REVOADA: O Pavilhão Secreto

Edinson Quiñones, Célia Tupinambá, Aimema Uai, Estefania García. Foto: Carolina Leal

POR GABRIEL MORENO E JOANA AMORA

Quando chegamos no porto do Lido, naquela Segunda Feira 15.4, claramente estávamos longe do glamour carnavalesco veneziano. Barcos de todos os tamanhos se revezavam no transporte de caixas de madeira com obras de arte, cadeiras imperiais, arranjos de flores e no nosso caso: sacos e mais sacos de comida. No vaporetto que passava, a barca pública veneziana, a identidade visual da Bienal já estampava a lateral da embarcação,”Stranieri Ovunque”, “Foreigners Everywhere”, ou “Estrangeiros em Todo Lugar” se lia em variadas línguas.

Depois de correr para pegar o vaporetto, e tentar desvendar os mistérios do transporte com a ajuda de uma italiana de nossa equipe. Depois de atravessar a Veneza delirante de sua multidão de turistas perdidos, se opondo ao fluxo constante de trabalhadores estressados. Depois de ver uma nesga de canto do Giardini da Bienal, com as cores pulsantes da pintura dos Makhu na fachada do pavilhão central. Pousamos na Ilha secreta.

Foto: Joana Tostes

Revoada é um movimento que surge de um sonho coletivo, que vai se tecendo em muitas noites. Uma plataforma de união, intervenção, pesquisa, vivência e troca entre artistas, pensadores e produtores do sul global. Uma missão. Convidados a nos unir ao chamado do Grande Pássaro junto a liderança e artista do pavilhão brasileiro Célia Tupinambá, chegamos em Veneza, atendendo o chamado dos ancestrais, e prontos para alimentar seus  espíritos. Iniciativa da organização globalista de estratégias decoloniais Plan D e da produtora brasileira Guatá – Caminhos da Arte. 

O chamado ecoou tão alto que tudo até aquele momento parecia conspirar para a nossa presença. Ainda que sem convites, sem ingressos, esperando os nossos artistas convidados passarem por uma sabatina de voos cancelados, conexões sem fim, inspeções racistas em aeroportos e aquele protocolo de acolhimento padrão a corpos racializados, o que infelizmente não é exclusivo do território europeu.

Jornadas que partiram desde: Vale do Cauca, Bogotá, La Chorrera, Rio de Janeiro, Salvador, Berlim, Roma e Marselha, se encontraram na ilha secreta para nutrir seus corpos, mentes e alimentar os espíritos ancestrais com fogo, canto, medicina e comida. Vivemos lá movidos por uma missão intercultural, que vai de embate à uma visão colonizada daquilo que foi roubado dos povos originários. Das suas práticas cotidianas, passando pelas simplicidades da forma de comer, sentir o chão com os pés desnudos, à complexidade das medicinas naturais e do tempo da vida ritualizado.

 Uma das cicatrizes evidentes da violência colonial é simbolizada pelos artefatos sagrados: presos em museus europeus como resultado da colonização da chamada América Latina. Cada um desses “objetos” são deuses, abuelos, mayores, ancestrais, sequestrados, e expostos como troféus/ tesouros frutos de expedições de saqueio. Como no caso brasileiro acontece com os Mantos Tupinambás, trancados em Museus Europeus, e tantos outros deuses e símbolos sagrados. 

Ao longo de 1 semana de residência, trocamos muitos afetos, crenças e rituais, em um exercício de constante sincretismo para nos permitir voar juntos em um exercício dialético. Dividir a rotina elementar de dormir, comer e preparar os rituais gera uma conexão muito intensa  e dilatada no tempo.

O pavilhão secreto contou com, além dos rituais, uma exposição afetiva das obras e elementos trazidos pelo coletivo artístico de práticas decoloniais: Minga, da Colômbia. Estefanía García, Edinson Quiñones e Aimema Uai transformaram uma casa com um interior naval, em uma galeria. A cama que dormiam dava espaço a obras, as cortinas, os chumbes pendurados, os armários a apoio de pinturas. E assim, recebíamos nossos convidados, dentro de casa para compartilhar as cosmovisões, vivências e sonhos. Agentes da Bienal de lugares como: Nigéria, Alemanha, Itália, Brasil, Colômbia e Argentina passaram por lá.

