Fernanda Gomes

Ateliê da artista, 2013 Foto: Pat Kilgore

POR ANDRÉ TORRES

I was sleeping in whiteness, drifts of snow,

and you woke me and told me your dream, my blank

face upturned, listening. […]

Richard Siken, Turpentine

 I

As “coisas” de Fernanda Gomes pairam sem nome. Recusam a definição pela linguagem. Por isso, chamá-las de “coisas” é reconhecer sua abertura infinita ao campo referencial. São formas concretas capazes de instaurar estados de presença – tanto dos “objetos”, quanto dos “sujeitos” que se encontram em um mesmo ambiente e cuja diferenciação perde expressividade, pois até a mobilidade que os separa se confunde na espacialidade singular produzida pela artista. Ao retornar o olhar para si, frente a resistência das coisas que confronta, o sujeito torna-se o próprio objeto a ser analisado na apreensão da experiência. Torna-se mais pertinente o caráter genérico do termo “coisas” para se referir a elas do que categorizá-las a partir de conceitos tradicionais – como pintura, escultura, objeto, instalação –, que se tornam insuficientes diante de sua ostensiva precariedade.

É laborioso o exercício de amarrar aquelas coisas ínfimas à uma esfera cultural direta. Os laços afrouxam-se após o primeiro esforço. Lidar com as matérias de Fernanda é entender que toda verbalização perecerá em excesso, que os signos são insuficientes, que a fala falta, assim como as coisas que a despertam.  É complexa a tarefa de traduzir em palavras aquilo que coloca em cheque a nossa capacidade de agenciar a linguagem para transmitir a sutileza de certas experiências sensoriais. Algo sempre escapa. Preserva-se fora da linguagem. Ainda mais quando tratamos de fenômenos que rotacionam todos os sentidos. Suas exposições são acontecimentos de coisas que extrapolam as determinações do código linguístico capaz de comunicá-los. É da ordem do fracasso – ou da parcialidade, para os mais gentis – a tentativa de se consolidar a experiência física radical – ainda que no sentido da aquietação, presença e silêncio próximas do meditativo – que surge em contato com o trabalho da artista. Mas é também da ordem do esforço, do enfrentamento das formas e da sua existência concreta no mundo.

As construções de Fernanda Gomes, sejam elas bi ou tridimensionais habitam o campo da indeterminação, ainda que a exatidão de seu posicionamento no espaço abra margem para duvidarmos disso. Suas coisas se instauram pela precisão da sua disposição que, por sua vez, não anula a instabilidade de seus arranjos, balanços e equilíbrios delicados. Estados cujos sentidos se opõem na linguagem – a precariedade e a estabilidade, por exemplo – passam a conviver. Existiria um termo capaz de expressar essa coabitação? Ou estamos condenados a pender entre um e outro, na tentativa de fixar uma imagem, de elaborar um discurso? Contudo, a eloquência do seu silêncio[1] denuncia o quanto a linguagem é um frágil anteparo frente a intensa complexidade de nossas sensações.

Assim como o corpo nos espaços instaurados por Fernanda Gomes, o pensamento desloca-se, permeia estruturas, cria relações, afasta-se e aproxima-se, quase toca e então retira-se. Ao nos deslocarmos no espaço, ao estabelecemos diferentes relações com seus objetos, não só nos tornamos ameaçadores para eles, pela possibilidade de romper com seu equilíbrio sepulcral, mas somos, em retribuição, violentados pela exatidão de seus posicionamentos que exige o aumento da nossa consciência corporal. Os olhos afloram na pele. O corpo se apequena em sua grandeza, sua desarticulação articulada. Temos que contê-lo para não perturbar a ordem silenciosa que organiza os espaços.

O corpo toma posição diante da abertura infinita de significações correspondente, também, às possibilidades de rearranjos e transformações contidas no trabalho da artista. De modo que é rastreável, em sua prática, a investigação sobre os princípios básicos da escultura – como forma, volume e gravidade, para citar alguns. Mas pode-se falar também de pintura, da importância da luz e do gosto pelo monocromo. Há, todavia, um irrecusável caráter espacial em suas proposições, não só pela autonomia das coisas, mas pela relação efetiva que estabelecem com o ambiente que as circundam e determinam. De modo que, ao perceber como o ocupam, devolvem nosso olhar sobre ele.

