Willem de Kooning, Femme dans un paysage III, 1968. ©The Willem de Kooning Foundation / Adagp, Paris 2021

DASARTES 114 /

WILLEM DE KOONING E CHAÏM SOUTINE

A INSPIRAÇÃO DE WILLEM DE KOONING “Sempre fui louco por Soutine – por todas as suas pinturas. Talvez, seja a exuberância das tintas”. Willem de Kooning, 1977 Comumente, escutamos dizer que artistas sofreram influências de movimentos, escolas e até mesmo outras poéticas. Em geral, isso acontece quando iniciam seu percurso estético. A admiração de um […]

A INSPIRAÇÃO DE WILLEM DE KOONING

“Sempre fui louco por Soutine – por todas as suas pinturas. Talvez, seja a exuberância das tintas”.
Willem de Kooning, 1977

Comumente, escutamos dizer que artistas sofreram influências de movimentos, escolas e até mesmo outras poéticas. Em geral, isso acontece quando iniciam seu percurso estético. A admiração de um artista pelo trabalho de outro é fato. Porém, raras vezes, na história da arte, inspirações são declaradas, em especial quando se trata de artistas icônicos, tal como, Willem de Kooning (1904-1997), um dos pintores de primeira ordem do chamado expressionismo abstrato. Porém, Kooning nunca escondeu seu vivo interesse pelo repertório de Chaïm Soutine (1893-1943), pintor russo expressionista integrante da Escola de Paris.

Chaïm Soutine, Le poulet plumé, 1925 © RMN-Grand Palais (musée de l’Orangerie)

As aldeias distantes, as carcaças de animais encharcadas de sangue, os retratos de pessoas comuns e a figura de “artista maldito” foram alguns aspectos, entre outros, que o levaram a ser o pintor favorito de Kooning. Os dois nunca se conheceram – o primeiro morreu na Europa, quando o segundo estava prestes a ser reconhecido nos EUA. De modo íntimo, Kooning apreciava o trabalho do pintor russo desde os anos de 1930, quando explorava as galerias nova-iorquinas. Mas a retrospectiva de Soutine, no MoMA, em 1950, tornou-se o evento-chave para que ele assumisse de vez seu entusiasmo.

Chaïm Soutine, Le groom (Le chasseur) © Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais / Philippe Migeat

O impacto da pintura de Soutine na visão pictórica de Kooning pode ser sentido na exposição Chaïm Soutine/Williem de Kooning – la peinture incarnée, em exibição no Musée de l’Orangerie até janeiro de 2022. A mostra é uma parceria entre a Fundação Barnes e o museu francês e anteriormente foi exibida na Filadélfia com o título Soutine/de Kooning. Conversations in paint, entre 7 de março a 8 de agosto de 2021. São cerca de 50 pinturas que, expostas em conjunto, mostram paralelos notáveis entre os dois artistas. E isso para os amantes da arte é uma sucessão de descobertas. Prepare-se! Vamos desvendar algumas delas (só algumas). Ah! Entre as afinidades que envolvem o repertório dos artistas, cuidado com as pequenas sutilezas da crítica e da história da arte.

Note que a primeira delas já nasce do título da mostra: nos EUA, algo como “conversas na pintura” e, na capital francesa, a “pintura encarnada”. Para a montagem, na Fundação Barnes, a curadoria optou por não fixar as obras lado a lado, mas colocar as telas em paredes opostas, como em diálogo. As telas de Kooning em ordem cronológica, mas as de Soutine na ordem na qual o expressionista abstrato se envolveu com elas, retratos primeiro e paisagens por último. Já no Musée l’Orangerie, o peso da montagem recaiu sobre a pintura da “carne” e o “gesto” dos dois artistas, enfatizando que as superfícies construídas e as pinceladas enérgicas de Soutine moldaram as obras figurativas-abstratas de Kooning. As mesmas obras despertam leituras diferentes – o que por si já é algo fascinante.

Chaïm Soutine, Le boeuf écorché, 1925. © Ville de Grenoble /Musée de Grenoble –J.L. Lacroix.

Mas vamos nos aprofundar na trajetória de cada artista. Chaïm Soutine nasceu no território que hoje é a Bielorrússia. De ascendência judaica e o número 10 de 11 filhos, iniciou seus estudos na academia de arte em Vilnius. Em 1913, decidiu emigrar para Paris e estudou na École de Beaux-Arts. Depois, de retratos incomuns e paisagens inusitadas, o pintor se aventurou pelas naturezas-mortas exibindo faisões, perus e coelhos mortos – em todas as suas telas as pinceladas expressivas e a ausência dos recursos cubistas já estavam em voga à época. Com atenções voltadas à pintura europeia clássica, em particular às obras de Rembrandt, Chardin e Coubert, Soutine dedicou-se ao estudo da forma, cor e textura em detrimento da representação, sendo esse o atributo que, mais tarde, lhe deu o apelido de “profeta” do expressionismo abstrato.

