POR MARIA CECÍLIA FERREIRA
Inaugurada em 26 de outubro, a exposição Arquivo Queer BR apresenta uma narrativa da história LGBTQIAPN+ no Brasil por meio da intersecção entre memória e artes visuais. Na esfera da memória material, a exposição destaca elementos históricos como jornais, documentos e cartazes, todos preservados pelo Acervo Bajubá – um dos mais significativos acervos comunitários sobre diversidade sexual e de gênero no país. Fundado em 2010 por ativistas, artistas e pesquisadores em Brasília, o acervo está agora localizado na Vila Mariana, em São Paulo, com uma extensão em Curitiba desde 2022. A instituição se dedica à preservação e difusão de itens e documentos que datam de meados do século 20 até o presente. No campo das artes visuais, a exposição reúne artistas de diversas origens sociais, unidos pela expressão de dissidências sexuais e de gênero. A seleção inclui artistas majoritariamente brasileiros, como Caetano de Almeida (1964), Dora Longo Bahia (1961), Angel Natan (1996) e Schwanke (1951), além do cubano Félix Gonzalez-Torres (1957-1996), cujas obras ressoam com o tema da exposição.
O Arquivo no título da exposição, curada por Matheus dos Reis (OtherNetwork) e Angel Natan (Acervo Bajubá), homenageia diretamente o Acervo Bajubá, reconhecendo sua importância em preservar registros materiais e imateriais de vidas que, historicamente, foram deixadas à margem da narrativa oficial. Essa narrativa privilegiou corpos higienizados, brancos, heterossexuais e enquadrados no que se considerava “normal”, relegando ao ostracismo tudo o que fugia a essa norma social. Quando falamos de memória, devemos lembrar que ela é um campo de disputa: diferentes vozes se erguem, reivindicando espaço para serem ouvidas na História. Nesse processo, as histórias de grupos minoritários foram frequentemente silenciadas em prol de uma história oficial que exaltava os valores, estilos de vida e personalidades do grupo dominante. Enquanto que o “Queer”, se debruça sobre a pluralidade e, nos termos de Paul B. Preciado, “os corpos da multidão queer são também as reapropriações e os desvios dos discursos da medicina anatômica e da pornografia, entre outros, que construíram o corpo straight e o corpo desviante moderno. […] a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra oso regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”; são as drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientesciborgues… O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sociopolíticas”.
Refletindo sobre isso, vale lembrar que a afirmação positiva da homossexualidade é um fenômeno relativamente recente. Foi apenas em 1973 que a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade de seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, deixando de considerá-la uma doença. Na sequência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças em 1990. Já para as identidades de gênero, a despatologização ocorreu ainda mais tarde, em 2018, quando a OMS deixou de definir “transtorno de identidade de gênero” como sinônimo de transtornos mentais.

Esquerda para direita: (Na parede) – Schwanke Sem título (Mancuspia), 1982. Vinil sobre cartão 75,5 x 113 cm. Cortesia Galeria Simões de Assis. Dora Longo Bahia Aborto Natural II, 1996. Óleo sobre tela 15×250 cm. Cortesia Galeria Luisa Strina.
O surgimento de exposições dedicadas à história das comunidades LGBTQIA+ é recente, acompanhando as conquistas desses movimentos sociais, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo. Podemos lembrar, por exemplo, de curadorias pioneiras como A Lesbian Show (1978), de Harmony Hammond, ou Extended Sensibilities: Homosexual Presence in Contemporary Art (1982), no New Museum of Contemporary Art de Nova York. Mais do que apenas explorar estereótipos ou sensibilidades, essas exposições ampliaram o escopo para temas da vida cotidiana, como violência, lutas políticas, afirmação de gênero, intimidade e ativismo. Artistas LGBTQIA+ não devem ser reduzidos ao campo da sexualidade – essa simplificação desumaniza aspectos profundos e subjetivos de sua obra, como se não fossem capazes de criar para além do esperado ou do que é permitido.
A exposição Arquivo Queer BR se propõe a questionar essas reduções, explorando as múltiplas facetas da diversidade sexual e de gênero, descentrando visões naturalizadas do modelo binário e heterossexual. Ela desconstrói as “verdades” que o sistema normativo perpetua, como a fixação no mito do sexo biológico, e celebra a liberdade dos artistas em reinterpretar a realidade sem as amarras da censura e do moralismo que ainda rondam o Brasil. Assim, a exposição oferece um repertório visual e simbólico que convida todos a perceber novas formas de representação do corpo, do gesto, do amor e da angústia, desafiando a zona de conforto e desnaturalizando a vida, ao abrir espaço para outras experiências a partir da alteridade.
A exposição se organiza a partir de dois eixos temáticos, sendo o primeiro Gênero e Diversidade Sexual, contando com o icônico RG de Néon Cunha, a primeira mulher a mudar o nome e o gênero na Carteira de Identidade Nacional sem a necessidade de atestado médico de cirurgia de redesignação sexual, conquistado depois de muitas lutas e que possibilitou com que toda a população trans o direito ao nome social e a retificação de documentos oficiais como certidão de nascimento. Os outros materiais que fazem parte da mesa são publicações originais da imprensa homossexual como a Revista lésbica brasileira Femme e as edições do Lampião da Esquina.