O corpo marca-se pela experiência, de tal modo que, ao tentar rememorar a obra da artista, é mais fácil recriar as sensações despertadas, do que as formas efetivamente criadas por ela. Resulta, então, que os conhecedores da sua prática podem sempre intuir a natureza do que irão encontrar, sem prever, de fato, aquilo que configurará o espaço.

Galeria Luisa Strina, 2017. Foto: Pat Kilgore

II

Recentemente – entre junho e julho –, a Galeria Luisa Strina, que representa a carioca há mais de três décadas, desde o início de sua trajetória, tornou-se, mais uma vez, a morada temporária do seu fazer. Desde o final da década de 1980, a artista tem apresentado publicamente os resultados de suas investigações plástico-visuais em exposições que instauram-se como acontecimentos. De modo que, o que compreendemos como seu corpo de obra é o resultado da manifestação contextual e temporária de um processo criativo que continuamente se reelabora.

Em sua nona exposição na galeria, Fernanda reafirma seu compromisso com sua prática. As individuais da artista costumam acontecer a partir do encontro, do convívio, da compreensão e do diálogo com as arquiteturas que as abrigam, prescindindo de um projeto que planifica, de antemão, aquilo que pretende realizar. Para isso, demanda-se tempo. Por isso, suas montagens prolongam-se por semanas – quatro, nesta mais recente. Elas têm a medida da sua vontade, da sua intimidade com aquele espaço. Ela demora-se na construção e arranjo da galeria, trazendo estruturas previamente articuladas na bagagem, mas que só passam a engendrar um mundo (sensível) ao estabelecerem relações com o lugar no qual assumem seu destino.

Uma fina haste de madeira, pintada de branco, disposta na horizontal, a uma altura confortável para os olhos do observador, por exemplo, é capaz de denotar a sutil rachadura que celebra a divisão entre uma parede preexistente e aquela que a amplia. Cria-se uma cruz, um ponto de interseção entre um corpo e uma ferida. O volume revela uma linha orgânica[2]. Do outro lado da sala, uma quilha de madeira projeta-se da parede, semi-visível, semi-ameaçadora.

Esses arranjos são meras demonstração da forma como Fernanda atua. As articulações espaciais propostas resultam de ponderações, de tentativas e de conexões cujo meticuloso posicionamento nos deixa entrever a intencionalidade da artista, compreendendo que, ali, não há acaso, mas ordem e controle. Desconfiamos da desimportância dos materiais, da dedicação dispensada ao ínfimo.

Fernanda faz ecoar Manoel de Barros, para quem “as coisas que não levam a nada / têm grande importância.”[3] O belo revela-se na fragilidade e frugalidade das coisas, na possibilidade de seu repentino desaparecimento. De modo que, diante das proposições de Fernanda, somos lembrados de que a precariedade é a própria tônica do nosso estar no mundo que investe na ideia de obsolescência como tônica de seu sistema produtivo. Entretanto, nada resta desamparado para Fernanda. Cada coisa tem seu lugar e estabelece relações com aquilo que lhe avizinha. Passa-se a desconfiar da existência de uma lógica que explique a disposição e destinação daquelas coisas.

III

No design, a diagramação estabelece uma posição específica para cada elemento que, por sua determinação reconfigura as relações espaciais entre os demais para a construção de um espaço visual. Nada repousa ao acaso. A grade (grid), elemento estruturante dessa prática, planifica e determina a posição de cada coisa, resultando em estabilidade e neutralização, seja no espaço físico, ou mental. Segundo Rosalind Krauss, ela tende à infinitude espacial[4], como se tudo que existe fosse passível de planificação, de recobrimento e captura. A grade compreende o espaço pela lógica, guia-se por princípios euclidianos, tece relações entre seus componentes. Atitudes, essas, relacionadas ao processo de racionalização que resultam no aprisionamento do pensamento em uma espécie de labirinto reflexivo que o levar a continuamente trombar em seus limites.

