A galera do FUNK chegou ao MAR

POR MATTEO BERGAMINI

Explosivo, tumultuoso, desmedido, movediço, camaleónico: FUNK

 

A exposição dedicada ao “grito de ousadia e liberdade” acompanhará o público do Museu de Arte do Rio de Janeiro até agosto de 2024, investigando profundamente aquela corrente musical e cultural que seria absolutamente menosprezável colocar na prateleira dos gêneros musicais ou, pior ainda, na subcultura metropolitana, inclusive porque o FUNK pertence tanto aos morros quanto as litorais, de norte ao sul, investindo o mundo inteiro, embora Anitta recentemente tinha oferecido uma “aula” relatando a identidade favelada do FUNK: “Nunca no FUNK houveram barquinhos saindo para ver a tardezinha”!

“Rio dança” escreveu há mais de um século, em 1906, o poeta, jornalista e cronista carioca Olavo Bilac, relatando os bailes dos negros que surgiram naquela época na cidade toda, porém, distinguindo: “Botafogo não dança como o Catumbi, a Tijuca não dança como a Saúde”, relatava com espirito de antropólogo, apurando todas as peculiaridades que iam formar os mais diferenciados sentidos comunitários e identitários de cada canto da metrópole. Mas enfim, de onde veio esse FUNK?

Créditos: Thales Leite/ 2023

O surgimento, em via oficial, ocorreu na década de ’60 nos Estados Unidos, quando os músicos afro-americanos chutaram a bola de um novo ritmo que misturava jazz, soul e rythm & blues: James Brown (cantor de músicas de sucesso tais como Living in America e I’m Feel Good) junto ao trompetista e compositor Miles Davis foram os primeiros a se conectar a nova onda, criando um groove bem mais forte, colocando em primeiro lugar bateria e baixo.

Em seguida o FUNK chegou no Brasil e, inicialmente, na cidade maravilhosa tomou conta da Zona Sul conquistando o coração e os movimentos das novas gerações que, todavia, logo substituíram a moda americana com o gosto para a MPB.

Porém, como as ondas e as ideias batem também muito além do conhecido, eis que foi a periferia a resgatar o FUNK, oferendo-lhe uma segunda possibilidade que o tornou, talvez, o maior movimento sócio-cultural da época contemporânea ou, pelo menos, o mais igualitário.

Na cidade da baia de Guanabara que no seu enredo de morros e avenidas abriga mais de setecentos comunidades, no país cujas dez mil favelas dariam à luz o terceiro estado do Brasil por numero de habitantes (conforme Pesquisa Data Favela de 2023), o FUNK é a real demonstração de uma arte que escancara o seu desejo de liberdade e autoafirmação, isto é; abaixo do seu imenso chapéu, o FUNK abriga o mundo sem distinções de raça e religiões, existindo como nicho de resistência e representando a cara do Brasil mais autentico, contudo que relatar de um “Brasil autentico” representa uma contradição pela tamanha variedade geográfica e cultural do país.

 

FUNK no MAR

O grande engajo da mostra FUNK – como hoje em dia deveriam ser as exposições querendo abranger a vastidão de movimentos históricos – é a possibilidade de entrar nela, aproveitando-a de inúmeras formas possíveis: curtindo ritmos e coreografias ou observando cores e figuras, relembrando sonoridades já ultrapassadas ou apurando a crônica das festas.

Thales Leite/ 2023

Demais fácil, porém, seria relatar essa mostra seguindo somente a sua complexa e ciclópica expografia, concebida por sobreposições de materiais, entrelaçando memórias e informações, pondo em conversas arriscadas pinturas e vídeos, objetos e fotografias: o FUNK, aqui, aparece-nos como um encontro colorido de presencias; as salas do MAR metaforicamente transformadas em comunidade, os espectadores convidados a subir e descer imaginarias escalas onde poder encontrar cantores, dançarinos, graffiti, roupa, turmas armadas de caixas de som, afinal, chegando a lajes transformadas em pistas de baile, exatamente como a da favela Santa Maria, teatro do vídeo de Michael Jackson They don’t care about us, direto por Spike Lee em 1995, cercado pela multidão e pelo calor do povoado.