Ritual durante a abertura do Pavilhão do Brasil dentro da instalação criada por Célia Tupinambá. Edinson Quiñones e Aimema Uai no fundo. Foto: Joana Amora

Na noite do 19/4, no Brasil se celebra o dia dos povos originários, e em Veneza convocamos uma fogueira aberta a quem ouvisse o chamado. Chegaram à Ilha comitivas diplomáticas, artistas, curadores, curiosos, jovens entusiasmados. Barracas que carregavam os símbolos da Ley de Origens dos 3 povos representados pelos nossos artistas residentes preenchiam o ambiente: Quimbaya, Naza e Muina-Muruy (Ouro, Arco Iris, e Coca). Entre essas carpas, palavras foram trocadas, conduzidas pelas pequenas chamas de um fogo controlado mas que seguiu aceso até o raiar do dia. 

Lá, as parentes: Célia e Jéssica Tupinambá, Aycoobo, engrandeceram a troca com palavras e cantos de suas trajetórias, seus territórios e estratégias de tecer a Arte como ferramenta para Adiar o Fim do Mundo. Ou, da Arte como uma semeadura de sanação, cura, bálsamos para as chagas tão profundas deixadas pela violência colonial. Ao fim, estávamos lá para apoiar Célia em sua missão de retorno dos mantos tupinambás, e para lhe dar suporte energético-espiritual em um ambiente hostil, ainda que aparentemente “decolonial”.

Estefanía García Pineda em ritual para o ouro sagrado dentro do Pavilhão da Espanha. Foto: Joana Amora

Longe dos coquetéis, das galerias, da plasticidade inócua que Paula Alzugaray destacou com precisão em sua crítica à Bienal do Capitalismo 4.0, estávamos mais perto dos residentes venezianos, embarcadores seculares, do que dos turistas e suas roupas da moda. Acolhido pelo coletivo Bio Design Foundation,  o Pavilhão Secreto surgiu a partir da Revoada, como um lugar de acolhimento, de troca, de ninho. Isso permitiu que muitas pessoas chegassem até nossa casa temporária e respirassem um ar renovado por uma mata em reconstrução, e  por um ambiente em desconstrução. E deu forças para intervimos nos Giardini da Bienal.

Intervenções divididas em 4 atos Mandatórios, atendendo aos desejos dos ancestrais revelados na forma de sonhos e símbolos, portando suas medicinas, ferramentas e proteções, Uai, García e Quiñones utilizando seus corpos performaram rituais artísticos. Ou seria melhor dizer uma Minga, transfigurada em Arte. Minga é uma palavra utilizada para trabalho coletivo, em prol de um futuro comum, pode ser uma assembleia, uma construção ou um ritual. A Minga aqui em Veneza é investida como plantio de cura, ora exercendo rituais de Harmonização, ora rituais de Justiça Própria. Os artistas interviram, com o aval e convite dos parentes, em obras expostas nos pavilhões do Brasil, Estados Unidos, Espanha e Geral. Mais isso é uma história para outro capítulo.

Artistas na abertura do pavilhão do Brasil. Foto: Joana Amora

Uma etapa importante do nosso processo foi a conversa: “Reflexiones en el Museo Decolonial – retorno y restitución de obras a su territorios de origen”. Evento paralelo que ocupou os Jardins da Bienal no dia 18/4, construindo uma troca de conversa horizontal entre os artistas: Célia Tupinambá, Jéssica Tupinambá, Estefania García, Edinson Quiñones, Aimema Uai e representações institucionais do Brasil e Colômbia nas figuras de Sandra Benites (Diretora de Artes Visuais da FUNARTE) e Alejandra Sarria Molano (Coordinadora de Grupo de Artes plásticas y visuales do Ministério de Cultura de Colombia) e cambonagem (ou mediação) por mim Gabriel Moreno.