Símbolo da ambição moderna no campo da visualidade, a grade “anuncia, entre outras coisas, a inclinação da arte moderna ao silêncio, sua hostilidade à literatura, à narrativa, ao discurso”[5]. O forte apelo diagramático presente na disposição das coisas de Fernanda no espaço fazem pulsar essa herança entranhada em nosso inconsciente óptico. Apreendemos, no rigor da ocupação espacial, os eixos cartesianos que orientam sua ordenação.

É válido lembrar que Gomes se graduou na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (ESDI-UERJ). A ESDI é um dos marcos da arte moderna brasileira, tendo estreita relações com a Escola de Design Ulm, na Alemanha, e as práticas construtivas da Bauhaus e de Max Bill, mestre direto – e indireto – da maioria de seus docentes, tais como Alexandre Wollner e Karl Heinz Bergmiller, professores de Fernanda. Tendo se formado em 1981, a artista atuou profissionalmente como designer gráfica por uma década, desenvolvendo uma íntima relação com a grade como espaço de projeção visual.

Krauss afirma que, em sua chave espacial e histórica, a grade conciliou a contradição entre a ciência e o espírito, fundamentais para a consciência do modernismo – em suas inclinações pelo progresso–, mas principalmente para seu subconsciente. No trabalho de Fernanda, contudo, a grade não é apaziguadora. Pelo contrário, denuncia a incapacidade da ciência, da razão de lidar com a irrecusável materialidade das coisas.

E se a ordenação dos objetos nos leva a supor uma possível lógica invisível na qual a disposição harmônica de seus elementos obedeceria uma destinação singular, capaz de ser apreendida, esquematizada e reproduzida em diferentes escalas, revelando-nos o triunfo do racionalismo sobre concretude opaca do mundo, Fernanda nos afeta com o despropósito. Não se trata, sequer, de espírito, mas das relações entre formas, da realidade das matérias, do senso de presença.

MAM-RJ, 2011
Foto: Pat Kilgore

IV 

O que perturba em Fernanda é sua satisfação com o mundano, seu prazer nas pequenas coisas. As coisas das quais ela se utiliza são coisas pobres, rejeitadas, objetos descartados, mortos por não possuírem mais um uso dentro de um sistema de valores capitalista. Desse modo, esses objetos muitas vezes são falhos, quebrados, elementos preciosos para ela que vê justamente nessas características evidências da história individual deles, de sua trajetória no mundo. Seu trabalho atua na recuperação de “mundos terminados”[6], na restauração de um lugar no mundo para essa coisa, ainda que temporário.

Nas palavras de Paulo Venâncio Filho, suas coisas “são objetos que se tornaram como que invisíveis, habitantes que vieram de um inframundo fora do alcance da atenção cotidiana. Então o trabalho os traz de volta ao olhar, devolvendo-os à possibilidade de uma outra existência. Como se, por meio de uma minuciosa restauração das coisas, o espaço fosse sendo construído delicadamente.”[7]

São coisas que só tem sua existência reconhecida, quando em exposição. Em alguns casos, após o período da mostra, elas não só retornam ao seu lugar, a reserva técnica ou a casa/ateliê da artista, como podem ser descartadas. Sua preocupação não é necessariamente com o valor econômico daqueles objetos, mas no valor expressivo das relações que ele é capaz de estabelecer em uma determinada situação.

Fernanda atua principalmente de duas maneiras: produzindo coisas e recolhendo-as do mundo. Obviamente esses gestos não comportam fronteiras, mas porosidades. Aquilo que foi encontrado em uma situação, seja ela a rua ou o espaço a ser ocupado, pode sofrer intervenções. De modo que há inegavelmente uma dimensão do artesanal em seu trabalho, no sentido de que são produtos de um gesto manual, de um trabalho prolongado, mesmo o da duração do olhar para as coisas que desencadeia na geração de outras coisas[8], ou a tarefa de encontrar uma relação posicional adequada dentro do sistema formado pelo conjunto de coisas que constituem suas exposições. É esse gesto prolongado que imprime no objeto a própria temporalidade da artista.

