POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA
A declaração de emergência climática provoca o repensar das ações sociais, em particular aquelas do campo político industrial e seus impactos na relação homem-natureza. São densas as discussões sobre a desaceleração do consumo, o emprego de energia limpa, o agronegócio, a ordenação das cidades, entre outros temas espinhosos. Pairam sobre nossas cabeças os diversos alertas sobre a interferência humana e a devastação do mundo.
Nas diferentes áreas do conhecimento, comumente, a natureza surge como subordinada ao homem e, mais ainda, dominada por ele. Já no campo da arte, o meio ambiente é objeto de fascínio ao longo da história. Esse encantamento aparece, nas diversas formas de expressão, como inspiração, materialidade, espiritualidade, conscientização e, ainda, como lembrança da efemeridade do humano e sua criação.
No século 17, por exemplo, a natureza excedeu o plano de fundo das obras para atingir protagonismo no gênero da pintura de paisagem. Talvez, tenha sido a partir deste fenômeno que alguns artistas adquiriram a crença da possível harmonia entre homem e natureza. Para eles, a arte serviria como denúncia, resgataria aspectos mágicos e até protetores desta relação.
O século 20 chegou com profundas mudanças, ocasionadas pelo sistema de produção e pelo aparato tecnológico, propiciados pela Revolução Industrial. Adjacente, no campo artístico, o modernismo tornou-se responsável por outras formas de percepção e interação no mundo, nos quais as ordens clássicas já não serviam mais. A janela renascentista contemplativa era trocada pela vista do trem (ou do automóvel) que, rapidamente, passava pela paisagem.
A modernidade trouxe novos interesses, prevalecendo a urbanização e a intensa industrialização como conceitos de progresso. Nos primeiros decênios, as intenções telúricas e míticas das culturas autóctones, da cultura negra e mestiça converteram-se em vazias representações nativistas no vocabulário dos modernistas. Ao mesmo tempo, crescia o afastamento do indivíduo e das “coisas naturais”, impulsionado pelo estilo de vida moderno; emergia uma sociedade profundamente mediada pela máquina.
Nesse contexto, em meados dos anos de 1930, no Brasil, novos atores surgiram na cena artística – em sua maioria imigrantes ou filhos de imigrantes. Eram artesãos (pintores de parede ou de placas de anúncios) que se reuniam nas escadarias do Palacete Santa Helena, na Praça da Sé, em São Paulo. Eles pertenciam a uma classe social muito diversa dos artistas da geração de 1922 e, a meu ver, merecem novos exercícios de reflexão sobre suas condições e suas ideias frente ao “fazer arte”, assim como o reexame de suas obras.
É a respeito do mundo desses pintores, em particular sobre Francisco Rebolo Gonzales (1902-1980) que a exposição Rebolo e o Morumbi: conectados pela natureza, ora em exibição na Fundação Maria Luisa e Oscar Americano (até 14 de novembro de 2024), trata com especial delicadeza. A mostra conta com a parceria do Instituto Rebolo e da Galeria Marcelo Guarnieri, reúne documentos, objetos e trabalhos produzidos pelo artista entre as décadas de 1940 e 1980, período em que viveu no bairro. Notadamente, as pequenas salas expositivas abrigam pinturas de grande capacidade testemunhal e, ao mesmo tempo, peças valorosas pela exemplaridade da obra de Rebolo.
Filho de imigrantes espanhóis e de origem proletária, Rebolo aos 12 anos de idade era aprendiz de decorador – formação adquirida na Escola Profissional Masculina do Brás. Assim, ele trabalhou nos murais das igrejas Santa Ifigênia e Santa Cecília, em São Paulo. Em 1917, exerceu o ofício de decorador, simultaneamente ao de jogador de futebol no São Bento e, em seguida, no Corinthians.
Recém-saído do futebol profissional, na década de 1930, abriu seu escritório na sala 231 do Palacete Santa Helena. Logo depois, outro artesão, Mário Zanini, instalou-se na sala 232. Eles eram, nas horas vagas, artistas amadores, frequentando à noite um curso livre de desenho na Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes de Leão, conheceram outros artesãos-artistas, como Alfredo Volpi, Clóvis Graciano e Manoel Martins.
