The Primal Wing, 1933.

DASARTES 101 /

WILLIAM KENTRIDGE

WILLIAM KENTRIDGE É UM DOS MAIS IMPORTANTES ARTISTAS VISUAIS CONTEMPORÂNEOS DO MUNDO. SUA OBRA ABRANGE TÓPICOS COMO INJUSTIÇA SOCIAL, A HISTÓRIA DA ÁFRICA DO SUL, COLONIALISMO, FAMÍLIA, FUGA E DESLOCAMENTO COM UMA AMPLA VARIEDADE DE MÍDIAS. NO INÍCIO DE SUA PRÁTICA ARTÍSTICA, PORÉM, SEMPRE ESTÁ O DESENHO

Drawing ‘Untitled (9 flying birds)’, 2011.

A arte, dirá William Kentridge, é uma forma própria de conhecimento. Não segue um pensamento linear e não pode ser inteiramente compreendida nos termos racionais das disciplinas acadêmicas. Necessita dos processos materiais que envolvem os olhos, as mãos, o papel, o carvão. E tudo começa com o desenho. É conhecida a sua afirmação de que o desejo de desenhar é a base de todo seu trabalho – “tudo começa com o prazer sensorial de colocar as marcas do carvão no papel.” Para Kentridge, o desenho funciona como uma metáfora para a maneira como pensamos, é uma versão do pensamento em um tempo mais estendido em que o corpo está também implicado – “A forma incerta e imprecisa pela qual se faz um desenho pode ser um modelo para a maneira como se constroem os significados”.

Ao longo de quatro décadas de trabalho, Kentridge desenvolveu uma linguagem artística absolutamente peculiar. Diz-se dos seus desenhos que são pós-cinemáticos, pois incorporam efeitos como close-ups e long-shots e, a partir de 1989, lançando mão de um processo lento e artesanal, o artista de fato começou a transformá-los em pequenas animações, cujos títulos escritos à mão e os movimentos bruscos da câmera remetem às primeiras décadas do cinema. As figuras são desenhadas, modificadas, apagadas e redesenhadas por cima das manchas acinzentadas que a rasura do carvão deixa no papel. Em constante metamorfose, os desenhos se tornam visualmente hipnóticos. Diante deles, temos a impressão de testemunhar o processo criativo por trás de cada mudança nos traços e contornos que dão vida à narrativa. No universo labiríntico de Kentridge, a fumaça do cigarro vira uma máquina de escrever, um gato se torna um aparelho de rádio ou uma máscara de gás, um estetoscópio se transforma em um telefone, o tripé de uma câmera assume a forma das hélices de um helicóptero e sua lente a de uma metralhadora – “Para mim, o desenho tem a ver com fluidez. Você pode começar com uma vaga noção do que se vai desenhar, mas ao longo do processo acontece uma série de coisas que modificam, consolidam ou lançam dúvidas sobre o que se sabia”. Esse processo vai dotando as imagens de memória. Infiltradas com manchas e borrões, é como se elas conservassem os vestígios visuais de sua história recente.

Felix in Exile, 1994.

Felix in Exile, 1994.

Seu interesse na construção de personagens – uma característica incomum entre artistas visuais – deriva em grande parte de sua vasta experiência no teatro, onde escreveu roteiros, desenhou cenários e figurinos, atuou e dirigiu peças teatrais desde 1975. De maneira inventiva e espirituosa, Kentridge é capaz de explicitar de forma primorosa a personalidade de uma personagem por meio de um simples gesto e criar tipos que transbordam de suas silhuetas para representar todo um conjunto de ideias que marcam culturalmente a África do Sul. Suas personagens parecem encenar a um só passo eventos íntimos de uma história privada e acontecimentos públicos da história de seu país. Essa dupla envergadura torna suas imagens um caleidoscópio de metáforas sobre memória, culpa, trauma, submissão, emancipação e reconciliação. Na animação que fez para Ubu e a Comissão da Verdade (1997) – espetáculo inspirado nos interrogatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul –, há a imagem de um corpo que explode e se torna uma constelação. A cena se baseia em uma prática real da polícia sul-africana de dinamitar os corpos das pessoas que havia matado e depois juntar os pedaços para explodi-los novamente, de forma repetida, até que não houvesse mais qualquer fragmento identificável. Kentridge aborda poeticamente fatos históricos do apartheid, sublinhando a importância de se olhar para o absurdo não como um erro periférico, mas um sistema político racional apresentado pelo Estado.