O trabalho de Fernanda é um trabalho de vida. Sua casa é seu ateliê. Suas exposições, suas moradas temporárias. E essas não são meras metáforas. Guiando-se pelos princípios de Kurt Schwitters, a carioca fez do seu lar uma Merzbau (1923), uma casa-obra, uma Catedral da Miséria Erótica tal como foi chamada a residência do artista alemão após mais de uma década de operações plásticas que reconfiguraram seus espaços. A dominação de seu trabalho sobre seu cotidiano a expulsou de casa, em Copacabana, levando-a a se mudar para outro apartamento, na mesma localidade, que também, aos poucos, passou a ser consumido pelo seu fazer.

Fernanda Gomes | FOTO: Edouard Fraipont | Galeria Luisa Strina

V

Não devemos reduzir o trabalho de Fernanda, contudo, à simples produção de objetos que servem ao sistema fetichizador do mercado de arte. Ela está inserida nesse mercado, de fato. Mas o que ela vende, é em si um fragmento, uma parte do todo que é a exposição. Esse fragmento é expressivo e autônomo, mas não possui a mesma força quando deslocado da aspiração ambiental do projeto artístico de Fernanda.

Cada uma dessas situações é única e total naquele determinado momento. Essas articulações com o espaço são lampejos da construção de seu projeto artístico como forma de vida. O trabalho, em sua dimensão pública, é sempre circunstancial e efêmero, ele só existe naquela situação. Ele pode gerar outros objetos, outras coisas, sejam os registros documentais, ou partes materiais que em sua autonomia se tornam rastros daquela situação, simulacros da sua totalidade. O que nos resta é abraçar sua – e nossa – transitoriedade.

Em um curto texto de 1916, Sigmund Freud apresenta uma reflexão sobre o tema. O psicanalista parte do encontro com uma paisagem de verão durante um passeio com um amigo poeta. Enquanto este lamentava a incontornável extinção daquela beleza ao chegar o inverno, o que o leva a reconhecer, ainda, o inevitável desaparecimento de todas as coisas, Freud segue a via contrária. A beleza, afirma, encontra-se justamente na abertura das coisas ao tempo. A imortalidade é irreal, pois a existência, o estar vivo, só é possível no tempo. É justamente a possibilidade de perda, de destruição que torna as coisas belas, e não o que as destitui de valor.

Encarar a transitoriedade pode gerar uma espécie de luto. Somos levados a desejar a permanência daquele estado, de dada imagem. Ou aprender a reativá-lo. Contudo, há  algo de inelutável nas proposições de Fernanda. Estamos ali, em dado momento, e isso basta. Não recusamos a presença das coisas, mesmo antevendo seu desaparecimento programado que em nada diminui a possibilidade de tocar, brevemente, sua eternidade. Entretanto, ela não suspende o tempo, mas o dilata. E essa sensação é aprazível justamente por poder ser interrompida antes do tédio se instaurar.

“Afinal, o que é a duração, que não um sentimento?”, interrogou-se Peter Handke, em seu Poema à Duração, de 1986. Para o escritor alemão, a duração “não existe na pedra/ antiquíssima e eterna,/ mas sim no transitório,/ no que é brando e sensível.” Não é da ordem da essência, não encontra-se nas coisas, mas constitui o próprio sentimento da vida em sua abertura temporal. A duração é sentida individualmente, tal como a percebemos nas mostras de Fernanda. “Não constitui nenhum povo”, reitera Handke. E, mesmo assim, não é completamente pessoal, pois instaura certa comunhão com o mundo, um estado de presença pelo reconhecimento da materialidade daquilo que nos cerca.