O Grupo Santa Helena – nome atribuído por Mário de Andrade – era formado por Rebolo, Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Volpi, Humberto Rosa, Graciano, Manoel Martins e Alfredo Rullo Rizzotti. Para além do ensino oficial, esses artistas adotaram a técnica macchiaioli e a temática com ênfase na paisagem. Em comum, em seus repertórios, a recriação da paisagem urbana e suburbana de São Paulo e de cidades vizinhas.
Era o “fazer arte” que unia esses “pintores e escultores de fins de semana”. Por esse motivo, os exercícios em grupo eram essenciais para a troca de experiências entre eles. Nessa chave, situam-se as várias expedições aos subúrbios de São Paulo à procura de novos cenários.
Na exposição Rebolo e o Morumbi, a trajetória do pintor é circunstanciada por essa busca: compreende-se o seu grande interesse pela natureza. Segundo Elza Ajzenberg, uma das pesquisadoras da sua obra, “ao lado da sensibilidade cromática, ou do ‘fazer pintura pura’, está a necessidade de expressar o homem no ato de aninhar-se na terra, no meio natural”.
Todos os trabalhos valorizam a paisagem e a busca pelas cores do bairro. Em algumas pinturas, vê-se as casas que se tornam minúsculas, os verdes, as hortas e as chácaras. Ou, ainda, como o crítico de arte Paulo Mendes de Almeida assinalou, em catálogo de exposição retrospectiva de 1973: “As paisagens de Rebolo são poemas de amor, de identidade com seu chão”.
E pode se dizer que o seu chão foi o longínquo Morumbi dos anos de 1938, quando aos finais de semana, Rebolo frequentava a região com os demais “santa-helenistas” ou, ainda, com o crítico de arte Sérgio Milliet. Em 1942, o pintor resolveu se mudar e viver no bairro até sua morte. À época, a região era, predominantemente, rural, ocupada por chácaras e granjas, com ruas de terra batida, sem luz elétrica e abastecida por água de poços, sons de pássaros e, enfim, ambiente ideal para suas paisagens bucólicas.
Nas pinturas presentes na mostra, o artista registrou cenários compostos por casebres, pela natureza acolhedora e pela figura humana – o que não deixa de ser o modelo de harmonia homem-natureza. Tem-se a percepção de que a experiência com a natureza e com a figura humana se deu longe da metrópole dos modernistas. Em boa medida, as telas são o testemunho da sua vivência paulistana. Nas pinturas, aliada à experiência de vida, há a vibração da luz e a valorização das coisas naturais.
É propícia a oportunidade da mostra estar integrando as comemorações de 50 anos da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, localizada na antiga residência da família, no bairro do Morumbi. Ao redor da casa existe um parque, com uma variedade de plantas e árvores – o que nos instiga a prestar atenção ao verde dentro e fora das salas expositivas.
Ao fim de tudo, para Rebolo, o Morumbi era o lugar da reconexão com a natureza – uma necessidade já presente naquele tempo. Sobre a obra de Rebolo, o crítico e cientista Mario Schenberg anunciava: “É uma questão de sobrevivência o reencontro do Homem com a Natureza” – mal sabiam (artista e crítico) o quão isso é, hoje, pauta emergente em nossos dias.
Rebolo e o Morumbi: conectados pela natureza
De 22/09 a 14/11
Sala de exposições temporárias da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano
Av. Morumbi, 4077 – São Paulo (SP)
De terça a domingo, das 10h às 17h30
Às terças-feiras, a entrada é gratuita
Alecsandra Matias de Oliveira é Doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutorado em Artes Visuais (UNESP). Curadora independente. Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Especialista em Cooperação e Extensão Universitária no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Membro da Associação Internacional de Crítica de Arte (AICA). Articulista do Jornal da USP, editora da Revista Arte & Crítica e colaboradora da DasArtes. Autora dos livros Schenberg: Crítica e Criação (EDUSP, 2011) e Memória da Resistência (MCSP, 2022)