Ubu tells the truth, 1997. Image courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels.

Ubu tells the truth, 1997. Image courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels.

O século 20 chegou ao fim inviabilizando os idealismos utópicos que caracterizaram seu início e estabelecendo de forma assertiva os limites da representação no que tange à sua capacidade de transformação cultural. Um dos legados do colonialismo europeu na África foi o reconhecimento da dificuldade que sempre paira sobre as tentativas bem-intencionadas de um membro da classe dominante de representar os membros de outra classe sem que acabe reproduzindo inadvertidamente a mesma lógica hierárquica que pretende questionar. Esses impasses não escapam à atenção de Kentridge. O pequeno elenco de personagens criados em suas animações remete a uma realidade insular dentro da sociedade sul-africana. O poderoso empresário Soho Eckstein, a melancólica srª Eckstein (cujo nome nunca é revelado) e o poeta sonhador Felix Teitlebaum, que vive um romance apaixonado com a mulher do empresário, encenam seus dramas pessoais de maneira relativamente alheia aos conflitos sociopolíticos que os cercam. Brancos, presumidamente judeus e alheios à batalha cotidiana pela sobrevivência da vasta maioria dos sul-africanos, cada um dos três é um alter ego do próprio artista, cuja aparência física se faz notar de forma manifesta tanto na imagem austera do engravatado magnata, quanto na silhueta nua do poeta. Nascido em uma proeminente família judia de advogados comprometidos com a luta contra o apartheid, Kentridge atravessou os piores anos do regime segregacionista em um estado de relativa “marginalidade” em relação às convulsões políticas que assolavam o país. Percebia a barbárie daquele sistema violento e arbitrário, sentia-se parte de suas transformações históricas, ao mesmo tempo em que se sabia protegido dele por ser branco. Há ainda um quarto personagem nos filmes – a massa anônima e destituída de trabalhadores que circula pelos arredores de uma cidade devastada pelos desastres humanos.

Mine, 1991.

Blue Head, 1993-98. Courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels

As referências artísticas de Kentridge são muitas e aparecem explicitamente citadas em sua obra de forma recorrente. A figura glutona de Soho, que veste terno de risca de giz e fuma charutos cercado da parafernália burocrática de seu escritório, aponta para o universo satírico da República de Weimar, especialmente para as caricaturas de George Grosz. O sul-africano Dumile Feni, que abordou em seus enormes desenhos a carvão a luta contra o apartheid na África do Sul, e com quem Kentridge estudou em Johannesburgo, é apontado pelo artista como a mais crucial de suas influências. Entre os europeus, o artista cita a importância que tiveram para ele Daumier, Hogarth e Goya, além de expressionistas alemães como Otto Dix e Max Beckmann, aos quais seu trabalho presta clara homenagem. Em conversa com a curadora Carolyn Christov-Bakargiev, Kentridge conta que muito do que se produzia na Europa e na América do Norte, durante os anos 1960 e 1970, parecia-lhe distante e incompreensível – “As imagens se tornavam familiares para mim por meio de exposições e publicações, mas o impulso por trás dos trabalhos não fazia o salto transcontinental para o contexto sul-africano.” Da perspectiva da África do Sul, onde os conflitos políticos eram tão graves, o silêncio do Abstracionismo soava “quase catatônico”, uma confissão “autoindulgente” da dificuldade de se descrever o mundo.

History of the Main Complaint, 1996. Image courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels

History of the Main Complaint, 1996. Image courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels

