Marie Čermínová rejeitou categorizações ainda jovem e adotou o pseudônimo de Toyen aos 21 anos; isso em memória da Revolução Francesa e de seus cidadãos livres e iguais, os citoyens. Sempre em contato próximo com os principais poetas e pensadores de seu tempo, ela desenvolveu uma obra tão multifacetada quanto inovadora: inicialmente como membro influente da vanguarda checa em Praga e durante estadas em Paris; depois, no início dos anos 1930, como fundadora do movimento surrealista da Checoslováquia.
Durante a ocupação alemã, Toyen realizou obras alternativas de um poder angustiante. Desde 1947 no exílio em Paris, ela trabalhava no cerne do surrealismo do pós-guerra. Até a sua morte, permaneceu ativa na pintura, desenho, colagem, ilustração e também muito valorizada pelos poetas da próxima geração. A artista pioneira comemorou sucessos iniciais e teve exposições em galerias em Praga e Paris até a década de 1960, mas foi esquecida nos últimos 20 anos de sua vida.
Fica claro que os princípios norteadores da revolta, erotismo, alquimia e analogia, bem como o questionamento da relação entre realidade, imaginação e imagem permeiam toda a obra de Toyen. Eles são baseados nas explorações de liberdade e identidade de Toyen, tópicos que são particularmente relevantes hoje.
PRIMEIROS ANOS
Após um curto período de estudos na Escola de Artes Aplicadas de Praga, Marie Čermínová conheceu o pintor Jindřich Štyrský, em 1922. Ele foi seu parceiro artístico e amigo até sua morte. Ambos se juntaram ao movimento de vanguarda da Checoslováquia, chamado de Devětsil, em 1923. O movimento inclui também poetas, designers e arquitetos. Na mostra Bazaar of Modern Art, a artista apresentou, entre outras coisas, pinturas abstratas próximas ao construtivismo e que usaram pela primeira vez o pseudônimo inespecífico de gênero Toyen. Durante uma viagem de vários meses pela França, no final de 1924, seu estilo artístico mudou fundamentalmente: Entusiasta de espetáculos, cenas de circo e festivais folclóricos, ela os registrou detalhadamente em cadernos de desenho.
FATA MORGANA
No outono de 1925, Toyen se mudou para Paris por três anos. Lá encontrou a própria tendência artística – o artificialismo. Sua demanda central eram a poesia e a “identificação do pintor com o poeta”. Em seu manifesto, ela se distanciou das tendências atuais. Para Toyen, a fim de captar “memórias de memórias” na imagem, a partir de 1926, ela desenvolveu suas obras usando uma técnica de pintura livre sem precedentes: inventiva no manuseio de estênceis, pistolas de aerógrafo, na aplicação de tintas, alguns dos quais foram engrossados com areia e camadas, bem como a estruturação das superfícies com espátulas.
UMA NOITE NA OCEANIA
No início dos anos 1930, Toyen se dedicava cada vez mais à noite como um lugar de sonhos, do inconsciente e do erótico. Das estruturas empastadas das pinturas artificialistas, motivos perturbadores e sedutores parecem “emergir”. Assemelham-se a conchas, flores, corais e flutuam nas imagens como em mundos subaquáticos. A inclusão de Toyen de plantas e frutas (marinhas) pode ter sido inspirada por seu encontro com os textos do Marquês de Sade (1740-1814) e o conceito de pansexualidade da natureza.
A MULHER MAGNETICA
Em março de 1934, foi formado o primeiro grupo surrealista na Checoslováquia. Toyen foi uma das fundadoras e apresentou 24 pinturas em sua primeira exposição, em 1935. As telas indicavam uma mudança significativa em sua obra: as paisagens lacustres deram origem a objetos e corpos que parecem rochas. Fissuras profundas sugerem processos de decadência e transição. A forma do corpo (principalmente feminino) se torna uma concha vazia e congelada. Com a visão surrealista do inconsciente, das paixões ocultas do ser humano, a representação de sua aparência foi questionada.
REVISTA ERÓTICA
A imaginação erótica foi uma parte integrante do trabalho artístico de Toyen desde o início. Aos 20 anos, já pintou uma cena de bordel intitulada Pillow, na qual uma multidão de casais se diverte sexualmente. O humor era uma característica essencial que distinguia muito o erotismo de Toyen das muitas explorações correspondentes de seus colegas homens. Em esboços e desenhos, ela desenvolveu um mundo erótico surpreendentemente aberto, que publicou entre 1931 e 1933, em parte na revista Erotická.