VI

Lançados no desconforto aconchegante de seus espaços, aprendemos a desconfiar dos olhos, da linguagem e do status artístico das coisas. Diante do seu trabalho é preciso parar e reaprender a ver até o limite, até o olhar não mais se sustentar. Seja por desconfiar do que vemos, seja para descansar do esforço de penetrar suas determinações. A dúvida reina, então, soberana.

A indeterminação emerge como sentido próprio das coisas. Nos apaziguamos em nosso não-saber. A disposição das estruturas projetam novas configurações no ambiente. Suas formas podem ser tomadas como esquadrias, semi-colunas, um espaço entre a ruína e a construção, como os monumentos de Passaic anotados em foto e texto por Robert Smithson em 1967. Contudo, diferente destas, elas recusam a monumentalidade e, também, o caráter público. São enigmas da intimidade da artista com os materiais e com seu próprio fazer. 

Sua prática é verdadeiramente processual, não no sentido de um progresso técnico, mas na sua contínua abertura, sabendo que uma coisa sucede a outra, sem necessária causalidade e tudo comporta-se como manifestação específica de um aqui, um contexto temporal e espacial específicos. Nesse sentido, podemos perceber, no fazer de Fernanda, as engrenagens da entropia.

Smithson, em Um passeio pelos monumentos de Passaic, recorre à segunda lei da termodinâmica para refletir sobre a irreversibilidade do tempo. As coisas, afinal, não existem em separado, mas se somam, convivem, interferem e incidem umas sobre as outras sem retorno. O artista escreveu: “Imagine com o olho da sua mente a caixa de areia dividida em duas com areia preta de um lado e areia branca do outro. Pegamos uma criança e a fazemos correr no sentido horário dentro da caixa completando 100 voltas, até que a areia se misture e comece a ficar cinza; depois disso a fazemos correr no sentido anti-horário, mas o resultado não será a restauração da divisão original e sim grau ainda maior de cinza e aumento da entropia.”[9]

O processo de trabalho de Fernanda não se reproduz. É entrópico. Suas estruturas, objetos, coisas, enfim, podem ser, de fato, recriadas, ou transcriadas – compreendendo que a cópia pode, em muitos casos, ser uma versão adaptada, tal como a tradução –, partindo-se dos mesmos princípios, sem alcançar, contudo, os mesmos resultados. Afinal, acontecimentos, se reencenados, são meros artifícios. Mesmo que encomende estruturas a um marceneiro – como ocorreu na mostra na Luisa Strina, a partir de especificações e desenhos –, sua prática é resultado de um processo de trabalho técnico e conceitual que foi forjado nos deslocar de sua existência. 

VII

A ausência do uso de títulos nas obras e exposições de Fernanda Gomes, reforçam o caráter extralinguístico de sua prática e dificultam o ancoramento do trabalho em significados definidos e definitivos. O único nome que figura nas legendas das obras e exposições é o da artista. Seu nome próprio desponta como lugar de duplo endereçamento – remetente e destinatário. Afinal, o que se apresenta é Fernanda Gomes – mesmo quando fisicamente ausente – não só porque aquilo que se exibe é o fruto de seu trabalho, comportando os rastros de um fazer prolongado, mas porque é justamente esse fazer particular, único, que possibilita a construção e reconhecimento do seu lugar de autoria.

No entanto, “a intimidade que o trabalho [de Fernanda] apresenta é anônima”[10], lembra José Augusto Ribeiro. O anônimo, o despossuído de nome, é aquele que não possui identidade definida ou definitiva. Permanece refratário à designação – a não ser àquela que indica sua condição inominável. A frase pode parecer contraditória, pois o íntimo é o lugar daquilo que se conhece. Racaímos na angústia diante da impossibilidade de enunciar aquilo que nos acolhe em sua familiaridade.

Podemos pensar que esse esvaziamento linguístico não é a abstinência da linguagem de modo geral, mas apenas da nossa linguagem humana. Walter Benjamin, no famoso ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem, prontifica que a linguagem não é a mesma coisa que a comunicação verbal. De fato, a enunciação de um conteúdo através das palavras é apenas um caso particular. A linguagem, ela extrapola essa dimensão de tal modo que todo evento ou coisa, seja ela animada ou inerte, participa dela. Nossa linguagem humana advém da tradução daquilo que entendemos como o silêncio das coisas para o universo da sonoridade codificada, geradora de reconhecimento e comunicação.