Kentridge olha para a esperança e para o idealismo do momento histórico que produziu Vladimir Tatlin, Kazimir Malevich, Vladimir Mayakovsky e Dziga Vertov sentindo uma “proximidade distante” e “certa inveja” da convicção no racionalismo científico e na revolução política como instrumentos de emancipação social – “Foi um período marcado pelo otimismo político antes de o mundo ser exaurido pela guerra e pelo fracasso”. Sua admiração pelas vanguardas do início do século convive com o niilismo e a melancolia de quem tem a vantagem histórica de poder ver o futuro olhando pra trás – “aquele tipo de esperança, aqui e agora, parece-me impossível”. Referências à tecnologia que na estética modernista simbolizavam o entusiasmo com o progresso e o futuro também são recorrentes em sua obra. Mas, em seus filmes, a novidade já nasce obsoleta. Não há celulares ou computadores, mas pesados telefones fixos de discar, vitrolas, gramofones, megafones, lunetas, binóculos e todo um maquinário nostálgico que já fora emblema do futuro em algum momento no passado. Os cenários das animações misturam objetos reais – luminárias, mesas, rodas de bicicleta, instrumentos de sopro – com outros desenhados com giz nas paredes, como portas, janelas e quadros. Desde os seus primeiros desenhos até seus projetos mais recentes, Kentridge faz questão de evidenciar a natureza artesanal do seu processo. Podemos ver os chapéus feitos de papelão ou a fita adesiva usada para prender algum apetrecho – “é importante que as pessoas olhem para a obra e entendam que elas poderiam tê-la feito, que é algo possível, não requer qualquer tecnologia extraordinária a que elas não têm acesso algum.”

The Refusal of Time, 2012.

Em 2010, Kentridge se uniu ao físico e historiador da ciência Peter Galison para apresentar uma reflexão ambiciosa e abrangente sobre a natureza do tempo, tendo como pano de fundo o ano de 1905, quando Albert Einstein publicou seu ensaio sobre a teoria da relatividade demonstrando que não havia um único tempo absoluto, mas múltiplos tempos relativos. A vídeo instalação The Refusal of Time (2012) apresenta uma profusão vertiginosa de tentativas de empreender uma tarefa irrealizável por excelência – materializar o tempo. Diferentes imagens projetadas em cinco telas fragmentadas dão uma concretude poderosa ao conceito de simultaneidade. Acontecimentos exibidos de trás pra frente alteram o vetor inexorável do tempo. Por meio dos sons e da música de Philip Miller, o tempo é acelerado, retardado, sincopado, pausado e invertido. A dança aparece como uma metáfora de resistência à domesticação e à exploração que transformam os corpos em máquinas, e de valorização da fruição do presente em detrimento do planejamento do futuro. Em termos coloniais, a recusa do tempo é também uma metáfora à recusa da ordem e do controle europeus impostos à África do Sul.

As sombras da instalação saem das cavernas organizadas em procissões e avançam sobre a geografia de uma paisagem distópica em direção ao destino de todos os corpos. Suas silhuetas projetadas nas paredes carregam consigo bandeiras, utensílios e instrumentos musicais. Marcham resolutas em direção à morte, mas no trajeto que percorrem entre a escuridão de onde saíram e o buraco negro para onde caminham, há uma faísca de luz. E também há música, dança, performance e melodrama. Em uma das cenas da obra, vários pedacinhos de papel picado flutuam no ar e, por um segundo, seus fragmentos formam uma imagem coerente, uma cafeteira de alumínio, antes de se dissiparem no caos novamente. Esses breves instantes de coerência são, para Kentridge, “o máximo que podemos esperar do mundo”.

Giorgio Agamben, em diálogo com as ideias de Nietzsche, definiu a contemporaneidade como uma “singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente que adere a este através de uma dissociação e um anacronismo.” Para o filósofo, aquele que coincide muito plenamente com a própria época se deixa cegar por suas luzes e, não podendo entrever também a parte das sombras, não é capaz de compreendê-la com clareza. A fim de apreender verdadeiramente determinado tempo, faz-se necessário imprimir ao olhar algum grau de inatualidade para que nele se possa ver também o escuro – “contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”, diz Agamben. Parte do fascínio que as obras de Kentridge exercem sobre nós vem do seu poder de expor as fraturas do tempo. São imagens que se inscrevem no presente para expor antes de tudo a sua dimensão arcaica, para interromper a sua linearidade inexorável e colocá-lo em fricção com outras épocas. E é justamente recusando o tempo que Kentridge, com seu cinema mudo e artesanal, torna-se, no melhor sentido do termo, o arquétipo do artista contemporâneo.

Elisa Maia é doutorando do
programa de Comunicação e
Cultura da ECO-UFRJ.

WILLIAM KENTRIDGE: WHY SHOULD I HESITATE:
PUTTING DRAWINGS TO WORK • DEICHTORHALLEN
HAMBURG • ALEMANHA • 23/10/2020 A 18/4/2021

 

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