O segundo eixo temático, Militância/HIV Aids relembra um marco crucial para a comunidade LGBTQIAPN+ durante o contexto da epidemia de HIV no Brasil e no mundo. Um dos itens de destaque é o cartaz do “Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais”, que reuniu mais de 500 pessoas da comunidade em três dias intensos de debates e plenárias. Esse encontro representou um momento histórico de articulação política, sendo o primeiro fórum de decisões do movimento LGBTI+ no Brasil.
Outro elemento significativo é o cartaz Transe Numa Boa (1986), criado pelo artista e ativista Darcy Penteado, pioneiro na América Latina ao promover explicitamente a conscientização sobre práticas sexuais seguras entre homossexuais. Em meio à epidemia de HIV/AIDS, Penteado, que foi ele próprio afetado pela doença, utilizou sua arte para incentivar a redução de danos por meio da informação e da prevenção. Esse eixo reflete sobre como a crise da AIDS, intensificada pela homofobia, o moralismo e a humilhação pública, forjou vínculos de solidariedade e comunidade entre pessoas marginalizadas. Homossexuais, pessoas trans, profissionais do sexo e outros indivíduos estigmatizados encontraram apoio mútuo nas redes de solidariedade que surgiram em resposta à exclusão social e à hostilidade da época, criando laços profundos a partir da experiência compartilhada de marginalização.
A exposição resgata a memória LGBTQIAPN+ não apenas por meio de objetos e documentos de arquivo, mas também através de uma releitura sensível da experiência de ser dissidente de gênero e sexualidade, traduzida por artistas de diferentes recortes de gênero, raça e classe. O trabalho de Angel Natan, artista e pesquisadora do Acervo Bajubá, reinterpreta pela xilogravura as capas icônicas do jornal Lampião da Esquina, que retratavam cenas cotidianas do movimento homossexual brasileiro. Essas capas abordavam desde celebrações, como “Carnaval das bichas é o maior do mundo”, questões de identidade de gênero, como “O travesti: este desconhecido”, até crises e lutas, com manchetes como “A matança dos homossexuais” e “Homossexuais se organizam”.
A obra Composição para Luta Livre, 7 e 8 de Caetano de Almeida, um estudo de lutas corporais, apresenta uma possível “sensibilidade” homossexual em que o esporte e a coreografia da luta podem evocar uma expressão de intimidade e confronto. O trabalho captura a intensidade do embate físico, sugerindo uma fusão de luta e descoberta corporal que reflete a complexidade das relações homoafetivas, muitas vezes mescladas com violência e resistência, oferecendo uma visão sobre as dinâmicas de poder e vulnerabilidade dentro do universo masculino.

Paulo Assis Sem título, 2024 Hóstia de trigo, água, fumarato de tenofovir, desoproxila, lamivudina e dolutegravir sódico e patena de latão. 14×14 cm Coleção Acervo Bajubá
O trabalho de Dora Longo Bahia, Aborto Natural, transforma a morfologia de flores ao antropomorfizá-las como órgãos sexuais humanos, em uma evocação que dialoga com as “esfinges eróticas” de Schwanke, artista sulista. Nestas obras, figuras de formas indefinidas e ambíguas carregam elementos corporais sem especificidade de gênero, compondo criaturas que flertam com o indefinido e o orgânico. Já as esculturas de Paulo Assis recriam o ritual da consagração católica do Corpo e Sangue de Cristo, utilizando patenas – os pratos sagrados de metal usados para consagrar a hóstia. Nesse contexto, Assis subverte o simbolismo do pão e vinho, substituindo a tradicional hóstia de farinha de trigo pela química dos medicamentos antirretrovirais (fumarato de tenofovir, desoproxila, lamivudina e dolutegravir sódico), essenciais no tratamento do HIV. Essa substituição provoca uma reflexão profunda sobre o corpo, sacralidade e sobrevivência, ao reinterpretar um ritual espiritual através da materialidade das substâncias que sustentam a vida e a saúde da comunidade LGBTQIAPN+.
Por fim, a exposição foi realizada em parceria com o Parquinho Gráfico (@parquinhografico) e contou com a colaboração da Casa do Povo, do Acervo Bajubá e da plataforma OtherNetwork.
A curadoria é assinada por Angel Natan e Matheus dos Reis.
A programação de encerramento da exposição no sábado, dia 9/11, conta com uma conversa com os curadores e Leandro Muniz de Sousa, às 15h, e performance de Gretta Sttar às 16h.
REFERÊNCIAS: Preciado, Paul B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feministas, 19(1), p. 11–20, 2011
ARQUIVO Queer BR
26/10 a 09/11
Casa do Povo – Rua Três Rios, 252, 1° andar, Bom Retiro
Maria Cecília Ferreira é historiadora pela Universidade de São Paulo e pós-graduanda em museologia pela Associação Brasileira de Gestão Cultural.