartazes, catálogos das suas exposições, álbum de viagens, correspondências de amigos artistas. Destacam-se Caipirinha, A Feira I, Batizado de Macunaíma, desenhos de Abaporu, Operários, Paisagem com flores rosas e roxas.
Vista das obras Academia nº 4 (1922), Figura em Azul (1923) e Caipirinha (1923)
A pintura Cartão-postal (1929), obra de destaque na exposição e capa do seu catálogo, é de grandes dimensões e apresenta vegetação e cor verde predominante, grande árvore à frente com os bichos tarsilescos no seu tronco, lembrando a gravura elaborada a partir do seu desenho Macaco na Floresta (1971), a copa com folhas em formato de coração, evocando A Cuca (1924), as casinhas e os morros de Palmeiras (1925), o Pão de Açúcar ao centro, como em Rio de Janeiro (1923). Em crônica diz a artista: “A Torre Eiffel é um símbolo; está para Paris assim como o Pão de Açúcar está para o Rio de Janeiro ou a Ponte dos Suspiros para Veneza. Cada cidade se sintetiza num monumento, numa obra de arte ou numa particularidade da natureza” (Amaral, 1936, apud Brandini, 2008, p. 84). Nessa obra, Tarsila fixou a cidade na qual viveu entre 1935 e 1938, segunda capital do Brasil, apresentando recorte do seu país ao exterior pelo olhar da artista que foi, se constituindo no trânsito entre a América do Sul e a Europa, com uma produção característica. Cartão-postal, pintura com o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro ao centro e motivos tarsilianos, exprime a reapresentação da consagrada artista brasileira na França. No espaço expositivo, a obra está situada ao lado de O Touro, Urutu e O Sapo, enfatizadas pelas cores nacionais.
Vista das obras O Touro (1928), Urutu (1928), O Sapo (1928) e Cartão-postal (1929)
Esse conjunto emblemático de imagens e documentos está organizado em torno de seis eixos temáticos: Uma caipirinha vestida por Poiret [Une “caipirinha habillée par Poiret”]; A invenção da paisagem brasileira [Découverte et Invention du Paysage Brésilien]; De A Negra à Macunaíma: ícones primitivos e modernos [De A Negra à Macunaïma : ícones primitives et modernes]; Antropofagia; Trabalhadores e trabalhadoras [Travailleurs et travailleuses]; e Novas paisagens [Nouveaux paysages]. A expografia busca conectar diferentes momentos da produção de Tarsila: os seus primeiros anos, a fase pré-antropofágica, Pau Brasil, antropofágica, e social, até o seu período final. Faz isso estabelecendo o diálogo entre as obras e as salas. Aos olhos do público, obras aclamadas e ampla gama de materiais permitem visualizar os principais aspectos da sua trajetória, história e identidade constituídas nos seus deslocamentos.
Vista da sala “Uma caipirinha vestida de Poiret”, ao fundo, e, à frente, da sala “Antropofagia”
Vista da sala “A invenção da paisagem brasileira”, à frente, e, ao fundo, da sala “De A Negra à Macunaíma”
Vista da sala “De A Negra à Macunaíma”, à frente, e da sala “Antropofagia”, ao fundo
Vista da sala “Trabalhadores e Trabalhadoras”
Vista da sala “Novas Paisagens”
Para a curadora Cecilia Braschi, no Catálogo da Exposição (2024): “Apresentar hoje a obra de Tarsila do Amaral em Paris – onde ocorreram as primeiras exposições da sua vida, mas onde apenas uma única exposição exclusiva póstuma foi realizada desde então – responde a várias questões”. Para ela, a exposição tem o objetivo de apresentar ao público europeu a artista brasileira que viveu tantos períodos em Paris, reconhecendo a sua importância e valorizando o trabalho da crítica de arte no Brasil que tem Tarsila do Amaral em lugar de destaque na história da arte. Desse ponto de vista, a exposição em Paris é significativa e marcante, pois relembra a cidade na qual a artista viveu e realizou a primeira exposição individual de toda a sua carreira. Também foi onde ela viveu novas experiências culturais, encontrou a arte moderna em efervescência e desenvolveu a sua própria personalidade artística: “Paris, a verdadeira Paris, que me deixou impressões indeléveis, foi a Paris de 1923”; “Paris de 1923! As recordações fervilham, amontoam-se, atropelam-se…” (Tarsila do Amaral, 1952, apud Brandini, 2008, p. 731-733).
Michele Petry é historiadora e possui pós-doutorado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), na Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica. Integra a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).