A linguagem humana se diferencia das demais pela função nomeadora. No nome, a linguagem, ao mesmo tempo, expressa sonoramente a si mesma e dirige-se ao que busca capturar-traduzir. O nome atribuído transparece o modo como a coisa se comunica com o humano. Recusar a nomeação, então, deixar anônimo, no caso de Fernanda Gomes, pode ser justamente um modo de não endereçar o modo de nos relacionarmos com as coisas, deixando-as simplesmente existirem e fremirem em sua linguagem muda.

“Sem título seria uma condição de autonomia da coisa em relação à palavra”, disse a artista em entrevista, completando pouco depois que seus trabalhos “são o que são, estão ali como estão. Precisam do silêncio para acentuar a amplitude da linguagem plástica”[11]. O próprio Benjamin entende que a escultura e a pintura, podem estar fundadas na natureza das coisas sem necessariamente estabelecer tradução para uma linguagem humana, mas talvez, para uma outra, superior. Quem sabe, poderíamos pensar que essa outra instância, não completamente separada dessa esfera, é aquela da linguagem divina (mítica).

Esta última visa, acima de tudo, expressar a essência espiritual comum a tudo que existe. Ao fazê-lo, ela de algum modo comunica a linguagem daquela coisa, pois a parte de uma essência espiritual transmissível é justamente a sua linguagem. Quando encaramos as estruturas e formas de Fernanda Gomes, contudo, percebemos nosso espírito inquietar-se na tentativa de adivinhar o espírito que pulsa na materialidade das coisas que tentamos taciturnamente traduzir. Talvez, não haja de fato espírito, razão ou lógica. Possivelmente, esses são apenas artifícios da linguagem para nos posicionar diante da irrecusável concretude das coisas. Resta somente apreender a abraçar os acontecimentos do corpo que transbordam na mente.

Bibliografia

[1] O tema, recorrente na crítica da artista, foi aprofundado por Matheus Drummond em Fernanda Gomes: eloquência do silêncio (2023), publicado na revista ARS, da USP.

[2] Em meados da década de 1950, Lygia Clark realizou a série Descoberta da Linha Orgânica. Posteriormente, em texto sobre a série, explica que a pesquisa havia começado pela “observação de uma linha que aparecia na junção de dois planos quando a cor era a mesma e desaparecia quando os planos tinham cores contrastantes”. A linha orgânica não é grafada em um espaço, mas surge do encontro entre duas superfícies.

[3] versos presentes em Matéria de poesia (1974).

[4] Rosalind Krauss, Grids. In: The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, 1985.

[5] No original: the grid announces, among other things, modern art’s will to silence, its hostility to literature, to narrative, to discourse.

[6] Fernanda Gomes, em entrevista para a revista Arte & Ensaios (PPGAV-EBA-UFRJ), em 2021.

[7]  Paulo Venâncio Filho, Lugares. In: A presença da arte, 2013.

[8] Em entrevista para a Arte & Ensaios (2021), Fernanda diz que há trabalhos que são gerativos, que são necessários para dar vida a outros trabalhos. É no convívio com eles que surgem esses outros objetos, pois eles alimentam inquietações do processo da artista, despertam questões que ainda não são entendidas como prontas para serem expostas. Por isso, ela não costuma “se livrar” deles, vendendo-os, dando-os ou até mesmo expondo-os, em alguns casos.

[9] Robert Smithson, Um Passeio pelos Monumentos de Passaic, 1967.

[10]José Augusto Ribeiro em texto para o catálogo da individual de Fernanda Gomes na Pinacoteca de São Paulo (2019).

[11]Walter Benjamin. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, 2012.

André Torres é Mestre em Linguagens
Visuais pelo PPGAV-EBA-UFRJ (2016) e
Doutor em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade pela PUC-Rio (2023).

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