A série Carcaça de carne, com dez obras e explorando o tema das carcaças de animais ensanguentadas, é motivada pelas naturezas-mortas de Rembrandt. É o seu trabalho mais conhecido, sendo que o forte de sua produção se deu entre os anos de 1920 e 1929. Quando a França foi invadida pelas tropas alemães na II Guerra, Soutine teve que fugir, mudando constantemente seu endereço até que, em 1943, abandonou o esconderijo para o tratamento de úlcera no estômago, que o levou à morte.

Chaïm Soutine, Femme entrant dans l’eau, 1931. Foto: © Museum of Avant-Garde Mastery of Europe (MAGMA of Europe)

Permita-me aqui outras sutilezas: a retomada de Soutine pelos expressionistas abstratos é interessante. O “artista maldito”, que viveu com intensidade os exageros da boemia na École de Paris (nome dado ao grupo de artistas franceses e emigrados que viviam de arte na capital francesa no início do século 20), parece servir como “ascendência nobre” para o movimento com origem nos EUA, no pós-II Guerra Mundial (fim dos anos de 1940), que teve como tese a revolta contra a pintura tradicional, a liberdade e a espontaneidade. Convergência instigante é ainda a origem dos membros dos dois grupos: artistas-emigrados, ou seja, deslocados de seus locais de origem e reunidos em dois centros da arte (Paris, anos de 1920) e (Nova York, anos de 1940).

Chaïm Soutine, Le Petit Patissier, 1922-1924. © Musée de l’Orangerie, dist. RMN-Grand Palais.

Visto pelos expressionistas abstratos como um líder, Willem de Kooning nasceu em Rotterdam e iniciou seus estudos em belas-artes e artes comerciais na Academia de lá. Em 1926, emigrou para os EUA. Nos primeiros tempos, trabalhou como pintor de paredes, mas logo se fixou em Nova York, estabelecendo contatos com Henri Matisse, Fernand Léger e os seus contemporâneos John Graham e Ashile Gorky, com quem desenvolveu amizade próxima. Ele esteve sempre entre o figurativo e o abstrato. De modo oposto a Pollock, interessou-se pela pintura dos “velhos mestres”. Em 1963, Kooning se mudou para Long Island e sua produção passou a ser mais esparsa. Em 1969, ele iniciou suas primeiras figuras em argilas e em bronze. Diagnosticado com Alzheimer, faleceu em 1997, em East Hampton (Nova York). Em sete décadas de trajetória, ele trabalhou com diversos estilos e ficou conhecido por seu trabalho gestual, por ter como tema predileto as mulheres e – o que interessa para nós – ser elo entre a pintura da Escola de Nova York e o modernismo europeu.

Chaïm Soutine,Enfant de choeur, 1927-1928. © Musée de l’Orangerie, dist. RMN-Grand Palais.

Talvez essa ligação esteja no seu interesse por Soutine. O olhar para a obra do pintor russo se fez intenso durante os anos de 1950. Aqui cabe dizer que o ponto de inflexão na produção de Kooning – a série de pinturas de mulheres – coincidiu com essa atração. De Kooning chocou os críticos, os colegas e o público com o aspecto grotesco das representações femininas. A crítica reprovou a inclusão de elementos figurativos – considerando isso uma traição. Avesso aos comentários, o pintor trabalhou as formas angulosas e bruscas, proporcionando um desconcertante contraste entre a representação sensual e deificada na arte tradicional da figura feminina.

De Kooning, Willem (1904-1997): Woman Accabonac. 1966. New York Whitney Museum of American Art

Acaso ou não, nesse período, ocorreu a retrospectiva Soutine no MoMA, em 1950 (lembra-se dessa retrospectiva?) e a visita de Kooning ao colecionador Albert Barnes em 1952 – por sinal, esse episódio está documentado na exposição. Pois é, Kooning e a esposa, a pintora Elaine de Kooning, visitaram o colecionador para ver os 16 Soutines em exibição permanente. Trinta anos antes (em 1922), Barnes tinha comprado dezenas de obras do artista. Pode-se dizer que o colecionador foi responsável pela divulgação da obra de Soutine nos EUA (olha, outra sutileza, a Fundação Barnes agora promove o encontro dos dois artistas em terras norte-americanas e europeias).

Willem de Kooning, Dont le nom était écrit dans l’eau, 1975. © The Solomon R. Guggenheim Foundation / Art Resource, NY, Dist. RMN-Grand Palais

Por fim, alguns críticos afirmam que a falta de interesse de Soutine pelo cubismo foi o que atraiu Kooning para seu repertório. Ele o ensinou sobre o trabalho dos pintores clássicos, a abandonar a geometria plana do cubismo, mas também lhe despertou o interesse pelo empastado das tintas e pelos gestos. A exposição Chaïm Soutine/Williem de Kooning – la peinture incarnée nos dá esse emaranhado de sutilezas e ainda proporciona novas descobertas.

Willem de Kooning, La visite, 1966-67. © Tate, Londres, Dist. RMN-Grand Palais

Alecsandra Matias de Oliveira é Doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008) e pós-doutorado pela Unesp (2018). Atualmente, é especialista em cooperação e extensão universitária do MAC USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011).

CHAÏM SOUTINE/WILLEM DE KOONING: LA PEINTURE
INCARNÉE • LE MUSÉE DE L’ORANGERIE • ATÉ 10/1/2022

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