ESCONDA-SE, GUERRA!
Durante a ocupação alemã da Checoslováquia, os surrealistas tiveram que se esconder. Além de pinturas que parecem gritos em um trauma de guerra, Toyen criou testemunhos assombrosos de um novo mundo com ciclos de várias partes desenhadas com precisão. Em Esconda-se, guerra! Toyen retratou o golpe contra a natureza, contra a própria existência, com esqueletos de animais. Após a libertação em 1945, ela se voltou para a luz em sentido figurado, com Os mitos da luz, e em cartas retomou seus contatos com os surrealistas parisienses.
TODOS OS ELEMENTOS
Após a guerra, Toyen contata André Breton novamente. A exposição em uma galeria que ele organizou em Paris, em 1947, foi o pretexto para a viagem da artista à França, da qual ela nunca mais voltou de Praga. A troca com o grupo surrealista e a nova liberdade também se refletem em suas pinturas. Inspirada por muitas estadias compartilhadas na Bretanha, ela lidou com a alquimia e os princípios subjacentes dos processos de mudança. Toyen ficou fascinada por se encontrar na costa da Bretanha, as falésias lavadas pelo mar e pelo vento, em torno das quais giravam gaivotas guinchando. Ela buscava analogias visuais e criou imagens poéticas a partir do encontro de fragmentos de seres vivos (como penas, um perfil de bretão) e a natureza “inanimada” (como correntes de água, seixos).
AS SETE ESPADAS DESEMBAINHADAS
Na década de 1950, o grupo surrealista entrou em contato com o movimento Tachismo, tendência da pintura abstrata em que os sentimentos se expressam por meio da aplicação espontânea de tintas. Sob essa influência, o trabalho de Toyen chegou ao limite da abstração lírica. Em contraste com a pintura abstrata contemporânea, ela se baseou mais nas sensações e na exploração do inconsciente do que na construção. Elementos vegetais e minerais ou detalhes de seres misteriosos emergiam de suas telas, como é o caso da série de sete telas de formato vertical As Sete Espadas Desembainhadas.
MEIA-NOITE, HORA ARMADA
As silhuetas ou detalhes do corpo presentes na obra de Toyen, desde a década de 1950, aos poucos se revelam como fantasmas. A partir da década de 1960, Toyen também voltou cada vez mais ao método de colagem. Ela também inseriu fragmentos da realidade diretamente em suas pinturas, como já havia tentado em 1946, como em Der Paravent. Além disso, ela estava explorando cada vez mais a noite e sua magia. À meia-noite, hora armada, Toyen mostra esse mundo noturno como um palco que se observa de um camarote: ela conecta o original, o medo e o desejo com um mundo teatral encantador e luxuoso.
O FESTIVAL DE ANALOGIAS
No final dos anos 1960, Toyen explorou os limites do espaço e do corpo, além da própria silhueta. Ao fazê-lo, ela questionou ainda mais a representatividade do real entre presença, apresentação, representação e ausência. A última pintura a óleo, criada em 1971, tem o significativo título A armadilha da realidade. Ela dirigiu a atenção cada vez mais para analogias, correspondências entre humanos e o mundo das plantas, animais ou objetos. Ela pressupôs que em um único universo, um ser ou objeto pode representar as propriedades do outro. Já em 1954, a artista se caracterizou no jogo comunitário surrealista Objetos de Identidade, com cinco objetos favoritos: uma tela, um chicote, um salto agulha, uma mala e uma cortina. Juntos, eles criaram uma espécie de autorretrato poético em que os anseios de Toyen puderam ser adivinhados: imaginação, liberdade, viagens, erotismo, mistério. Toyen estabeleceu armadilhas para a percepção até o fim de sua vida e, portanto, também questiona nossa suposição básica e simplista de uma totalidade de nossas diversas autoimagens, a premissa da identidade.
Annabelle Görgen-Lammers é
curadora no Hamburger Kunsthalle
desde 2003 e desenvolveu uma
pesquisa com foco no Surrealismo
e Modernismo clássico.
TOYEN • HAMBURGER
KUNSTHALLE • ALEMANHA •
24/9/2021 A 13/2/2022