Essa premissa fica necessária para tentar olhar de uma forma mais aguda esse movimento-contramão da cultura oficial; o que nos acompanha por esse passeio variegado e vivaz é uma multidão de artistas cujas vidas são definitivamente conectadas as vivencias do FUNK, com os seus momentos de lazer e com os rituais dos desafios dos bailes coletivos, entre história de costume e paredão do som.

Para começar, merece uma visita zelosa a “discoteca” da mostra, em cujos estantes mostram centenas de vinis dos cantores do FUNK americano e daqueles que deles pegaram a própria inspiração, a exemplo o grande Tim Maia com a sua produção da década de ’70. Do cantor encontra-se também a capa do álbum de 1976 que leva o mesmo nome do músico, disco de longa duração que continha a canção Rodésia, uma melodia funk-soul cuja letra estava focada nos temas do preconceito e da neo-colonização: “África do Sul/ Pegue o sangue azul/ Mande para as cucuias/ Só assim vão ver/ Que o preto é bom/ Mas é valente também”.

Já vinha à tona a mensagem que o FUNK carregava consigo, indo bem além dos bailes e “tocando” tanto a politica quanto as problemáticas sociais irresolutas.

Falando em artes visuais, JOTA, Bruno Lyfe, Malvo, Paty Wolf, entre os outros pintores, relatam no MAR cenas e cores de um “movimento” que além de ser cultural é completamente politico: a exemplo, enquanto no passado as mulheres negras foram despidas, exploradas e expostas ao público, hoje em dia a ousadia de hábitos e de movimentos tais como rebolar a bunda, existem transfigurados, ou seja, tapas na cara daquela classe burguesa que ainda existe no país e que mal aceita as demonstrações de libertação das minorias.

Maxwell Alexandre, com a grande tela A lua queria ser preta (2019), apresenta plenamente a galera do balé e do rolé FUNK: mulheres e homens dançando quase despidos ou vestindo moletom, de cabelo platinado ou capuz, com casacos coloridos e pulseiras, colares e anéis dourados, de chinelo ou sapatos Nike, Vans ou Redley; figuras soltas, sem linhas marcantes nos rostos nem conexões entre elas, colocadas por diante de um fundo completamente escuro: resgate social que atravessa também a individualidade.

Continuando em falar desse assunto, Panmela Castro oferece aos visitadores a possibilidade de interagir com os muros e o espelho de um dos banheiros que se encontram no andar da mostra. Trata-se uma instalação ambiental, com trilha sonora e luzes-neon, tal como qualquer banheiro de bar ou discoteca grunge, que a artista comenta assim: “A obra trabalha em cima do dilema ético: ao escrever no espelho, diante do seu próprio reflexo, o que você deixa para o outro também serve para você”.

Créditos: Thales Leite/ 2023

Desse jeito, eis que o FUNK se posiciona bem além de ser um “ponto de vista” sobre a realidade: é a cara do Brasil, primeiro ator na constelação solta e viva dos demais gêneros; aqueles que se espalharam pelo mundo cavalgando infinitas ondas e levando os mais diferentes nomes, contudo bombando em busca da liberdade em milhares de paredões.

Porém, como as ondas e as ideias batem também muito além do conhecido, eis que foi a periferia a resgatar o FUNK, oferendo-lhe uma segunda possibilidade que o tornou, talvez, o maior movimento sócio-cultural da época contemporânea ou, pelo menos, o mais igualitário. Aliás, já que o FUNK é a música da favela, conforme as palavras de Anitta, poderia considerar-se propriamente como a partitura oficial do Brasil, pois se juntarmos os moradores das dez mil favelas brasileiras registradas teríamos o terceiro estado do país por numero de habitantes (de acordo com a Pesquisa Data Favela de 2023).

Por isso o FUNK é a real demonstração de uma arte que escancara o seu desejo de liberdade e autoafirmação; abaixo do seu imenso chapéu, o FUNK abriga o mundo sem distinções de raça e religiões, existindo como nicho de resistência e representando a cara do Brasil mais autentico, ainda que relatar de um “Brasil autentico” represente uma contradição pela tamanha variedade geográfica e cultural do país.

 

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