“Eu preferiria não”
Herman Melville
Sim. São diversas opções. Sim. Existem horários sobrepostos. Sim. Há certa sensação de democratização de acesso. Sim. Depende-se da conexão e da velocidade. Sim. Existem exposições on-line. Projetos emergenciais. Cursos. Editais abertos em espaço curtíssimo. Artistas em estado mais profundo que o crítico. Lives tentam manter o ritmo da life e vice-versa. Há também o cansaço. A exaustão. E a sensação já sabida que alguns de nós trabalham mais agora que antes. E que essa lógica, para além da catástrofe do vírus plantado ao longo de algumas décadas de atitudes catastróficas, termina por endossar e sustentar um tipo de ganha-pão que é o sonho dourado do sistema: a produção a todo tempo. A concentração verticalizada. O corpo imóvel que se faz da tela antolho. Tudo já se sabe. Continuemos. Novidade alguma. Sim.
Ou quase. Ou nada disso.
Uma das urgentes questões elétricas que se descortina é passível de ser produzida a partir da verificação do tônus da negociação de forças entre o corpo individual e os regimes discursivos, bem como a mediação possível com as demandas do subsolo, que agora estão mais explícitas na profundidade do quadro. Para além da pressa injustificável em alguns casos da produção incessante de conteúdo, seja lá o que isso possa vir a ser agora, e atravessando de maneira perspicaz a potencialização da roda viva de falas, encontros e de uma temporalidade absorta, talvez, sem purismo algum, seja ainda importante escavarmos algum furo para podermos pensar as imbricadas relações entre meio, mensagem e massagem.
Ultrapassando o status lógico da histeria inevitável e justificada, cabe ainda mantermos algum ritmo de triagem que merece se presentificar de forma contundente sobre aquilo que é produzido e exposto, considerando a especificidade das conexões possíveis, o abismal encontro do enquadramento virtual e uma forma de experiência que abarque relações outras, potencialmente mais fantasmagóricas a partir de uma conjunção de espectros que atuam, possivelmente de forma fadada ao fracasso, na tentativa de preenchimento de espaços e exigências que antes se amparavam na vibração física.
Embora haja um conjunto de teorias que já tenham indicado as curiosas relações estabelecidas em uma era de reprodutibilidade turística, como eu prefiro chamá-la, ainda há algo de concreto na entropia da experiência essa do já é, que, além de se amparar na expansão do conceito de imagem e vivência, problematiza de forma real e como em uma fita de Moebius, os regimes de visibilidade e invisibilidade, aparecimento e desaparecimento, potencializando a continuidade entre os lados e, obviamente, diluindo alguma dicotomia que, de fato, não se sustenta mais. Em outras palavras, talvez estejamos experimentando de maneira crua uma conjunção muito particular e paradoxalmente nada teórica, entre visível e invisível, presença e ausência. E se há algo de destacável nessa experiência de horror, talvez seja exatamente a possibilidade de diminuição da angústia inevitável do viver a partir de uma relação prática com o apagamento de si como uma forma possível de re-existência inelutável.
Em um texto imprescindível, publicado pela editora n-1, chamado I’m alive ou I’m a live?, Renan Marcondes levanta, entre muitas outras questões, o diálogo entre o aparelho e a experiência da morte em um tempo que conjuga a vida e sua reprodução sem tempo para o ócio em virtude de sua inquietação diante do apagamento. Para além de muitas referências, o texto inicia com uma citação de um filme chamado Ghost dance, de 1983, que explora as perspectivas assombradas de presença no próprio cinema e no qual o filósofo Jacques Derrida faz uma rara aparição. Em uma das cenas, Derrida responde à pergunta se ele acreditaria em fantasmas da seguinte forma:
“Primeiro você estaria perguntando a um fantasma se ele acredita em fantasmas. Aqui o fantasma sou eu”, indicando o espectro inevitável da imagem quando mediada pelo aparelho que se aproximaria de um ventríloquo, capaz de substituir seu papel concreto. Ou seja, através da mediação tecnológica, incluindo objetos aparentemente mais simplórios como o telefone, a presença que se produz é como a de um espectro, presença assombrada, ectoplasmática e obviamente, fugaz. O que parece urgente é a compreensão prévia, nada trágica e nada melancólica, de um efeito de presença que termina hoje, ganhando outros contornos diante de sua intransponibilidade eventualmente ignorada, talvez por falta de coragem, em algumas propostas de arte.
Claudia Tavares desenvolveu um trabalho durante a pandemia que explicita e sintetiza tais questões de forma contundente. O título do trabalho é Fale comigo. Repleto de ironias, o título já nos pergunta sobre o próprio exercício de fala/ escuta nos tempos atuais e as variações inevitáveis da comunicabilidade. Partindo de uma série de encontros e não tentando escapar da natureza deambulatória da atenção, a artista começa a perceber no outro o ambiente e a intimidade inevitável que a câmera indica sem apontar. Dessa forma, os elementos do entorno, capazes de construir o ecossistema de referências pessoais, tornam-se protagonistas do quadro. E aleatoriamente, pelo processo inevitável da captura do objeto projetado que é capaz de fisgar o espectador, uma cor é eleita. É essa cor que, de fato, após o enlace do olhar da própria artista, “antropofagiza” o sujeito outro que estabelecia algo de diálogo, apagando-o ou de outra forma, esfacelando qualquer ingenuidade possível de inteireza. A cor de fundo abre o fundo inerente do próprio sujeito assujeitado, ressaltando sua presença apaixonada pela ausência (e vice-versa), nutrida por sua incontestável e genética fantasmagoria.
Outro trabalho que consegue articular de maneira perspicaz a relação entre a forma e o meio possíveis na atual situação pandêmica é Parece loucura, mas há método, proposta emergencial do Armazém Companhia de Teatro, que mergulha e aproveita a divisão possível de quadros e quadrados do Zoom para promover um encontro bastante particular entre público e obra. Ao longo das “cenas”, os espectadores escolhem quais personagens deverão continuar em suas epopeias íntimas a partir de uma percepção, inevitavelmente falha, dos pequenos duelos estabelecidos a cada vez por uma dupla de atores. Além de tal proposta endossar a fratura e incompletude da opinião pública, que escolhe e goza pela possibilidade ficcional de eliminação rápida e gradativa de um de seus personagens, a partir de uma compreensão superficial da situação, amparada pelo texto e inevitavelmente pela imagem enclausurada de quem seria merecedor de alguma vitória fictícia, a peça termina por apostar em um jogo de espelhamentos extremamente bem construído, que, por diversos motivos, termina fazendo com que esqueçamos que aquilo que é falado também nos representa. Se o texto dito ilustra e narra o que atravessamos hoje no Brasil e vivemos inevitavelmente, ao longo do tempo, o prazer do jogo na clausura da imagem, potencializada pela responsabilidade e pelo amoródio projetado em suas figuras também projetadas, desloca sagazmente nosso centro de atenção e desejo.
Todos os textos são de Shakespeare, adaptados e postos de forma palatável para a experiência proposta. Contudo, os trechos escolhidos discutem de maneira extremamente elegante a repetição histórica inevitável e o sofrimento humano diante do seu desejo de poder e sustentação de uma opinião específica. Retirados do seu contexto original, as falas terminam por exibir, no seu fundo, a possibilidade enganada de compreensão de uma fala outra e o risco de aderência e identificação/desindentificação com personagens enclausurados em seus quadros a partir do encadeamento solitário do seu desejo de presença como imagem e perda. Puro espelho. Fantasmagoria recalcada que se exibe como eterno retorno.