Conversa: “Reflexiones en el Museo Decolonial – retorno y restitución de obras a su territorios de origen”. Obra de Edinson Quiñones realizada com coca sendo apresentada e barracas ao fundo. Gabriel Moreno, Célia Tupinambá, Aimema Uai, Edinson Quiñones, Estefanía García, Jéssica Tupinambá e Sandra Benites. Foto: Joana Amora

Contrastando com um espaço onde os debates e discussões públicas estavam ausentes da programação, promovemos uma conversa sentados em semicírculo no jardim, lado a lado, com as barracas ao fundo ocupando um coreto, com tempos de fala livre e compartindo as medicinas, os presentes se revezaram na troca de experiências e expressões dos seus sonhos e orientações espirituais sobre os objetos sagrados. Tivemos a oportunidade de colocar para as institucionalidades dos dois países os sonhos de ver um Museu decolonial nos territórios, pautados pelos territórios, mais próximos às Casas de Pensamento, presentes em várias nações indígenas, do que aos cofres de banco em torres panópticas. Sorte grande escutar as experiências de Sandra e Alejandra, duas curadoras ocupando cargos parecidos na orientação das políticas de Arte de Brasil e Colômbia, com abertura para o diálogo e comprometidas com a agenda das práticas decoloniais. Em breve a conversa completa estará disponível na internet.

Encerrada a Minga de Veneza, seguimos em Revoada para intervir em outros territórios dessa ficção continental chamada Europa. Pousamos no país do Vaticano, passamos para alimentar os ancestrais sagrados Quimbaya confinados em Berlin no Museu Etnográfico e por fim dessa etapa de jornada os abuelos também Quimbayas sob custódia do Museu das Américas de Madrid. 2 dias depois do ritual de alimentação na capital da Espanha tivemos a felicidade de receber a notícia do anúncio de seu retorno a Colômbia.

O retorno é uma vitória, mas é importante destacar, que a pauta é bem maior que uma questão simplesmente patrimonial. O retorno dos artefatos sagrados que corporificam os ancestrais que sonhamos passa pelo respeito a sua dimensão espiritual, que sejam seguidos protocolos de preparação espiritual para as viagens de retorno (como foi contemplado pela embaixada da Colombia na Italia na última leva de Retorno de Maio de 2024), que seja permitida a visita dos povos originários aos deuses corporificados em artefatos seguindo suas leis de origem, ou seja que as instituições museais europeias se abram a estas visitas a partir de dinâmicas possivelmente distintas do que as impostas aos visitantes turistas comuns dos museus. E por fim, que ao chegar em seus territórios que os deuses não sejam confinados sob a mesma lógica. É essencial que não seja realizada apenas a transferência do confinamento de uma instituição europeia a uma instituição latinoamericana. Poporos, Mantos, Esculturas de Abuelos e outros objetos sagrados são confeccionadas para usos ritualísticos, que os parentes contemporâneos possam ter acesso a essa dimensão. Preservando e salvaguardando a dimensão material, mas é preciso reinventar os modos de experienciar essas ditas obras. Porque não só seus descendentes estão vivos e são parte do presente, como elas mesmas na cosmovisão aqui destacada estão também vivas, e consequentemente nessa perspectiva carregando décadas, centenas de anos de sofrimento.
Este vôo da Revoada foi realizado por Plan D – Organização Internacional de Estratégias Decoloniais e por Guata – Caminhos da Arte, em colaboração com Minga Prática Decoloniales. Contou com apoio do Minsitério da Cultura da Colômbia e da Bio Design Foundation.

A história aqui resumida está sendo contada em um filme documental, atualmente em captação e em breve disponível, dirigido por mim Joana Amora. Abaixo lhe convidamos ao nosso Teaser e a seguir a entrar em contato conosco caso sinta o chamado pelos e-mails contact@plandecolonial.com ou joanaptostes@gmail.com        

Tuxupa’a, Obrigada, Obrigado a todos os corpos que se somaram na construção desse processo, a todos os ancestrais que caminharam para que chegássemos até aqui. O grande voo dos pássaros segue em Revoada! 

VEJA O TEASER EXCLUSIVO ABAIXO:

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