Atlas de anatomia – Ondina

Atlas de anatomia: Ondina (Série Unheimlich), 2005. © Walmor Correa.
E se o Curupira, comentado por José de Anchieta, em carta de 1560, realmente existisse? E se o Ipupiara, cerne de longa descrição de Fernão Cardim, de fato vivesse nas matas baianas? E se o Capelobo, tão presente em falas de ribeirinhos amazônicos, fosse o responsável pelo desaparecimento de cães e gatos recém-nascidos? A ciência diz que esses animais são quimeras, mas múltiplos relatos sugerem o contrário. Em 2005, tal como um criptozoólogo, desenvolvi a série Unheimlich, realizando a dissecação gráfica de cinco seres do imaginário popular brasileiro. Além dos já citados, voltei-me à Cachorra da Palmeira, um mito alagoano, e à Ondina. Ao explorar a tradição do desenho taxonômico e criar um texto cientificamente persuasivo, procurei asseverar a existência desses híbridos. O Atlas de Anatomia, nesse sentido, assume papel especial: evoca uma ferramenta pedagógica que ajudou a formar gerações, questiona o que nos foi ensinado e pleiteia, para os bancos escolares, o lugar da fantasia.
Biblioteca dos enganos

Biblioteca dos enganos, 2009. © Walmor Correa.
Vivendo no Brasil entre 1880 e 1920, o naturalista alemão Hermann von Ihering (1850-1930) trabalhou no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, além de ter sido o primeiro diretor do Museu Paulista, dando-lhe um perfil, naquele momento, voltado à História Natural. Fazendo observações sobre diversos animais, seus artigos “corrigem” trabalhos de cientistas anteriores, ao mesmo tempo em que descrevem novas espécies; todavia, quando lemos esses textos atentamente, percebemos que eles são atravessados por inconsistências. O naturalista apresenta andorinhas que hibernam, tatus com caudas muito curtas e comportamentos que hoje sabemos incompatíveis com os animais que ele estudou. A Biblioteca dos Enganos (2009) trata disso: ao lado dos textos de Ihering, estão as minhas imagens, que buscam manter absoluta fidelidade ao que está descrito. O resultado visual, contudo, escancara os desacertos do cientista, no diapasão entre realidade e ficção.
Sporophila beltoni

Sporophila beltoni, 2014. © Walmor Correa.
Em 2014, contemplado pela Fundação Smithsonian, fiz residência artística no Museu de História Natural de Washington (EUA). Eu procurava informações sobre a Sporophila beltoni, ave conhecida popularmente como Patativa-tropeira e muito comum no Sul do Brasil. Pesquisando pássaros brasileiros preservados na instituição, encontrei uma Sporophila, mas que trazia alguns equívocos em seus registros, o que inviabilizaria, inclusive, a sua localização pelos ornitólogos. Aos meus olhos, aquele espécime depositado em uma das incontáveis gavetas do museu era, metaforicamente, um brasileiro expatriado, um indigente em vala comum. Essa percepção me motivou a desenvolver um processo de reconhecimento civil da ave, que ganhou documentos como passaporte e carteira de identidade, a partir dos quais ela poderia narrar sua história e sugestionar, quem sabe, a conjuntura de milhares de imigrantes ilegais, notadamente brasileiros e latino-americanos, que vivem nos Estados Unidos à margem, em exílio.
Espada-de-São-Jorge e Punhal-de-Santa-Bárbara

Espada-de-São-Jorge e Punhal-de-Santa-Bárbara, 2019. © Walmor Correa.
Foi no mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, que iniciei, em 2019, o trabalho de campo que embasa o projeto Etnografia cultural da flora mágica brasileira. Meu objetivo era investigar as crenças em torno das propriedades alucinógenas, afrodisíacas e energéticas de algumas plantas. Entrevistei diversas “erveiras”, bem como profissionais da Embrapa, que confirmaram a sabedoria popular: muitas ervas têm, sim, poderosas substâncias químicas com efeitos farmacológicos, que estão na origem dos nomes pelos quais são conhecidas vulgarmente; outras parecem conquistar, entre o público, propriedades especiais, em vista de suas formas e do que elas evocam. É o caso de algumas plantas do gênero Sansevieria, como a “Espada-de-São-Jorge” e o “Punhal-de-Santa-Bárbara”, que garantiriam amparo contra energias negativas e mau-olhado. Em minha pesquisa, dilato o sentido dos nomes dessas espécies, fazendo de suas folhas rígidas as lâminas imaginárias de artefatos de luta e proteção espiritual.
Coração da bananeira

Coração da bananeira, 2019. © Walmor Correa
As denominações populares nascem, em grande medida, da observação e da comparação com o que se conhece, ou a partir da associação com lendas do folclore nacional. A flor da bananeira, por exemplo, roxa, pendular, grandiosa e em forma de cone, é chamada habitualmente de “coração da bananeira”. Há uma imagem muito bonita e sugestiva por trás dessa expressão e resolvi, de modo poético, dar-lhe forma. A escultura integra o herbário fantástico da série Etnografia cultural da flora mágica brasileira, iniciada em 2019, na qual analisei e subverti mais de 90 espécies da admirável biodiversidade de nosso País.